sobre o que os carnavais anunciam

o que nós 
não dizemos 
amarga
a boca 
retrai a  
língua os 
lábios suspensos 
e o mundo 

o que nós 
não dizemos 
inquieta o 
baço  
agoniza o 
saco as  
nádegas feridas 
e o mundo 

o que nós 
não dizemos 
encolhe os  
ombros 
cutuca o 
peito os 
braços atados 
e o mundo 

às vezes inverno 
às vezes verão

 

[Perfil de Gabriel Gorini]

«talvez a eternidade seja isto:»

talvez a eternidade seja isto:
regressar sempre aos mesmos lugares
um até amanhã que é sempre um regresso.

há um último copo sobre o balcão
que espera o saciamento do estômago – sem deus nem ideologia -
já adormecido.

o corpo, como sinal de abandono, adormece
dentro do último copo:
     náufrago de si mesmo.

talvez a verdade embriagada seja mais verdadeira:
     mas é a inércia do mundo
     que não permite reencontrar a ascese ateia
     dos vestígios do sangue.

no jardim continua uma fonte dentro de uma estátua.

Ulrich Seidl, um estudioso da condição humana

“Os que afirmam que desprezo as pessoas não me percebem”, lê-se numa entrevista concedida por Ulrich Seidl ao Guardian (2013). A implacabilidade do realizador austríaco para com criaturas inadaptadas, a crueza e detalhe com que exibe as imperfeições de gente malfeita (gordos, deficientes, pobres), talvez contribuam para disseminar a ideia de que o desprezo é um dos sentimentos que o motivam. O ser humano é apresentado nos filmes de Seidl como um animal não só simples na sua barbaridade e fealdade, mas também complexo, que oscila entre o ridículo e a fragilidade, entre a comédia e a mais profunda depressão (depressão essa em grande medida alimentada pela incapacidade de satisfazer os seus mais básicos instintos). Desprezo não é palavra com que se rotule a obra de alguém inteiramente dedicado à compreensão da condição humana.

Paraíso: Amor (2013)

Paraíso: Amor (2013)

Muitos dos comportamentos (bizarros na aparência) filmados pelo realizador são tão verosímeis que dão a sensação de terem tido lugar na vida real. A trilogia Paraíso acompanha a história de três mulheres que bem poderiam existir na Áustria, em Portugal ou em qualquer local em que existam humanos. São três mulheres, três existências transbordando de gordura, sebo, pêlos, estupidez, mesquinhez e egoísmo. Em Paraíso: Amor (2013), Teresa viaja para o Quénia procurando amor entre jovens famélicos vendedores de sexo. A personagem principal de Paraíso: Fé (2012), Anna Maria, irmã de Teresa, é uma fanática religiosa que gasta os tempos livres pregando a mensagem do Senhor pelos subúrbios. Já em Paraíso: Esperança (2013), Melody, filha de Teresa, apaixona-se, ou não se apaixona, fica obcecada por um médico do campo para obesos em que a mãe a inscreve antes de partir para África. O carácter insólito ou macabro de muitas das situações descritas nestes filmes não nos desvia da realidade, pois a realidade é sempre mais anormal do que normal, ou melhor, a normalidade é nas nossas vidas uma ficção em que acreditamos para sobrevivermos num quotidiano de estranhezas e absurdos. Não existem paraíso ou amor no Quénia, nas férias de austríacos, alemães, europeus, velhos debochados à caça de pénis erectos e selvagens. Teresa sonha com sexo, com sentimento e delicadeza. Paga ao negro, escravo, para satisfazê-la. Ensina-lhe bons modos. Como acariciar um seio. A senhora comporta-se como se estivesse a lidar com macacos e, ao mesmo tempo, ambiciona que os macacos a tratem como a princesa que nunca foi. É preciso saber tocar no seu corpo disforme. É grotesco, quase pornográfico de tão inestético, assistir a uma cena de "amor" entre esta mulher acabada para a sensualidade e um negro viçoso. Porém, não nos chocamos. Aquilo a que assistimos poderia acontecer a qualquer pessoa, dependendo das circunstâncias e do estado de alma. O "eu nunca" não é aconselhável a elementos desta espécie tão pouco virada para a consistência e a firmeza de princípios. Não há vilões. Comportamentos desvairados ou pérfidos fazem parte da vida, são banais. A mulher tira fotografias numa escola decrépita frequentada por crianças miseráveis, como se fosse exótico fotografar a pobreza. A mulher é estúpida, é. O amante negro não sabe amar, às vezes nem erecção consegue ter, a mulher bate-lhe, comporta-se como se fosse sua dona. Choca? E se colocássemos a mesma senhora em Lisboa, pagando a pobres, entrando em eléctricos para sentir a fome, deambulando pelas ruas de Alfama em busca do desdentado e do fadista macabro, o que seria diferente? A estupidez humana é universal e não se escapa à angústia. É o aniversário da mulher e ninguém lhe liga. Está sozinha no seu quarto de hotel, bêbeda e despida. Os calções de turista e os chinelos de enfiar no dedo assinalam a nossa pobreza. A mulher acaba deprimida, aquele mundo não era o paraíso, nem com dinheiro compraria amor ou bom sexo. O mundo é assim no Quénia, em Nova Iorque e na Mouraria. 

Paraíso: Esperança (2013)

Paraíso: Esperança (2013)

O que pode chocar quando, em Paraíso: Esperança, vislumbramos uma adolescente obesa morrendo de desejo por um homem muito mais velho, e um homem muito mais velho que prescinde de toda a ética profissional para se aproveitar da adolescente? Em Paraíso: Fé, as acções da fanática religiosa são macabras mas banais. Obcecada, a senhora lambe as fotografias de Jesus, masturba-se com a cruz pendurada por cima da cama. O que incomoda? Que se pense em sexo? Que se deseje fornicar com Jesus? Que sejamos um pouco como essa senhora, que sejamos como ela sempre que estamos calados?

Paraíso: Fé (2012)

Paraíso: Fé (2012)

 O desejo impulsiona estas personagens. O desejo corporal, o desejo de viver num paraíso em Terra. O médico de Paraíso: Esperança insinua-se e, à medida que o filme avança, percebe-se que a culpa do médico é não passar das insinuações, não satisfazer a adolescente como ela desejaria. Os quenianos são tão abusadores quanto a velha munida de maços de notas. Ser gorda, religiosa, peluda, enfim, ser humano, ser hediondo perseguindo ideais elevados como o amor. A fanática religiosa casa-se com Jesus. Mãe, filha e tia têm uma grande carência emocional. Querem sentir-se amadas por alguém, encontrar um lugar no mundo. A mãe acaba a chorar sozinha no seu quarto de hotel no Quénia. A tia acaba a chicotear a estatueta de Jesus. Ulrich Seidl explora a fragilidade, esta condição humana que não torna melhores ou piores, esta condição que nos sujeita a uma nojenta animalidade.

Fome

I

Ao tocar num longo teclado de impulsos, muitos deles arcaicos, a poesia faz vibrar algumas das placas mais primordiais do campo da subjectividade, os obscuros alicerces do “eu”. Um verdadeiro poema trabalha-nos, pois, por dentro, tão extremadamente que nos excede a partir do que julgávamos ser o núcleo da nossa subjectividade. Mesmo desinteressados de uma teoria do género ou uma ontologia da poesia – essa angústia camuflada sob a capa da procura séria, objectiva do Ser da poesia –, encerra algum sentido atribuir-lhe o poder de nos fragmentar, lacerar, desfazer. Nesta cultura do polegar erguido em sinal de satisfação, totem actual, continuação por outras vias do entusiasmo falocrático, a poesia desmancha o novelo com que se tecem as individualizações, não por um qualquer desejo de devassa, mas para quebrar o círculo de redundâncias com que gostamos de nos apresentar (nome, profissão, clube de futebol, idade, morada, orientação sexual, livros preferidos, ódios de estimação...).

Esta é uma das razões pelas quais amo a poesia, outra é por considerá-la o mais generoso de todos os discursos, ao deixar que cada leitor viva cada poema à sua maneira. Sem ser um placebo, lança o primeiro murmúrio para ser apanhado e amplificado à maneira de cada um. Paul Valéry dizia em 1929, Commentaires de Charmes, que os seus versos continham vários sentidos, porque o dele só se ajustava a si. É um erro, continuava, afirmar que os poemas têm uma verdade, única e conforme ao pensamento do autor, consideração contrária e mesmo mortífera para a poesia.[1]

Esta multiplicidade é, além disso, exercida com forças que geram as metamorfoses de autores e leitores, Jean-François Lyotard defende o privilégio da escrita e leitura intensivas, aquelas em que o autor se aniquila na escritura e a escritura se aniquila no leitor, grande vencedor deste agon criativo porque aposta em último lugar. Aposta meio cega, como se não se lembrasse de grande parte do jogo que saiu antes. Mas estes leitores, especialíssimos, devem estar dispostos, como dizia Nietzsche, ao “êxtase da aprendizagem”, o que no viandante de Sils-Maria significava a descoberta de novas possibilidades de vida.

II

A Fome de João Moita desarranjou-me, desbaratou os meus códigos de leitura, minou as vias possíveis que tinha escolhido para assaltar o texto (assaltar a Fome). Peguei então nele e, alterando o que fui capaz alterar, usei-o orientado pelo que escreveu no final de um poema: “Assim como sou, / resta-me a desolação da travessia.” Não se pense imediatamente numa hermenêutica negativa, ler o João em desolação, numa frugalidade discursiva, foi para mim, afirmativamente, a melhor forma de apanhar o que julgo serem os seus gestos mais autênticos.

A poesia do João que, até pelo que disse, o ultrapassa tanto quanto ele a possui, parece começar por praticar uma pequena incisão epidérmica, como se dissesse: “desculpe, vou só tirar este insignificante quisto benigno mas démodé”, para logo a seguir aproveitar o balanço e obrigar-nos a fazer uma enorme cirurgia, auto-cirurgia, invadindo os órgãos vitais. Isto para “Quando Deus vier com as suas dragas [a Deus só lhe interessa dragar a nossa alma], já nós sondámos tudo, já tudo esgotámos.

Os órgãos vitais não são músculos animados, sistemas de circulação ou digestão, nervos ou neurónios, fluxos de informação química ou eléctrica, fluidos contaminados..., mas, abrindo para outra anatomia, constituição de campos de forças: “tudo o que sabíamos vinha-nos do cio e do arrependimento, […] E Deus esteve sempre do meu lado, segurando a toalha e o escarrador, e a minha valentia é de teor agrário.” Quem lavra ou vê lavrar a terra percebe esta teologia incarnada, onde o espírito se semeia no sangue, do homem ou do mundo. Depois, as forças crescem, indomáveis algumas, comunicando, numa linguagem exacta e implacável, o jogo dialéctico da vida/morte, jogo sem síntese, apesar de todos os esforços conciliadores do Novo Testamento. Elas pertencem ainda à linha trágica do Testemunho mais antigo, história sem nenhum Deus ex machina, onde em vez de moral há o perigo insondável de se ser sacrificado pela vontade cega e impiedosa da Justiça, a primeira de todas as éticas. Por isso: “Visão de peste, / íntima e incomunicável.”

Se é verdade que este livro, revelado sob um título que resume porventura o maior de todos os desejos (Fome), esboça por vezes uma arte poética, rapidamente a subsume na vastidão teológica: “Começar com minuciosa caligrafia, com a precisão / do traço. Iludir a mão que devias ter mas não tens / nisto. E como o calor que incendeia a noite, ser em / negra combustão o sudário das estrelas.” Ou “Não há autonomia se não se recria / nos caminhos da fé.” São poucas as linhas que evitam a fatalidade, “eu amarei a privação”, diz, porque a ausência é a única certeza. E mesmo os excedentes são uma forma de supressão: “À força de êxtases, / a fé podou o amor. / Quando veio o desejo, / brincámos com a fome dos corações”. Ao mesmo tempo, em vital contradição  (“Arrepio: / prazer dos contrastes, / abrangência das contradições.”), a fé combate, de raspão, o grande vazio que se aproxima: “Em instância da penúria, / a tangente da fé”. Ou “Na garganta de Isaac sinto já avermelhar-se a minha faca –  / serás tu, Senhor, o sustento da minha culpa. / Como a suportaria se a minha fé não fosse / maior do que tu?”. Como em Nietzsche, as “palavras são aqui francamente sangrentas”.

Esta poesia do João fabrica facas para uma tragédia teológica, em quase todas as frases há cicatrizes, repetidamente abertas e saradas. Não são feridas expostas, hesitam em mostrar-se porque qualquer explicação faz sofrer duplamente. Da mesma forma, a indecisão marca a permanência inapropriada: “Estive pronto e não parti.” Ou então a vertigem da queda dos que vivem nas alturas (“Se falham o primeiro voo, / as aves não chegam a voar.”), pássaros inseguros a pontuar o céu para que nada pareça imaculado. Mas os pássaros são também viajantes irredutíveis, num tempo longo que escapa à nossa noção de esforço, tanto que “No fim das suas vidas terão engolido mais céu que alimento.”

No final, num amor fati que faria corar de inveja os próprios estóicos, “Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.” Por isso, “Pôs-se uma manhã limpa como o escárnio, / estou prestes a ser feliz.”

 

[1] “Mes vers ont le sens qu’on leur prête. Celui que je leur donne ne s’ajuste qu’à moi, et n’est opposable à personne. C’est une erreur contraire à la nature de la poésie, et qui lui serait même mortelle, que de prétendre qu’à tout poème correspond un sens véritable, unique et conforme à quelque pensée de l’auteur.”

Rotina Matinal

Imito a estrela de rock de Nova Iorque:
cópia a preto e branco,
a5, 300g, grão fino
colada no canto do espelho.

Visto a camisa branca,
aquela que nunca me serviu
larga nos ombros estreitos e o bolso vazio
sobre o coração pesado

ou inverto a ordem secreta das palavras

e visto as calças pretas
cheias de dobras
como a face
do dramaturgo irlandês

ou inverto a ordem secreta das rotinas

e calço os sapatos em primeiro lugar
tal como eles fazem na peça
antes de agarrem a corda
que irá enfeitar o fino pescoço

ou inverto a ordem secreta das ações

e não espero, espero, espero
nem ato a corda:
não há árvore alguma por perto
onde pendurar este baloiço