Pororoca

para a Francisca Camelo e para o João Coles

em Camden Market
a Francisca
como um aedo
que desenrola o rolo
e pigarreia
em preparação para o canto
lê-nos um poema-lição
de um poeta
justamente esquecido

é como uma cena
de Bucha e Estica
quantas vezes é possível
bater na cabeça de alguém
até o gesto
perder a piada?
a resposta
neste caso é
nenhuma
mas o canto
prossegue ininterrupto
até sermos assaltados
pela expressão
pororoca de vontades

o que raio é uma pororoca?
só o João
sabia a resposta
eu acho que é uma vaga
uma vaga como
uma vaga profissional
não
uma vaga como
uma onda

ah!
exclamámos em uníssono
e o mundo de súbito ficou
um lugar mais alegre
a rua movimentada era agora
uma pororoca de gentes
as minhas fajitas vegetarianas
uma pororoca de desesperos
e mais tarde
o abraço de despedida
uma pororoca de amizades

Bang Bang, Kiss Kiss

“One dream, one

 life,   One lover”

- Lana Del Rey

 

Volta perdida fé. Cai sobre mim como uma cascata de espuma,
como a espuma melada daquela noite na discoteca. Aquela
que deixou os meus seios ainda mais generosos à gravidade
do som, ao desejo ardente das que pouco trouxeram consigo.
Volta perdida fé. Não a de tias obcecadas com homens de saias,
em missas de perdido tesão, sem vinho digno, nem rock sobre
a mesa. Volta perdida fé. A mais simples. A dos dias. Aquela
que me diz ao ouvido que no amanhã nascerá pura a flor do
mais suave  arco-íris. Que me contas, hoje, tristeza? Deixa 

a pureza da minha solidão sozinha entre as silvas. Esquece o
doce mel das bocas molhadas das mulheres que amaste. Segue
em frente, ao precipício do fim, sem nunca voltar o rosto frio
ao passado. Perde-te pelas ruas que não conheces. Deixa-te
adormecer nos pesados livros e sonha que tudo será possível:
a renascida flor, a pistola de plástico, o beijo, sempre o beijo.  

Volta perdida fé. A fé nos dias. A fé nos homens, nos gestos
inclassificados e cheios de generoso Amor. Sim, o puro Amor.   

Barbara Stronger (sem acento)

Butcher Billy.jpg

Butcher Billy (pormenor)


Índice de Bolsa

“um terrier da montanha (…) pela raça
e instinto natural se destinava a caçar
o texugo e a afugentar a raposa da toca”

                                 Wordsworth

 

Da época pré-bolsa
pouco terá restado. Talvez apenas aquela
camisa que usava na missa aos domingos.
Era o tempo [do segredo] em que a alegria e a
espontaneidade lhe corriam pelos lábios e dedos. 

Depois veio a bolsa e o balão começou
a crescer a crescer a crescer.
No gráfico a seta crescia dia para dia
à velocidade da luz.
À noite sentado na secretária fazia listas:
- mudar o Asus por um Mac
- mudar as lentes (umas maiores mais inteligentes)
- usar apenas Gant (ou Sacoor)
- olhar sempre por cima das sobrancelhas
- dizer pausadamente os autores bibliograficamente falando.
- não mover a cabeça (nem para a esquerda nem para a direita)
- sorrir pouco
- selecionar selecionar selecionar 

O pior foi quando a bolsa acabou.
A seta em depressão vinda do alto cume
caiu em mil estilhaços sobre o chão.  Era necessário outra vez
sorrir e dizer olá. Olhar cara a cara os esquecidos amigos.
Tudo isso veio a aprender na empresa que
 nenhuma importância dava aos balões. 

À noite no seu quarto alugado escrevia:
no more illusions no more illusions
no more illusions no more illusions …


Três Poemas de Ismar Tirelli Neto

Eu caminhava           ponto

Não cismava na mecânica da coisa
Nem ela
Cismava em mim 

Sujeito mais encontradiço
Não havia não

Esmolava circunstância
Dizia condescenderei em tudo 

Dirão "cidade"
Não objetarei "cidade" 

Sujeito menos obstante
Não haverá

Ficarei como pede a prudência
Pelas praças virguladas 

Logrado um lugar
Nos apropósitos  

Todos, no erro
Em que laboro 

Laboramos todos 

*

 

Um desditoso

Tenho desditas
Não pretendo me alongar no assunto
Gostaria de cravá-lo em alguma parte
Esta grandeza
Ter desditas
Já ninguém parece tê-las
Eu as tenho
Uma soldadesca
Tenho desditas no corpo nos corpos
Onde fui me lavar
Na alma de cardos desditas
As que a mim inerem
As que venho
Como Jó
Recolhendo
Quem vem lá
Um desditoso
Eis o que sou
Um desventurado

Já ninguém é
Já ninguém tem desventuras
Já ninguém tem antigualhas assim
Sobre a credência
Pois eu tenho
Cirando em torno delas
Passos escusatórios
Lâmpadas acesas a meio da tarde
A noite que cai as portas com ela
E este sorriso que cairá
Um por um
cairá
São
As desditas
Não, não pretendo me alongar no assunto
À minha maneira
Devo ser um homem feliz
Que tem cirandas
Estas cirandas
Quem não seria feliz
Com estas cirandas de cardos
Tendo uma alma de cardos? 

*

 

Eis o nosso novo hóspede

o mar
pôs longa mesa de cedro no fundo do mar
cobriu-a de pregos
sal negro
prataria saqueada aos naufrágios
postados diante dos pratos
dos cartões
diante dos pratos
relutamos reconhecer os nossos nomes
queríamos
- aqui trocamos olhares
viscosos azuis -
moer todo o turismo
descasar chave
fechadura
voltar voltar
era impossível
entredissemos
azuis
não resistiremos muito tempo
tentamos emitir
alguma espécie de sinal
que desse a entender
ao nosso hóspede
que não resistiríamos muito tempo
não resistimos muito tempo
estávamos famintos
estávamos azuis 


[Perfil de Ismar Tirelli Neto na Enfermaria 6] 

 

Novos possíveis

hiperconsumo.jpg

I

O sobre-homem (Übermensch) nietzscheano passava-se do sentido, a sua condição de outro homem, mais do que de super-homem, permitia-lhe viver intensamente sem carecer de qualquer sentido pré-estabelecido. E mesmo ele, demiúrgico, apenas introduzia um pequeníssimo grau de sentido no decurso das suas acções. Tudo isto para favorecer a novidade, a inventividade e, com isso, curto-circuitar os velhos valores provenientes da cultura cristo-platónica, causa primeira da desnaturalização do homem, do amor tóxico pelo Transcendente e da imposição de uma moral para escravos.

Diferentemente (talvez pudesse dizer “pelo contrário”), Gilles Deleuze e Félix Guattari, lendo, em nostalgia, o Maio 68, escreveram que ele prometeu novos possíveis, daí a palavra de ordem que se lhe podia aplicar: “Algum possível, senão sufoco” (Du possible, sinon j’étouffe – Deux regimes de fous. Texte et entretiens 1975-1995).

Sinto uma certa perplexidade por ver dois comentadores enamorados de Nietzsche enquadrarem a revolução dos estudantes franceses numa frase que, creio, o deixaria triste (Nietzsche teria preferido: “Algum impossível, senão sufoco”). Mas bem, foi um grito pronunciado “à bout de souffle” (em desespero de causa), um grito filosófico e antí-filosófico, político sobretudo, escolhido talvez depois de uma noite de copos (que Nietzsche detestava). Era preciso irrigar com palavras a vontade, às vezes cega, de mudança. E o futuro parecia estar cheio, quase pletoricamente, de possíveis, enquanto o presente entrava num impasse (político, com o velho Charles de Gaulle, espartano, a censurar os ventos da mudança; social, resistência aos novos hedonismos febris e consumismo desenfreado, mas também o desejo de liberdade sem porquê; e filosófico, a velha escolástica continuava a ocupar os principais lugares dos templos do saber (universidades e “grandes écoles”), onde mais do que a verdade ou o questionamento crítico, contam os privilégios do prestígio social e da segurança económica.

Bem, se podemos separar o sem-sentido nietzscheano da vontade sôfrega de possível de Deleuze/Guattari, podemos, simultaneamente, aproximá-los porque eles foram comunicados como gritos, sinais de afirmação de vida por vir, e assinalam a ferros quentes a crítica aos seus presentes, a forma como julgavam intolerável viver no seu tempo.

floresta-no-outono.jpg

II

E hoje? A crise global que atravessa o social e o ambiental, com ramificações, claro, no político e geopolítico, lança um manto de chumbo sobre o presente, que, ao contrário das crises do século passado, parece não poder apontar a alternativa de futuros luminosos, pelo menos facilmente. E esta talvez seja a grande diferença em relação à crença entusiasta no futuro que quase sempre percorreu a história da humanidade (mesmo nas escatologias invertidas da Grécia antiga e clássica, onde a Idade de Ouro ficava no passado). Estamos, pois, encurralados numa crise aparentemente sem fim e pressionados pela urgência climática.

Porém, porque temos um mecanismo qualquer que impede o suicídio generalizado, agarramo-nos a alguns sinais de mudança, antevemos pela frincha da história alterações ao statu quo, que basicamente se consolidou em torno do consumo e do prazer (muitas vezes misturando-os). Novos possíveis parecem querer emergir, feitos não da força da imaginação, como no Maio 68 (L’imagination au pouvoir, dizia-se), mas de outras racionalidades, menos centradas nas competências e apetites individuais e numa produtividade predadora. Há uma vontade tangível, embora frágil, volátil, de vidas mais frugais, ambiental, social e psicologicamente mais sustentáveis.

Recorrendo a alguns estudos realizados ultimamente em França e a dados de L’Observatoire société et consommation, tomando por razoavelmente credível a informação que recolho das interacções quotidianas, acreditando que o que sinto corresponde a qualquer coisa de relativamente comum, e, claro, colocando nisto tudo um pouco de fé, deixem-me expor algumas linhas de novos possíveis, aceitando, e até querendo, como Nietzsche, o sem-sentido da actualidade.

Parece que nos últimos 10 anos cresceu muito a ideia de consumir mais responsavelmente, com mais sentido, ganhou-se consciência de que a maneira de fabricar o que comemos, vestimos ou utilizamos tem um impacto no meio ambiente e na qualidade de vida dos trabalhadores produtores. Há cada vez mais pessoas a exigir, de si e dos outros, comportamentos eco e sócio-responsáveis. Desenvolve-se a frugalidade escolhida (mesmo se a luta pelos aumentos salariais se motiva bastante na vontade de consumir mais), comprando pouco e preferencialmente produtos locais, em segunda mão, prolongando a vida útil do que já se possui (veja-se a moda do retro). Parece emergir uma nova cultura material (substituta dos “trinta gloriosos anos de consumo” pós-Guerra), elogia-se a abstinência em vez da acumulação, a temperança, a reparação, a partilha. Prefere-se o tempo livre ou o lazer em vez da ostentação de objectos e estilos de vida caros (financeira e ambientalmente). Escolhem-se empregos menos cronófagos, ainda que pior remunerados. A economia colaborativa está na moda. Consumir menos começa a ser sinónimo de “consumir melhor”. Seduz-nos o minimalismo (less is more), a parcimónia. Retornamos a alguns princípios franciscanos: livrar-se do material para potenciar o espiritual e criar uma harmonia com a natureza.

É verdade que nesta redução ao essencial emergem novos sinais de distinção social. Já não se trata do carro “bomba”, das jóias, das roupas de marca, da mansão grande e kitsch... mas continua a haver hierarquia, pela erudição, as experiências culturais exclusivas, as férias exóticas, o tempo livre... Enfim, retira-se sentido de um lado e coloca-se noutro. Porém, parece-me preferível, por exemplo, a bazófia presente no uso correctíssimo da língua portuguesa ou numa erudição cinematográfica à la Cinemateca de Lisboa, do que a de um carro espampanante. Agridem-se menos os ecossistemas e os parceiros sociais desafortunados, ou pouco performativos.