Cerca del origen*

La ley del cielo

 

          

Mis antepasados inventaron la vía láctea.

Juan Carlos Mestre

 

Contempla el cielo como quien lee un libro antiguo. 
Como quien repite la fábula nocturna
de la que está hecho el mundo.
Ver muy lejos en él es mirar hacia atrás,
retroceder en el tiempo. Observarnos 
tal como éramos.

Hay palabras que se forman en la oscuridad
para hacer ilimitado el cielo 
en cada uno de nosotros. Un ceremonial 
que se resiste a olvidar su germinación
bajo tanta luz invadiendo a deshora.
Y ahí están las elegantes señales del pasado, 
el vasto territorio como un cráneo vacío, 
la humilde narración de los hechos.
La imposibilidad del cielo como lo único posible,
sin que nada nos divida aún.

Y así decimos, ya llegan las estrellas, 
bajo el secreto del largo camino 
que nos trajo hasta aquí 
mientras se precipita sobre nosotros
como si la lluvia nos sorprendiese 
hablando en la calle.    

 

El don de habitar

Si el espacio es infinito
estamos en cualquier punto del espacio
.

J.L.Borges

Las estrellas se alejan de nosotros. No cabe duda. 
Los astrofísicos dedicaron la fuerza de mil hombres 
a constatar que el universo 
se quiebra como una botella vacía.
Que su violencia es elemental, 
armoniosa. Ineludible.
De este modo, formulo 
que existe un don difícil de comprender 
cuando busca el pájaro ocupar 
su término exacto
entre la tierra y aquella distancia inasible,
cuando el hombre establece, sin drama alguno, 
su demérita medida. Un don 
al margen del designio de cálculos y dioses 
aún por llegar. 
Mientras, nos vamos deshaciendo 
en esta dulce incertidumbre de avanzar en la nada.
Frágiles, sin importancia alguna.
El viaje será largo. 
Tenemos el único propósito 
de aprender a ser mortales.

 

Os poemas são do livro  Cerca del origen, Mérida, Editora Regional de Extremadura, 2013.

 

Eu serei convosco

Um homem corpulento, empastado de perfume e brilhantina, sentou-se ao balcão, acendeu um cigarro, levou o whisky à boca e cumprimentou com um grunhido a mulher que estava a seu lado, uma prostituta ucraniana bêbeda e ensonada, que sorria sem abrir a boca para não mostrar a ausência de um dente molar, e repetia pagas um copo, pagas um copo à menina? O homem estampou uma nota de cinco no balcão e pediu silêncio. Pega na nota e some-te. Cinco euros não chegavam para o silêncio. Cinco euros não chegar para a comissão. Patrão pagar mal. Mais uma nota de vinte e pisga-te. Aproximou-se outra prostituta, desta vez uma mulher sábia para entender que o sofrimento alheio se curava com silêncio e companhia e carinho e uma mão na nuca. O homem e a prostituta permaneceram calados e sentados durante um bom bocado, depois o macho pegou na fêmea pela mão e arrastou-a até à pista de dança. Sofro como um cão. Sofro mais do que um cão. Sussurrou ao ouvido da sábia e esta respondeu-lhe com silêncio. A música terminou e os dois dançavam, sem música e mexiam-se e trocavam sussurros. Sofro por uma mulher, dela resta o perfume e um casaco. A sábia puxou-o para o quarto e, despida, disse-lhe que as mulheres partiam uma vez, só uma vez, deixando para trás o cheiro do perfume, o cheiro da saudade, daquilo que não regressaria. O homem nu exigiu mais uma prostituta. Apareceu a ucraniana desprovida de molar, pediu outra. Partilhava o colchão com quatro prostitutas e lamuriava-se. Abraçado às quatro, penetrando-as como se fosse máquina, pouco sentia para além da dor infligida pela partida daquela que amava. A frase daquele filme. Enche-me os buracos. Os buracos cheios e o coração perfurado. Esburgou as quatro prostitutas. Rompeu o colchão à dentada e acertou com um murro na cara de uma das prostitutas e lembrou-se do último dia com a mulher que amava. Chegaram os seguranças e escorraçaram-no ao biqueiro do estabelecimento. Ainda lhe restava algum dinheiro. Caminhou até encontrar uma estação de serviço. Abriu uma lata de cerveja, fumou, abriu outra lata e fumou e uivou. Nevava e um homem uivava no meio do nada, uivava na tentativa de alcançar a princesa desaparecida, uivava em vão, todos os uivos são em vão quando se está a mais de trezentos quilómetros de distância da princesa. A empregada da estação de serviço chamou-o para dentro, viu-o chorar e consolou-o, disse que aquilo não era nada comparando com a fome em África, que nenhum problema era nada comparando com a fome em África, com aquelas barrigas cheias de ar. E ele, mascarado de noite e de fantasma, chorava e soluçava e ajoelhava-se, deitava-se na neve, nu da cintura para cima e deitado na neve, sozinho com as suas memórias, como se a empregada ali não estivesse, como se o planeta se tivesse ofuscado.

Santo Agostinho no Intercidades

O cabelo dela era uma tentação de éguas selvagens.
Indomáveis contornavam o seu rosto e pelo vale
do pescoço corriam até às colinas do peito.
E prendiam o meu olhar
num êxtase de Santo Agostinho:
Senhor, dai aos meus olhos a castidade – 
mas não ainda! 
Só para disfarçar, cada vez que as crinas dela
galopavam na minha direcção,  
eu fazia penitência e flagelava a vista
com as borbulhas do garanhão ao seu lado.

Cultura de massas vs. de classe (cinéma de Cannes)

Título de um artigo do Le Figaro: “Festival de Cannes: Cinéma, de la culture de masse à la culture de classe”.

Cannes é ainda um festival onde o cinema de autor respira sem se intoxicar com as apreciações rasteiras da indústria cinematográfica (grandes estúdios e produtores, mas também, parasitando e sendo parasitado, o público mainstream, gosto médio inclinado para os efeitos especiais, uma erótica básica, violência justiceira, perseguições velozes… tudo rematado num happy end soprado por um deus ex machina).

Mas há um certo risco nesta resistência à banalização, inscrito no título do jornal: que para fugir à cultura de massas se radicalize a cultura de classe. Com intensidades diferentes, a Palme d’or não distingue apenas o experimentalismo e a erudição estéticas, por exemplo Pulp Fiction ou The Piano, filmes de que gosto muito, são patchworks desenvolvidos em cima de muito do cinema de fim de semana.

A solução não é simples, sem uma certa selectividade cai-se no banal, sem uma certa banalização fica-se no elitismo estéril. Há uma dialéctica boa que é preciso alimentar: aumentar a complexidade formal, poética e técnica das obras mas deixando linhas de fuga para os horizontes de expectativa mais rudimentares. Passar do “cimo” ao “baixo” e do “baixo” ao “cimo”, horizontalizar tendencialmente o que se produz. Massificar um pouco a cultura de classe e classificar a de massas. Acabar com os compartimentos estanques que, também na arte, criam condomínios fechados habitados em exclusividade.

Mas fique claro que não se trata, ainda que camufladamente, de um novo Realismo Estético, da arte ao serviço da “revolução proletária”. A arte é suficientemente revolucionária por si mesma, não precisa, nem deve, servir qualquer causa extrínseca. Mas precisamente, se a sua função, além de embelezar o mundo (e haverá algo melhor do que o belo?), é a de mudar formas de estar e apreciar o mundo, transformar os códigos de intersubjetividade, projectar utopias que questionem os statu quo ante… Numa palavra, se ela existe para instabilizar o que parecia fixo, então tem de ser o mais geral possível, abrir poros comunicativos entre diferentes campos: classes sociais, profissionais, nacionalidades, regionalidades, géneros, idades, ideologias… A arte produzindo forças que entrelaçam o que parecia irredutivelmente separado, a arte como catalisador comunicativo sem, contudo, se massificar. 

Os meus Palme d’or preferidos (não os vi a todos):

Taxi Driver/Martin Scorsese

Apocalypse Now/Francis Ford Coppola

Paris, Texas/Wim Wenders

Sex, Lies, and Videotape/Steven Soderberg

Dancer in the Dark/Lars von Trier

Elefante/Gus van Sant

Peter Reading, Sem Título

tradução de Hugo Pinto Santos

autocarro 53 aproxima-se do término;
velho inglês, asseado e sartório,
enfarpelado num tweed Manx, cinzento de uma operação bem aparada:

Demasiadas coisas erradas, uma sugestão de Gibbon,
escolaridade e pão e roupa e maneiras,
o declínio da era, tristezas de Elgar;
demasiadas coisas erradas, coração podre e insónia,
úlcera e hipertiroidismo,
é concebível no espaço de uma vida o fim do mundo,
voo de pardal breve pelo pálio do festim.

 

Peter Reading, Evagatory, Chatto & Windus, 1992

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