QUERIDOS NADAS *

(André Bultzer; Marlene Dumas; Etel Adnan)

Versões: Vítor Teves

A arte é um império no qual

não somos permitidos a entrar.

                                                                                                          André Bultzer

eu sou

O ELEMENTO ALEMÃO

NA

PINTURA ITALIANA

DO

SÉCULO DEZASSEIS

                                                                                      André Bultzer

 Apenas o Tom e Jerry estão vindo.

                                                                                                 André Bultzer

CASA É ONDE ESTÁ O CORAÇÃO

Arte holandesa?

A minha pátria é a África do Sul

a minha língua materna é o africâner

o meu sobrenome é francês.

Eu não falo francês

A minha mãe sempre quis que eu fosse a Paris,

ela pensava que a arte era francesa,

por causa de Picasso.

Eu pensava que a Arte era americana,

por causa da Artforum.

Eu pensava que Mondrian também era americano,

e que a Bélgica era uma parte da Holanda.

Eu moro em Amesterdão

E tenho um passaporte holandês.

Às vezes acho que não sou uma verdadeira artista,

porque sou muito tímida;

e por nunca saber muito bem onde estou.

                                                                                           Marlene Dumas

                                    a)

é isto

é isto

é isto

que tu preferes

o corvo e a vaca

ou seja:

A linguagem

e a

nuvem

                                                                                                                   Etel Adnan



 Sim, sobre a revolução

de Leinne é uma arte

é um oceano

mexendo na psique

         das pessoas

      e das plantas

                                                                                        Etel Adnan


* Queridos nadas - tradução de “Sweet Nothings” (1998) - Poesia e outros textos reunidos de Marlene Dumas.

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Etel Adnan - Untitled, 2016.




Fulgurações – pontualidade

Num misto de rebeldia cultural e autoconstrangimento, sempre admirei a pontualidade, ou melhor, quem e o que era pontual. À falta de exemplos concretos – num país que se não glorifica o atraso, pelo menos o tolera muitíssimo, como se fosse um sinal de fatalidade insuperável (veja-se os patéticos “quinze minutos de tolerância académica”) –, cheguei a imaginar uma utopia completa (criação de mundos a la Antigo Testamento) onde a pontualidade fosse a lei que cada um se dava a si próprio. Depois, numa viagem que retrospectivamente considero como um rito de passagem por excelência, vi, misturando júbilo e incredulidade, que os comboios na Bélgica chegavam ao segundo. Julguei ter desembarcado no non plus ultra da civilização.

Entretanto, foram-me nascendo outros olhos e comecei a ver falhas no meu postulado. Mas, como qualquer crente, desvalorizei-os enquanto excepções que confirmam regras. Sabe-se, esta lógica salva muita gente da vertigem céptica.

A história não acabou aí, talvez por gostar de excepções, do que aparece e desbarata a unanimidade e o autocontentamento (muitas vezes, uma coisa leva à outra), do desafio ao dogma, da linha solitária que trama a composição perfeita.

A continuação deu-se em surdina, os fora desta lei nem sempre eram admiráveis, e quando eram mantinha o benefício da dúvida: “sim, interessante, mas podiam ter chegado a horas, não se perdia nada”. Porém, o acumular de desvios interessantes (sempre minoritários em relação à lei, contudo) preparou-me, num treino de anos, para me render à força demiúrgica da frase que uma amiga, editora de uma dieta social à base do risível, divulgou há uns dias:

Há pessoas que apesar de serem pontuais, nota-se-lhes um certo atraso político

INFERNO(S)

“Einziger, ewiger, allgegenwärtiger,

unsichtbarer und unvorstellbarer Gott”

- Schoenberg

…………………………………………………………………………….

Mutatis mutandis, eis outro homem,

não esperava encontra-lo por aqui, até

há muitas razões para simpatizar com ele:

certo humor desconcertante,

a bagagem psicanalítica e toda a cinefilia,

mais as ganas de fundir high e low

culture, num momento em que, a bem dizer,

essas diferenças já pouco significam,

e muito graças a ele;

                                     aqui está,

não refugiado na floresta,

mas gravado e difundido

na internet:

                     todo um outro universo,

o mundo mudou, e claro que sabemos mais

do que se sabia outrora; mesmo assim,

«o que acontece primeiro como tragédia

repete-se depois como farsa», disse alguém,

e ele pegou na frase e fez dela título

para um dos seus muitos, muitos, muitos

livros.

            Farsa tristonha:

na hora de se comprometer politicamente

cedeu ao humor; proferiu o conselho intolerável:

fez birra de enfant terrible,

disse que votaria num monstro.

                                                           Risos.

Aqueles que os deuses querem

perder…

                 E poderemos invocar, outra vez,

Ignorância? Ele conhecia o seu presente

e, dolorosamente, o passado.

Mas cedeu à piada, ao jogo

do desconcerto; a melhor arma

fez-se veneno, tentação

na roleta vertiginosa, volúpia

da cegueira.

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Vítor Teves - “Inferno” (um poema de Pedro Eiras), 2012-2020. [Mutatis mutandis, eis outro homem].

[Caem, à vez, como o metrónomo]

Caem, à vez, como o metrónomo

da chuva a entupir os bueiros.

Outros, nem isso. Por um erro de cálculo,

lapsos da física, a mão que tremia.

Resultado: fracturas, escoriações,

um gatafunho nos pulsos, fechando,

o alarme da vergonha a meio do sono:

«nem à morte soubeste chegar a tempo».

É noite, a vida pesa, só um lençol preto sufoca

os adiados suicídios.

Os corpos resignam-se aos dias

para serem enterrados ainda vivos.

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Nicolas Poussin - “Inverno”, 1660-1664.

SATURDAY NIGHT

“mais as ganas de fundir High e low

culture, num momento em que, a bem dizer,

essas diferenças já pouco significam”

- Pedro Eiras (“Inferno”)

“Quero encontrar uma voz paupérrima”

Herberto Helder (“Servidões”)

“Do you believe in life after love?”

- Cher

LUSITANO(S)

“If you wanna be my lover,

you gotta get with my friends”

                    - Spiece Girls


                                                         a Tiago de Sá, meu Watteau

                              I

À porta a pergunta era sempre a mesma

Quem vai entrar primeiro? Entrar por

último era ganhar o troféu de ser por

dois segundos o raio ofuscante da noite

aquele que acabaria por chamar ao falso

hímen todos os olhares da barroca sala.

E o queixo fazendo um arco de cinco

centímetros dizia a todos I’m here bitches!

Jorge entrava sempre em primeiro lugar

quanto menos leões olhassem para ele

melhor conseguia assim rapidamente

chegar ao bar e pedir tranquilamente o

copo com duas pedras de Whisky. Tinha

o hábito de fugir de relações fúteis como

o diabo fugia da cruz dizia ele antes de

entrar. Mas era o primeiro ao fim de três

bebidas a mudar a pele de cordeiro por

uma novíssima de verdadeiro lobo. E a  

furtiva caça ao homem peludo começava.

 II

Já viste quem está ali de polo azul? Não!

E mudando a cabeça para o lado oposto

Rui fingia ter de repente um assunto muito

importante a me contar. E eu entrava no

jogo afirmava firmemente com a cabeça

como se de repente tivesse entrado num

casting para um filme ou novela brasileira.

De olhos muito arregalados eu era o mais

fiel dos amigos a representar em plena disco

o papel de um sóbrio homem que ouvia a

conversa do seu amigo. E quando o polo

azul (sempre o mesmo polo azul) passava eu

podia voltar a ser a livre cabeça de Whisky.

Safei-me. Maldita a hora que lhe dei um

aperto no rabo agora não me larga pensa

que estou Interessado nele. Com aquela

fronha até faziam juntos um belo casalinho

a Heidi e o Marco no prado do horror.

III

Tanta cara nova hoje já reparaste? O outro

bar está fechado e os artistas não tinham

para onde ir. Dizem que não gostam de vir

aqui porque é tudo uma promiscuidade. Isto?

Mas no outro bar fazem exatamente o mesmo

qual é a diferença? A diferença é a música e

claro aqui podes cantar e ser gordo. Lá tens

de ter cintura de 38 e saber se choras pela

Mariana Abramovic ou se pelo velho Ulay.

Quem são? Nunca ouvi falar desses Dj’s.

Deixa lá filho nem eles sabem quem são.

IV

Só tu para me salvares amigo! Quando

voltares a vomitar na casa de banho já

sabes ficas lá sozinho como da outra vez.

V

Miguel bebe muito é a esponja do grupo.

Pedro só bebe de palhinha o seu Bacardi.

Hugo só sabe perguntar pelo ex-namorado.

Ricardo bebe apenas sumo e pouco dança.

Teresa é a única lésbica passa a noite toda

a dançar enroscada no Tomás o único do

grupo que detesta dançar acompanhado.

Tomás bebe apenas gin e passa a noite

toda a empurrar a Teresa. José é o mais

maluco adora ir pra cima da coluna. São
em plena noite o descaramento e o desejo.

VI

Até às duas da madrugada todos os da

velha-guarda são os pilares da sala são

uma espécie de monarcas dos bons modos.

Às três da madrugada começam a surgir

as mangas cavas os sovacos e alguns nus
torsos fortes e morenos. Às três e meia já 
todos dançam livremente na pequena 
pista. E às quatro são todos amigos. É a

altura em que Jorge apresenta todos os

novos rapazes da sala. Como é sábado

há gente de todo o lado: Mirandela

Gondomar Paredes Leça São Romão.

À saída Jorge já quer casar com o Paulo.


                               VI           

Dança Ricardo deixa lá de imitar um farol!

E enquanto Ricardo respondia “Não tem

ninguém de jeito” ia pensando consigo

mesmo: Fazia. Já fiz. Fazia. Fazia muito.

Já fiz. Já fiz. Fazia. Fazia. Fazia. Fazia. 

Não Fazia. Talvez fazia. Ah sim se fazia!

VII

E à sétima bebida o poema foi desenhado

no limpo chão bordeaux da casa de banho.

Ao lado dele estava o crítico rezando de

garganta funda no mais "promissor" poeta.

VIII

Como ficou aquela história do outro dia

Jorge sempre há casamento? Olha nem

me fales não deu em nada depois de aqui

chupar e bem disse que tinha de ir rápido

porque ainda tinha de dar a missa das dez.

A LARVA

Este é o gesto que recolhe a maça

Este é o gesto de cria o novo olho

Este é o gesto que induz a atenção

Este é o gesto que insere na velha e

 podre maça o novo verso da Lady Gaga:

Don't be a Drag Just be a Queen!

         A COLEÇÃO DE CROMOS

“Life is a mystery
Everyone must stand alone”

             - Madonna

A Rita a Joana a Josefina

O Hugo o Rui o Pedro

A Vera a Ivone o Ricardo

                    dizem que não lhes

                    respondes às mensagens.

                    Que desapareceste sem dar

                    notícia. Que se passa?

            Eu quando andava no coro da

           Igreja Matriz era sempre o mais

           desafinado. Quando de lá saí já

           era o melhor cantor. Vim mais

           tarde a encontrar essa passagem

           em S. Mateus não me perguntes

                    quais os versículos.

         Sentem muito a tua falta quando

             estão em fila no Altar-mor!

                      

                    OLHA K’GAY

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