Michael Symmons Roberts, Jairo

Tradução de Hugo Pinto Santos

Então, Deus leva a tua filha pela mão 
e arranca-a do leito de morte. 
E diz: «Dá-lhe de comer, está esfaimada.» 
 
Dás-lhe frutos com exteriores espessos  
– romã, meloa – 
comida dotada de peso, que a mantenha aqui. 
 
Esperas que, se ela comer o suficiente, 
a luz e o pó e o amor 
que tecem a matriz do seu corpo  
 
não se desfiem, nem fiquem tão puídos  
que o sol da manhã a trespasse, 
sem qualquer sombra, completa. 
 
De alguma forma, esta reanimação 
cortou cerce o medo da morte 
o choque da presença. Dá-lhe a comer 

o cordeiro, ovos, pão ázimo: 
põe de lado as ervas, ela tem um doloroso 
jejum a quebrar. Senta-te junto a ela, 

aparta-lhe as peles para que ela possa engolir, 
e repara como a alvorada  
desperta cores no seu rosto recentemente beijado. 

Michael Symmons RobertsCorpus, Jonathan Cape, 2004 

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False start

O primeiro beijo deles foi na marquise. 
Rezaram depois a primeira missa. 

No dia seguinte, ouvia-se nas paredes, 
tratavam já de simplificar o outro - 
por razões afectas ao clima, 
iriam estar – tinha-de-ser – um tempo fora. 

Tudo tem o seu começo – 
em janeiro, em abril, a meio de setembro. 

Em marquises, 
o que começa, 
tende a anunciar, 
desde logo,  
sonhos perdidos, 
um equívoco, 
uma falsa partida.

Nereu J’uchuy Anqas tra(du)zido por Evelyn Blaut-Fernandes

do livro Antologia da poesia moche (no prelo)


 

o momento

e eles estão prontos ao rodarem como aves que se voltam para levitar no vento tudo é certeiro agora que desliza lado a lado pelo que invejo o jeito dos seus corpos para aguentar e prolongar a descida veloz opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem e em equilíbrio no ar hesitam numa culminação que partilham com o mar observo dois surfistas a caminho das ondas as pranchas   flutuam ao lado e ao longo do lento declive da praia os joelhos e a cintura penetram naquele abraço elementar suspendo a escolha enquanto uma onda de milhentas se forma e se aproxima

 

a natureza

quando a meio caminho da derrota a mente leva iludindo e excedendo o lugar que ela advinha entre penumbras e profundezas as correntes de ar as ocultações em agosto esta brisa momentânea que primeiro atravessa depois se prolonga até sentirmos como um esse som de água que é som de folhas tudo isso em mesclas e agitações evoca os cursos por onde um poema flui pede a sua escrita em permanência não quietude mas pulsação e voz tantos tons e recantos preenchidos tantas pedras ocultas e escuridões diurnas sob as árvores nenhuma leitura simples revela por inteiro este variável texto um poema

 

a metamorfose

corre esta água imaginária mas enche também lagos e lameiros na base do vale alimentados a crer no que se vê pela mesma nascente e pela mesma corrente assim como o azul da água nem todo ele azul também se junta a tons de solo erva e caule quando o vento desalinha e o aparta de tal modo que a mente em confusão saudável num abandono dos seus poderes à ilusão poderia nadar em metamorfoses e crer que a água real se move como um fluir de flores pelo outeiro abaixo as campainhas azuis enchem o veio de um antigo regato que se eleva como se houvera água de novo onde flor a flor as campainhas correm no seu leito cada curva ou arroio cada fio afluente descoberto pelas flores e nem só na encosta

 

antes da dança

os rostos navajos têm a aridez da paisagem e o movimento com o vento do oriente e o movimento contra o vento do ocidente casam nas suas rugas aguardam sentados o momento no chão de terra falando pouco ou dormem como a mulher que encostada à parede vai escorregando para acordarem no clangor da pulsação do tempo com o primeiro tambor ainda não há dança e ninguém diz quando começa a espera para o índio é meia dança e assim esperam qualificando o momento pela recusa em medi-lo o momento é expansível arde e não se gasta sob a luz crua da sala da dança

 

a galeria das raposas

lembras-te da manhã em que te acordei aos gritos e o animal aproximava-se não de um lado para o outro mas em direção à casa e nós a nos esticarmos para ver mais o máximo que podíamos e então vimo-la desviar-se intimidada pela habitação e vimos quão totalmente os dois mundos eram díspares enquanto aquele perfeito ideograma da agilidade e liquefação fluía afastando-se de nós rítmico e oscilante e num fulgor final uma casa comprida a galeria das raposas assim tu chamaste ao andar superior porque de lá podias ver o caminho da raposa através do campo em frente e podias segui-lo de uma janela à outra o caminho da raposa a todo o comprimento do prado paralelo à linha restritiva de parede e umbral ou então podias seguir até aí o sentido daquele percurso sinuoso
 

o paraíso

para onde havemos de voltar quando alijarem esta insurreição de tristes tetos desespero também nos é dado não merecemos nem sua nem sua posse não há outra ponte senão o fio da paciência outra via senão a vontade de reaver o paraíso esta inclinação para resistir às persuasões de um vento que sem significado soa onde o seu sentido já cantou é uma luz de lugar tanto quanto o próprio lugar não uma face apenas a expressão na face a dádiva das formas configura colinas e pedras o vento empurra as nuvens para longe e as nuvens afastam-se desenredam-se esboçando uma saudação onde o espinho do cardo prende o manto sacudido e desfiado que ecoa o seu voo e o mesmo vento agita as linhas entrançadas do bosque as radiais avenidas de luz suficientes para com elas traçar uma cidade o paraíso é-nos dado e da clarividente dádiva somos privados no caminho para o paraíso estamos perdidos nas escassas ruas do nosso despojamento

 

a porta noturna

na colina noturna no céu claro ali se enquadra a tua cabeça que se move apenas e acompanha o céu como uma nuvem entrevista entre ramas ri nos olhos a estranheza de um céu que não é o teu a colina de terra e de folhas encerra com a sua massa negra teu vivo olhar tua boca tem a ruga de uma doce cavidade entre as costas distantes parece jogar com a grande colina e a luz do céu para me agradar repete esse marco antigo e o entrega mais puro mas tu vives em outro lugar o teu sangue terno foi feito em outro lugar as palavras que dizes não correspondem com a áspera tristeza deste céu não és mais que uma nuvem dulcíssima branca presa a uma noite entre ramas antigas

 

o tempo

só o sol e a lua poderiam ouvir longamente essa canção pelos milênios do nosso silêncio mas o sol e a lua têm em comum com outros deuses e apenas nós que inventamos os deuses mas não o sol e a lua ouvimos a orla e a origem em suas falas sem palavras ouvimos o espaço gerando o tempo uma vez mais nas cadências e cordilheiras dessa cor lá está Pachacutec e também os pintassilgos a cantar o taki matinal colorindo o tempo ensaiando mais uma vez em torrente e gota em cachoeira e aerófono esses séculos anteriores a chegarem aqui onde vieram para medir e calcular tudo em função dos próprios fins agora voltamos com os pintassilgos para sermos até antes de sermos e vamos demorar

Trevi, sabem?

 – Bonasera, ragazzo
falou-me a loba sexy no palato 
que nós lado a lado cruzados de olhares 
num desses dates pirosos em lábia 
e engate, erotizando lendas 
   bebendo cigarros 
sentados na scala onde cristo 
passeou pavão sua santa bondage 
sem que a lua nos mingue o charme, 
enquanto nela nem buço nem obesidade 
toda pernas 
                copas 
                classes 
                                e eu babado, sabem?  

Logo me ficou pé para trás 
quando acaso me contou ter feito 
maternidade a mitos e estátuas sem pai, 
uivando quase biblioteca história de arte 
que colecionava michelangelo e pietàs 
sem sebastião amargo na capela retrato 
nem pincelada de blá blá blá 
                tão produto nostálgico 
                tão euro 2004 
e nisto se adiantou de novo o atraso 
no calcanhar, não que me 
impressione fácil o paleio de erasmus, 
mas que nela nada havia de nacional em traço: 
pouco lhe importavam estádios 
pouco lhe importavam traumas geográficos 
                                                      ela loba, sabem?  

Puxou-me pressas subimos do degrau, 
eu tendão elástico e ego educado 
prensei no chão a sua beata 
tornando sola em pisa-papéis sapato, 
depois ofereci-lhe casaco farsa de cuidado 
enquanto lhe pedia parte do braço 
para então improvisarmos uns passos 
tão novela da tarde 
                ora distantes no radar 
                ora chegados em abraço 
mastigando ruas rápidas como se 
fragola pingando cone bolacha, 
rindo casal dos bambini desfilando 
catequeses de gola desdobrada, 
olhando o tevere correndo caudal 
cafeinar-nos feromonas e miocárdios 
quase latte macchiato 
          nespresso sem cápsula 
                                  e nós unha na carne, sabem? 

Calhámos âncora na fonte mergulhados, 
puro plágio daquele fellini clássico 
nadando pés de barro na água 
como se pugilato de barragem, 
e chegada então a parte de dar mãos 
tipo cinema antiquado 
até de personagens trocámos, 
que agora eu alfa 
                 ela molhada 
próximos quase quadriculado 
               cotando em milímetros a mirada 
               angulando grau raso nos lábios 
perto perto que lhe saco bacci 
e foi quente quente que acabámos 
               ora beliche um no outro deitados 
               ora sexo bruto com carinho de 4 
que o sangue nos fervia forno 
e liberdades, enquanto o benito 
assistia pouco facho à nacionalização 
da indústria do pecado das carnes 
e o papado disfarçava casto não ver 
que hoje preservas são rebuçados 
                              tudo golpes de estado, sabem?  

Na ressaca, dela apenas colchão vago 
com um chocolate à cabeceira  
embrulhando retângulo as palavras 
– Ricorda, ti voglio bene ragazzo 
que lidas tornavam a alcateia orfanato, 
então voltei rastos à fonte palco passado 
deitando-lhe uns trocos a naufrágio, 
mas nada nada nada 
da loba perdi a pegada 
e ali fiquei plebe tornado, 
               tossindo versos 
               afogando lágrimas de macho 
que poemas são cidades 
leia-se roma ao contrário, 
e moedas salário de deuses incapazes 
               não nos sabem 
               não nos ouvem 
               não nos guardam 
                                             e ci vediamo, sabem?  

Baptismo do caderno 3

Lido ontem, 10/05/2015, na Fyodor Books

Sobre a Enfermaria 6

Esta pequena editora, com uma ontologia ainda incerta, constitui uma espécie de microfísica da edição em Portugal. Faz livros à mão, artesanato, peças cheias de gosto e de amor. Campo de resistência e de autenticidade, estabelecendo uma boa articulação entre o digital – cultiva este blogue muito animado num talhão do mundo encantado, acelerado e evanescente da blogosfera, mesmo mantendo-se fiel a uma frugalidade estética e mediática – e o papel, com três Cadernos e mais três livros, para que os leitores possam também cheirar os textos.

Sobre este Caderno

Se nos atrevermos a catalogar os géneros de produção de discursos relativamente ficcionais, os dois primeiros Cadernos misturavam poesia, ensaio e prosa, o Caderno 3 retém a poesia, é um lugar de poetas para poetas, jogo quase sem códigos e que poucos sabem jogar como deve ser (gosto, pontualmente, de ser prescritivo). Contém alguns autores consagrados, pela crítica e pela recepção dos leitores, e outros à espera de rasgar o véu da ignorância do mundo da poesia. É uma aposta justa e equilibrada, a Enfermaria 6 gosta de provocar os horizontes de expectativa dominantes, desconstruir os cânones.

Sobre a poesia

Não me atrevo a teorizar acerca do ser da poesia, mantenho com ela uma relação de claro-obscuro, e creio que é a boa relação, e mesmo que não o seja, é a minha relação possível. Tanto mais que nenhum poema decente, ou indecente, se deixa apanhar, sequestrar pelos hermeneutas do sentido, isto é, por quem julga poder agarrar a verdade última da intenção do autor. Cada poema é um jogo infinito de signos, deve ser portanto experimentado, mais até do que interpretado. Preferencialmente com o corpo todo

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