ADÁGIO PARA ACOMPANHAR UM QUADRO DE GIORGIO MORANDI

Giorgio Morandi, Natura Morta, 1941, Museo Morandi

para o José Carlos Soares,

agradecendo-lhe essa manhã
em que me deu a conhecer o tulipeiro
da Virgínia e a magnólia-sempre-verde
que vivem na casa Tait

Espremo laranjas, ergo jarras e copos,
perscruto a minha sina de transplantar
herbáceos, tabuadas e calendários
de vaso em vaso.

No quadriculado da fantasia doméstica,
anoto tudo quanto um dia deixarei
demarcado como me não tendo sido pertença.

Destas e de outras matérias,
fundarei um dia a raíz lancinante
dos meus versos noutra boca
já amados ou dilacerados.

Destas e de outras alegrias
vos darei conta e deixarei abaixo assinadas
como tendo sido a senha, o dote e a fábula
de uma ciência imprópria à tenra idade
minha
e dos demais humanos.

Sei – porque me disseram –
que outros seres há de diversa escala e porte
capazes de perdurar 
por milhares e milhares de anos,

como se de uma breve nota
ou apêndice se tratasse:
falaram-me dessas árvores
que trazem água desde as funduras
até à parca superfície dos céus.

E ainda me alertaram
para a existência de certos
e microscópicos bichos,
ocultos, anónimos,
parasitários alguns,

que não deixarão pedra sobre pedra
no mito de eu assim ter acontecido,
enquanto corpo ou alma, filho de um deus
ou mero bicho de contas.

E por tudo isto me anima pensar
na vida lá fora,
como numa imensa selva
urbana, rural, com vastas vias
de lenho, cimento e seiva,
perdidas entre o bem
e o mal –

inauditos, interditos,
e inesgotáveis:

assim vos congemino,
assim vos projecto e examino,
ó corpos tão fora e tão dentro
de mim.

Cumprindo a minha estóica rotina
de preferir ao tecido do vivido
a lenta e afiada agulha
que tudo cose no que contemplo
ou imagino:

assim extraio este breve adágio
onde vos sou companhia

e com as mãos que me servem a escrita
retiro as pevides ao sumo sabendo 
alegremente

que certo dia a semente 
perfeita do nada serão 

somente.

mau contato

mas esse homem gostava mesmo era da rinha. chegar no bar, tomar uma com mel, passar pelas mesas, cumprimentar as damas, atravessar a cortina de chita, a outra cortina de plástico, abrir caminho entre os outros alucinados. gostava assim, de chegar beirando o início. era como um ritual que se fosse quebrado, o azar também passaria pelas cortinas e seria instalado na escolha. blackout e os galos são cantados. no começo ele não percebeu, não se deixou perceber, apenas arrumava a franja e cuspia no chão. prezava pelo penteado a gel, pela sua gola levantada, pela sua fama de cão sortudo. lopez não tirava os olhos dele, nem quando disfarçava, olhava fundo o bico da bota ornada com o couro de cascavel, o chaveiro com um abridor de garrafas, uma pequeníssima e sorridente mulher havaiana e o chocalho da cobra que ele mesmo matou, todos sabiam a história, uma noite inteira de peregrinação no escuro, achar a borracharia e ainda voltar ao local com o carro orvalhado e manco, coisa de uma ou duas cobras no caminho, a depender do dia em que a história era repetida por mamú. jamais errou o galo e comemorava com os braços para o alto, sacudindo com o quadril o chocalho da cobra. às vezes gritava coisas como “ou ié” ou “nem deus chega perto” ou “foi assim que minha ex morreu”. lopez reprimia a louca vontade de se sentar ao seu lado na mesa, após as vitórias. o galo morto estará na cozinha, quase no ponto. o cheiro não mente, hoje o cozinheiro usou dendê. lopez ficava no balcão. raramente seus olhares se cruzavam e, quando acontecia, um dos dois ia ao banheiro, o outro ia ao caixa repôr o fumo, a pinga com mel de jataí, verificar se mamú, o dono da bodega, havia separado as balas de menta das balas de canela, os fósforos de cabeça vermelha dos fósforos de cabeça marrom, se certificar de que os corações de doce de abóbora estavam intactos e na validade para a meia dúzia de crianças que passava ali aos domingos. duas únicas vezes e por isso podemos chamar de dois milagres, duas vezes milagrosas em que tremeram os paralelepípedos daquela cidadezinha no velho goiás. o primeiro: ninguém foi ao banheiro e os dois se coincidiram na pinga com mel, nos corações de abóbora. um toque de joelhos e lopez olhava com a boca o chocalho e a havaiana, ele olhava com a pélvis as mãos de lopez. o momento que durou dias tirando a saúde de uma única fração de segundo. brindaram sem se olhar, “foi assim que minha ex morreu”, “saúde! saúde!”, cada um para o seu posto de vigiar o que não pode ser visto em direto, cada um em sua vigilante tensão. o outro milagre: a luta acabou e ele ficou lá atrás, debaixo da luminária com mau contato, olhando o cadáver do galo perdedor, sentindo o cheiro da cebola na panela que espera galo, com as duas mãos na cintura, talvez em lamento, talvez em reza profunda e silenciosa, talvez pensando naquela fresta de tempo no balcão, no voo das jataís, na gentileza de alguns insetos. lopez saiu da penumbra e se posicionou ao lado direito dele. lado a lado, duas golas levantadas, dois homens bonitos e pouco mansos, cada um à sua maneira, moderadamente brutalizados pelas quinas da vida, mas bonitos, destilados pela idade, pelo mel, pelo doce vendido como coração. rústicos por conveniência, por enfeite de alma que pode andar tranquila em terreno de olhos sombreados por chapéus imensos e coldres dos mais diversos couros. dessa vez foram os cotovelos, “o pobre não teve chance, lopez”, lopez apostou no pobre apesar de saber que o galo que ele escolhesse, seria o galo campeão. “nem chance e nem charme, lopez”, eles se olham sob a luminária, lopez fica azul, quase não respira e toma um tapa no peito, “cê é besta, homem? galo de briga precisa de charme? tava brincando contigo”. lopez forja uma risada, engole a risada forjada, passa o antebraço na boca, cospe no chão e entrega, “não gostei da brincadeira”. o clima é tão pesado que as penas do galo morto são tingidas de chumbo. o mau contato faz a luz oscilar cada vez mais e cada vez mais há mais espaço para o breu, cada vez mais. blackout. os homens se olham através do escuro, sempre se olharam. entre uma luta e outra, quando a luminária era apagada e mamú cantava os dotes dos combatentes, adaptados à escuridão, ele e lopez se olhavam, se olham pela escuridão, desde sempre se olham através do breu para que não fique claro que se olham. um brilho de lágrima, depois um anel de caveira, a pequena havaiana dança ao som do chocalho da cascavel. lopez enfia a mão no jeans dele e ele enfia os dentes no ombro de lopez. dois homens, duas jataís, duas bocas e mamú tateando o escuro à espera de alguma luz para apanhar o cadáver que estará depenado, desossado, amaciado por honradas botas de caubói. 

«Artes da Existência» vs. Autoajuda

Nunca li um livro de autoajuda. Porque sou snob, claro, mas também porque sou cético. Não acredito em milagres e tenho pouco jeito para a estupidez. Eis tudo o que parece haver para dizer. Tanto mais que acusar os outros nos oferece um bónus moral.

Mas como desconfio dos imperativos categóricos (contra, e. g., Kant e Valéry), sobretudo dos meus, questiono-me se não terei feito, obliquamente, uma qualquer tangente à autoajuda. E claro que fiz. Não uma «tangente», mas, em boa verdade, um mergulho. Confesso que imergi na autoajuda, mas numa autoajuda que julgo afastar-se, em elevação, do que me pode propor uma qualquer livraria.

Foi o filósofo Michel Foucault (ele não se considerava como tal, no máximo, dizia, era um jornalista, um historiador ou, em homenagem a Nietzsche, um genealogista) que consolidou a suspeita de que o «conhece-te a ti mesmo» da Grécia Antiga, verdadeiro conselho popular, certificado por Delfos, que Sócrates, através de Platão, inscreveu na cultura ocidental com a marca da filosofia, era o primeiro, e importante, passo para, sem condições a priori, nos ajudarmos. É que, como poderemos cuidar de nós, ou fazer algo de bom, se não nos conhecermos? É essa, aliás, a crítica que Platão faz na Carta VII (com muito de autobiográfico, afirmam os especialistas) ao tirano de Siracusa: como se atreveu ele a escrever um livro de filosofia se nem sequer se conhecia bem a si mesmo.

Para Foucault, as «artes da existência» tinham muito de autoconhecimento. A Antiguidade formou uma lenta, mas sólida, hermenêutica de si. Não bastou, porém, esta revelação para associar a minhas leituras mais eruditas ao movimento panfletário da autoajuda. Nos volumes II e III da História da Sexualidade (com os subtítulos, respetivamente, de Uso dos Prazeres e Cuidado de Si), Foucault assegura que o «conhece-te a ti mesmo» podia ser um truque dos essencialistas para que cada um encontrasse sempre a mesma coisa, um humano universal, uma, querendo ser platónicos, Ideia de Homem.

Por isso, com menos Platão (embora o Banquete e o Fédon sejam incontornáveis) e mais, e.g., Plutarco, Epicteto, Séneca ou Plotino, propõe umas «artes da existência» que contando com o conhecimento de si (todos concordamos que «Uma vida não examinada não merece ser vivida») conduzissem à transformação de si. Nas palavras do filósofo francês: por «artes da existência» é preciso «entender práticas refletidas e voluntárias, pelas quais os homens não apenas se fixam regras de conduta, mas procuram transformar-se a si mesmos, modificar-se no seu ser singular, fazer da sua vida uma obra com certos valores estéticos e que responda a certos critérios de estilo.» (Uso dos Prazeres, «Introdução», tradução minha) Bem entendido, isto aplicava-se somente a uma pequena parte da população: machos adultos livres.

Estas «artes da existência» passavam por «técnicas de si» relacionadas com regimes de saúde, gestão da casa e gestão amorosa (dietética, economia, erótica), suportadas pelo valor da moderação, mais perto da austeridade do que do seu contrário. Mantiveram-se ativas até ao período helenístico romano, acabando, depois disso, por perder muita da sua importância. Foucault questiona-se sobre por que razão um fenómeno cultural alargado na Antiguidade se esbateu, desqualificou e acabou excluído depois na idade Moderna. Por que razão a «procura, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessárias para aceder à verdade» foi afastada da filosofia? Tanto mais que governar-se a si mesmo era condição sine qua non para governar os outros. Responde acusando o cartesianismo de impor a primazia do conhecimento de si em detrimento das transformações de si. Bem entendido, com Pierre Hadot (o magnífico historiador da filosofia) e o próprio Foucault, que antes disso a pastoral cristã, e certas práticas de tipo educativo, médico e psicológico foram abafando um saber que dava demasiado importância às afrodisias. O medo das vertigens sexuais censurou 10 séculos de saber sobre as artes da existência.

Hoje, a ciência, que demasiadas vezes produz um conhecimento sem vida, diz-nos simultaneamente o que somos e as transformações que deveríamos fazer. Mas, bem vistas as coisas, parece não ter grande sucesso. Caso contrário, como se justificaria a edição pletórica de livros de autoajuda (também documentos vídeo e áudio)? Assim, com um sentido de oportunidade muito preciso, a indústria da autoajuda vem colmatar o fracasso da ciência e o desaparecimento das artes da existência. Resolve o problema? Não, claro que não. Somos uma sociedade doente, mesmo padecendo de fartura, como Jacinto. Mas que importa, um problema não resolvido cria e alimenta oportunidades para os mais ousados (não é a ousadia nietzschiana).

Para os mais escrupulosos, e corajosos, recomenda-se Espinosa, Kierkegaard ou Nietzsche, sobretudo este último, que lançou a ideia, sem saber muito bem o que fazer com ela, de fazermos da nossa vida uma obra de arte.

 

como se te soprasse um beijo no ar

(de “assim guardamos as nuvens”, 2019)

como se te soprasse um beijo no ar
feito aquelas crianças que desviam a atenção da avó
e o circuito interno das coisas que não entendemos
funcionasse exatamente como o planejado
e a luz do céu então é este anil com violeta
assim posso te olhar do alto da ladeira e
como sabem os alpinistas e as cabras
também preciso aprender a descer

invento três ou quatro rimas
com o teu nome e vou perambulando
pelos quintais dos vizinhos
se arranco uma laranja deste pé
ela é doce, e ninguém me reprime

atravesso outro portão e na esquina
o hotel com as janelas abertas
todas escuras
e, se claras estivessem, 
o que saberíamos

apreendo o fruto como um antigo
e às vezes estou lendo qualquer coisa
e um estranho com colônia forte entra
no ônibus, nessa tarde parada
lembro do meu tio, pessoa desconhecida
que morreu jovem e me dava sorvete com vinho

e sinto que posso estar feliz sem planejar a chegada
sinto que estarei feliz só porque te guardo
e guardo tantas coisas que às vezes penso 
que só na saudade existe algo grandioso

e dou risadinhas discretas para não afetar os demais
e tento decifrar quantas estrelas já aparecem
e quando alguém resmunga eu não fico bravo
porque isso também é música

da sombra de uma cadeira de praia
um velhinho na Travessa dos Cataventos me saúda
e sei que estás comigo, estrela da manhã
sei que estás comigo, fazenda luminosa
porque eu carrego há anos uma fera
e quando ela se acalma o rigor do inverno
vai embora

e as árvores florescem e vêm comigo
e os pássaros voam e estão comigo
e a estrada está aberta e a noite é limpa

Que Túmulo Em Que Talhão - Recensão

Revisão 25/06/2023

A poesia repete-se e reinventa-se permanentemente, é, como as outras artes, reacionária e progressista, tem um pé no passado e outro no futuro. Se, por um lado, pelo menos desde o modernismo, desapareceram quase todas as restrições formais; por outro, permanecem campos específicos, edições e prémios, por exemplo, que não a deixam confundir com o resto da ficção. Há, até, a crença popular (pouco justificada) do talento poético da cultura portuguesa, provando o reconhecimento de um ethos que a diferencia no mundo das artes da palavra.

A obra de João Moita (ele recusa tê-la, cada livro, diz, é um começo, mas a bandana de Que Túmulo em que Talhão seleciona Fome — Enfermaria 6, 2015/17 — e Uma Pedra sobre a Boca — Guerra e Paz, 2019; juntando-se a isso um trabalho profundo de tradução poética: Antonio Gamoneda, Saint-John Perse, Arthur Rimbaud, Pierre Louÿs, Paul Verlaine, Walt Whitman) tem a marca da inclemência, há sempre uma tensão que atravessa o que é dito e mostrado. Um sopro frio sacode o espúrio e o sagrado (o que se considera como tal), como nos cínicos gregos, que para serem autênticos tanto se lhes dava como se lhes deu. Neste sentido, talvez a poesia de João Moita seja dedicada a Deus, impotente ou tolerante perante o mal, um evangelho do negativo. Por isso, capturando sem falhas o concreto e o sensorial, Que Túmulo em que Talhão foi composto com símbolos incomuns: foice, bafio, ranço, peçonha, salobra, asfixia, vertigem oblíqua, gangrena, podridão, emboscada, putrefação, morte, cadáver, chiqueiro, epidemia, matança, veneno, negrume, lamaçal, vísceras, visco, pestilento, tumor, bafo, entulho, escuridão, náusea, indigesta, fome, mórbido. A solidão pobre, o tédio, as iras domésticas, uma paz que sufoca… Talvez para melhor confinar a linguagem à função de descrição física e de localização. Ou achar que são as melhores palavras para ir para lá da linguagem.

Não sei se João Moita quis exprimir ou expulsar sentidos que o compõem ou se deixou que algo emergisse através (sim, atravessando-o) dele. Die Sprache spricht («A linguagem fala», Martin Heidegger, que admirava Hölderlin e achava que o Ser habita na poesia). Respeitando a sua vontade de desaparecer por trás dos livros que vai escrevendo, avanço a hipótese de uma linguagem da Lezíria assomar na ponta da sua caneta, ditando o fulgor amoral, patético, repugnante, viril, cruel… da vida/morte. Um livro que podia, assim, não ser assinado, mesmo reconhecendo que a linguagem da lezíria não escolheu o João por acaso. Creio saber que ele não gosta nem da embriaguez dionisíaca nem do humanismo apolíneo, tomados nesta dicotomia simplista, é também avesso, quando se concentra no individual, tanto à autocomiseração quanto à autoglorificação. Daí compreender-se que tenha procurado «representar a natureza em toda a sua esplendorosa indiferença e amoralidade».

Quis também «Eximir o sujeito poético ao poema». Sim, e não. Por um lado, contra ele, é indesmentível que estabelece um discurso direto com o leitor no primeiro poema, um prelúdio disparado imperativamente. Quer introduzir-nos no desencanto, para enquadrar a leitura do livro, e abrir horizontes de expetativas existenciais. E o sujeito poético emerge noutros lugares: pp. 64 («será a minha vida»), 67 («augúrio / que não decifro»), 76 («onde me detenho», «minha vida»), nas pp. 79 e 82 ainda mais claro, repete-se um «eu» e aparece um «ouço». Como o futuro foi anulado, culmina num «eu» a imolar-se na última estrofe do livro:

E eu,
couraçado pela solidão,
busco companhia
no milheiral
benzido
pelas chamas.
(p. 82)

Por outro lado, a favor do que disse, é surpreendente encontrar tão poucas vezes o sujeito poético, e nada de metapoesia (ultimamente tornou-se um vício, sobretudo nos jovens artífices). Mais, o humano quase se ausenta de Que Túmulo em que Talhão, «crianças da vila», «homem dobrado» e pouco mais. E mesmo quando aparece uma «mãe», é de gatos que se trata. Este desaparecimento desvia o protagonismo para a lezíria, sentimos que a desolação do ecossistema precisa da escassez humana, talvez exposta em contraluz nos mistérios da ausência-presença. Sem nós, a Lezíria viveria numa amoralidade exultante. É por isso que a luz direta que João Moita diz lançar sobre a natureza talvez não morra aí, ela acerta na Lezíria, certamente, mas reflete-se em algo para lá dela, e nesse além está, acredito, o humano, mas também o divino. Terei sucumbido ao magnetismo da ausência?

Expressionismo niilista. O único consolo — numa remissão tão frugal que é preciso ter a força de um estoico experiente — está, pontualmente, na indiferença. Mesmo quando não compõe uma imagem de fealdade e desarmonia, acaba por escrever: «acocoradas sob as telhas / as sombras preparam / uma emboscada». Quem se lembraria de mostrar num poema que

O frio eriça
as vísceras dos frangos,
enxameadas de moscas
para a postura
dos ovos.
(pp. 31-32)

No mesmo poema — do capítulo «A Vila», o outro é «Os Campos» — retoma episódios de elementos naturais que invadem a polis decadente, percorrida pelo destino do desaparecimento: «o sonar de um morcego / varre a ignomínia do quintal». Neste caso, o metafórico ganhou a relevância exata de um lirismo negro, como sucede na estrofe que se segue:

O sol lança chispas

sobre o caixão.
Jazem azuis e bolorentos
os limões,
como as chagas
imputrescíveis
da devoção.
(p. 33)

Há nisto um ver as coisas a partir de um ângulo pós-convencional, mas há também a vontade de inverter a pastoral, e desde logo uma das figuras mais emolduradas, a aurora: «Amanhece na campina / como o caruncho alastra / no sudário» (p. 39) Uma lírica perfurante para chegar à vida nua campestre, ou um neorrealismo desumanizado:

Coalha de lêndeas
o pêlo das grandes
ratazanas,
mosquitos sedentos
mugem os úberes
das vacas da charneca,
rodopiam,
em sua grande
transumância,
as pedras frias
do entardecer.
(pp. 50-51)

A aurora, o belo crepúsculo dos românticos, a terra, a luz, o céu…, nada dito tem suficiente força redentora para fazer frente ao poeta, ou aos poemas. Nem mesmo a metafísica resiste ao teste de esforço hermenêutico:

Cai varado
um deus
como um limão
na aridez
da charneca.
(p. 59)

É a segunda vez que limões e divino se cruzam, não o limão jovial dos cocktails, mas o da acidez que também apodrece, e antes cai desamparado. É por isso que me senti assombrado pela ideia da decomposição (termo que o João usa), do orgânico, seguramente, mas também a decomposição de uma certa forma de escrever poesia. É assim que ousa criar esta surpreendente analogia: «o negrume de um céu / de amoras pisadas.» (p. 69) Uma traição ao hábito, a que alguns chamam inventividade. Mas pode também ser, deixem-me arriscar, uma extrema fidelidade aos pormenores, envolvidos, dia e noite, num bafo pestilento.