Luiza

recordo. há quase trinta anos. ir até ao final da rua onde vivia, que, por acaso, fica ao lado desta onde durmo agora, caminhar sob o calor do Sol terrível que até as sombras mata, chegar a uma avenida mais larga do que a minha rua estreita, ver um prédio de dois andares com o Sol por trás, uma varanda grande e bonita onde havia verde nela, e vê-la, de cá de baixo, sentada na sua cadeira de baloiço, sorrindo com aqueles olhos enormes, onde se sentia a vida a marejar, e com a boca pequena e nunca triste. no colo um caderno, na mão um lápis afiado, que acabava de escrever, talvez:

Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.

subo a escada a sorrir, pois, tal como um beijo, este é a única retribuição possível a outro sorriso. lá em cima, na sala arejada de janelas abertas para entrar a luz da manhã sentamo-nos, eu e os meus Pais, que falam contigo preocupados porque a tua voz está rouca e pareces muito pálida. por momentos, olhas-me e o brilho desses dois diamantes que tens na face tocam-me, sentindo-me a vida, a minha infância feliz, o sal do mar no meu cabelo, a areia nas orelhas e queres ser eu, estar comigo na praia, mergulhar ao meu lado por baixo da onda, abrir os olhos a arder debaixo de água, sentir a espuma a desfazer-se quando levantamos juntos a cabeça e, finalmente, abrimos a boca para respirar, deitarmo-nos na toalha que espera por nós ao Sol e respirar fundo o ar quente do verão e rir, rir muito, não para esquecer nada, mas simplesmente para lembrar a vida que há, que sempre haverá, quer estejamos lá ou não... mas não podes, tens de parar de falar um pouco, o meu Pai chega a garrafa de oxigénio para perto de ti, os olhos dele choram devagar e tu agradeces com os diamantes cravados nas mãos dele que te ajudam. respiras pela máscara, e ficamos a ver a tua felicidade em nos ter ali contigo, olhas a minha Mãe e sentes a vida dela, as reuniões no sindicato, as preocupações na biblioteca, sentes tudo, eu sei... é indescritível sentir pelos outros quando já não podemos viver por nós. mais tarde, despedi-mo-nos de ti, os diamantes lacrimejam um pouco, mas não cedem, pois estão felizes, até no adeus.
vamo-nos embora e tu voltas à varanda e escreves mais um pouco, talvez:

Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo
de só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra.

Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvolução do corpo.

Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989

All is lost

Robert Redford é um velho que nunca foi actor, um homem belo pejado de rugas ou de sinais que atestam que ninguém foge da inescapável ceifeira. Redford não tem nome, nem história. O seu passado é interpretado a partir dos vincos na pele e dos cabelos brancos que só tornam talentoso aquele que ao longo da sua carreira escassos dotes artísticos revelou. All is lost (2013), de J.C. Chandor, é uma fotografia em movimento, o retrato de um ser inexpressivo e ao mesmo tempo cheio de expressões e carregado de histórias (a minha carne é o meu passado). Estamos perante um filme que ensina a sofrer como Séneca ensinou. Quem assiste ao filme sente que a criatura em luta contra o oceano batalha na verdade contra o barco que se afunda. Redford lê e adormece e vai-se afogando impávido. Nada surpreende se aceitarmos que a morte e a dor são vida e devem ser aceites com a mesma simplicidade com que se devora um bom repasto. Viver e saber ir morrendo. Tudo está perdido, tudo esteve perdido desde a nascença. O homem luta pela sobrevivência e quando pressente que não se salvará deita fogo ao que resta e atira-se para o fundo. Mergulha, enterra-se nas trevas. Mesmo esse mergulho faz parte da vida: atiramo-nos por vontade própria, estamos no fundo enquanto lá em cima o fogo reina, vemos o fogo e ainda não morremos, basta uma braçada e escapamos. Escapar de quê, se nos encontramos tão próximos da morte? Sempre estivemos mortos. A personagem interpretada por Robert Redford é Robert Redford, um homem, um idoso, nós, desgraçados e condenados a sofrer sem direito a estrebuchar. O que sabemos? Há uma carta, é com essa carta que se inicia o filme, mas poderia ser com essa carta que o filme acabava, poderia ser com essa carta que qualquer homem, não só aquele, se apresentava e despedia do mundo. 

13th of July, 4:50 pm. I’m sorry. I know that means little at this point. But I am. I tried. I think you could all agree that I tried. To be true. To be strong. To be kind. To love. To be right. But I wasn’t. And I know you knew this, in each of your ways. And I am sorry. All is lost here, except for soul and body. That is, what’s left of them. And a half day’s rations. It’s inexcusable, really. I know that now. How it could have taken that long to admit that, I’m not sure. But it did. I fought to the end. I am not sure what that is worth, but know that I did. I have always hoped for more for you all. I will miss you. I’m sorry.

Tentei ser isto e aquilo e falhei. Falhei, não existe outro modo de estar no mundo. Falhar e falhar.

Arquivo

sonja valentina

sonja valentina

- Se alguma vez escrevesse um livro, chamava-lhe “Arquivo”.
- Porquê?
- Porque um livro é precisamente isso, um arquivo. Um arquivo de ideias e pensamentos, de ilusões, de fantasias, de segredos, de disfarces, de medos e esperanças. Percebes? Como se fosse um legado, uma herança; como se fosse um testamento de sentimentos e emoções. Algo concreto que se deixa ao outro, para que ele use ou não. Uma dádiva. 
- Por acaso, não concordo com essa perspectiva.
- Não?
- Nem por isso. Penso que não gostaria que a minha herança para os outros fosse um arquivo. Um arquivo é sempre algo extático e definitivo, não achas? E um livro também, por acaso. Sabes que preferia deixar como legado? Um caderno em branco, um caderno vazio, um caderno novinho; um caderno, para que o outro o pudesse preencher como desejasse, construindo o seu próprio arquivo. Preferia deixar possibilidades e não arquivos. 

Chão, interrogação, planeamento, fama

67. CHÃO

Os seus poemas eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer, outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e afinal morresse. 
Era por isso que escrevia, foi tudo o que declarou.

79. INTERROGAÇÃO

O homem perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido embora os prédios.

92. PLANEAMENTO

Um homem amputou o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo.

106. FAMA

Declarava sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre, com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.