Hymno Homérico a Diónysos

Εις Διόνυσον  [7]
Tradução do grego de Miguel Monteiro.


A Diónysos

Lembrar-me-ei do famoso filho de Semélê,
Diónysos, de como apareceu junto à orla do mar jamais vindimado
Num promontório saliente sob a forma dum jovem rapaz
Na flor da adolescência. Agitava à sua volta o seu belo cabelo
Negro, e trazia sobre os robustos ombros um manto
Púrpura. Duma nau bem-construida apareceram
Do nada uns homens sobre o mar cor-de-vinho:
Piratas etruscos que um funesto destino levara até lá. Quando o viram
Acenaram entre si, saíram depressa e capturaram-no
Para de coração satisfeito o levarem para dentro da nau.
Dizia-se entre eles que ele era filho desses que são criados por Zeus, de reis,
E queriam amarrá-lo com grilhões dolorosos,
Mas as correntes não só não o prendiam, como caíam para longe
Dos suas mãos e dos pés. Ele permaneceu sentado, a sorrir
Com os seus olhos negros; o homem do leme apercebeu-se disso
Sem hesitar, chamou os seus companheiros e disse-lhes:
«Que poderoso deus é este que apanharam e amarraram,
Desgraçados? A nossa nau bem construída não o consegue levar.
Trata-se certamente de Zeus, ou então de Apollo do arco de prata,
Ou de Poseidon. É que não há dúvida que não é a humanos mortais
Que se assemelha, mas aos deuses que habitam as moradas do Olympo.
Portanto mexam-se, deixemo-lo de volta na terra negra
Sem hesitar, e não lhe metam as mãos em cima se não querem que ele se enfureça
E levante ventos furiosos e grandes tempestades.»

Assim falou, mas o capitão respondeu-lhe mal,
«Meu desgraçado, preocupa-te com o vento, puxa comigo o mastro da nau
E arruma as cordas. Deixa este aqui para os homens a sério.
Tenho esperanças de que ele chegue ao Egipto, a Chipre,
Aos Hyperbóreos, ou outro sítio qualquer, e que no fim
Nos venha a falar dos seus entes queridos, das suas posses,
E nos conte quem são os seus irmãos, visto que uma divindade o enviou até nós.»
E quando se calou pôs-se a puxar o mastro e a vela da nau.
O vento soprou contra o meio da vela, esticou os panos
Pelos lados, e subitamente aconteceram prodígios.
Começou por brotar ao longo da veloz e negra nau vinho
Doce e fragrante donde se ergueu um aroma
Divino. Os marinheiros viram-no e foram tomados pelo espanto.
Logo de seguida partindo do topo da vela estendeu-se
De cima até baixo uma vinha donde pendiam inúmeras
Uvas. À volta do mastro enrolou-se uma hera
Toda ela florida e a gerar belos frutos.
Os bancos estavam todos cobertos de grinaldas. Quando se deram conta,
Pediram ao homem do leme que conduzisse sem hesitar a nau
Para a terra negra. Mas foi então que sobre o convéus da nau o deus se transformou
Num feroz leão a rugir com toda a força. No centro da nau gerou,
Para demonstrar o seu poder, um urso de farto pêlo
Que se pôs de pé em cólera enquanto o leão no topo do convés
Os olhava com esgar terrível. Eles fugiram para a popa
Para junto do homem do leme sensato e corajoso
E ficaram lá parados e perplexos. O leão sem aviso saltou em frente
E arrebatou o comandante, enquanto os outros evitaram um funesto destino
Quando, ao verem o acontecia, saltaram todos borda fora para o mar brilhante —
Transformaram-se em golfinhos. Mas o deus apiedou-se do homem do leme,
Reteve-o, e concedeu-lhe as maiores bençãos. Disse-lhe:
«Coragem, meu velho, querido do meu coração.
Eu sou Diónysos o Altissonante, nascido de minha mãe
Semélê, filha de Cadmo, quando se uniu em amor a Zeus.»
Alegra-te, filho da bela Semélê. Não é possível alguém
Esquecer-se de ti e lembrar-se de como embelezar um doce canto.
 


A presente tradução integra um projecto de tradução integral dos Hinos Homéricos a ser publicada em breve e realizada por João Diogo Loureiro, José Pedro Moreira, Miguel Monteiro, e Tatiana Faia.

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Para uma ética da leitura [i]

I- Lê de tal forma que queiras que todos leiam dessa maneira[ii]

 

Comecemos pela leitura nas ciências humanas (com exemplos filosóficos extrapoláveis). As interpretações de Nietzsche, ao contrário do que afirmaram, entre outros, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida nas décadas de 60 e 70 do século XX, não são infinitas. Mesmo uma “obra aberta”[iii] como a dele reivindica leituras verosímeis, contra outras falsas (apresentá‑lo, à semelhança da irmã e.g., como germanófilo), denunciando as restantes por emergirem irreflectidamente de trabalhos hermenêuticos sem rasgo, encostados à moda da época. Pretende-se separar as leituras lunáticas das sensatas, as experimentais das canónicas, as académicas das iconoclastas, as instrumentais das desinteressadas, as inteligentes das anódinas... O intérprete não é soberano, intenção e efeitos do seu trabalho são orientados pelo conjunto delimitado (mas não fechado) de possibilidades de sentido da obra, horizontes de expectativa da época e práticas de interpretação conhecidas e usadas. Reconhecemos aqui um diagrama assímptota: há garde-fous[iv] contra leituras delirantes, mas desconhece-se o lugar exacto que demarca o desejável do indesejável; tanto mais que ela se desloca de acordo com a mudança dos horizontes de expectativa. E esta aporética limita seriamente o desenvolvimento de uma “hermenêutica do sentido” que em evidência cartesiana estabelecesse os códigos da leitura correcta, vilipendiando epistemologicamente (e até socialmente) as incorrectas. Queremos no entanto, socorrendo‑nos de Immanuel Kant[v], provisoriamente satisfeitos por chegar a um porto de racionalidade, avançar com a hipótese de uma ética da leitura. Testaremos a consistência de princípios a priori definirem uma “ética de leitura boa”.

Ela teria, contudo, duas premissas iniciais negativas: 1) ler bem não impõe uma fidelidade absoluta ao texto, onde o leitor encontrasse e coincidisse com as pegadas na neve do escritor. 2) Deve afastar-se, num certo antagonismo com o princípio anterior, o ‘jogo livre’ da linguagem no vazio, i.e., interpretações que sejam reescritas ex nihilo do texto original. Depois, como premissa positiva, haveria o imperativo do dever de ler bem. Como marca ética, mais do que metodológica ou epistemológica; o leitor (o seu ethos) desejaria, muito antes da vontade de descoberta (ou construção), esclarecimento e sistematização do texto, “ler bem”, os enunciados do mundo e das obras.

Arriscamos por isso, embora sem saltar no Etna, propor condições de possibilidade para uma “leitura boa” a partir do imperativo prático categórico kantiano, orientando-nos para uma metafísica da leitura. Seguindo Kant, o nosso imperativo obrigará à passagem do princípio subjectivo (“máxima”) ao objectivo (“lei universal”). Primeiramente, se em Kant se define como “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”[vi]; no nosso caso teríamos: lê apenas segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei [de leitura] universal. Ou seja, desejar que todos quantos lêem, leiam da mesma maneira que nós. Não (leiam-me bem, por favor!) na metodologia ou tecnologia, mas no dever de querer ler bem. Em segundo lugar, na formulação que Kant usa para a Menschheitsformel, em vez de “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”[vii]; teríamos: lê de tal forma que uses sempre o texto que lês como um fim e nunca como um meio; i.e., nunca se deveria intencional e instrumentalmente desvirtuar os sentidos dos textos, atribuir‑lhes estrategicamente um significado que não lhes correspondesse, usá-los como arma de arremesso ou armadura de erudição.

Desta forma, libertar-nos-íamos no momento originário da leitura de alguns acidentes empíricos que tantas vezes a condicionam (ler a Odisseia ou a Fenomenologia do Espírito em tempos de crise seria o mesmo, por princípio, que lê-la em tempos de opulência ou de cólera). A “leitura boa” não resultaria deste ou daquele fim a atingir ou atingido, deste ou daquele interesse circunstancial, mas do “puro respeito” (reine Achtung) pela lei ética da leitura. Embora, peço novamente a vossa atenção: sem imposições policiais. Pensemos em normas que não normativizam, i.e., que actuam na singularidade da cada circunstância e se esgotam nesse cumprimento. Caberia aos leitores, momento a momento, dar existência à sua ética da “leitura boa”. A lei universal – virtualidade, mas não irrealidade, imersa na subjectividade de cada um[viii] – ofereceria delimitações às especificidades de cada leitura.

Porém, apesar desta ressalva, talvez devamos objectar – retomando muito do argumentário anti-kantiano –, 1) que é demasiado formalista; incapaz de orientar as leituras concretas, empíricas a partir dos seus imperativos ideais, metafísicos, a priori; 2) que substitui as imposições exteriores por uma espécie de auto-regulação ainda mais constringente. É, e.g., difícil usarmos uma ética da leitura derivada de Kant na recepção das obras polimorfas de Nietzsche, Pessoa ou Joyce; às quais cada leitor deve aceder livremente, fragmentando-se, lacerando-se cognitiva e emocionalmente para entrar nos seus diferentes, muitas vezes incomensuráveis, estilos e temas. Em resumo: talvez estejamos sempre reféns da contingência do texto e da nossa circunstância, macro e micro. Na melhor das hipóteses soberanistas cair‑se‑ia num circuito fechado de leituras auto‑referenciais (academismo acrítico), abstraído de todas as causas e efeitos práticos, cognitivos, psicológicos, sociais ou políticos desse acto. Esquecendo, e.g., o que Rousseau disse de Julie ou la Nouvelle Héloïse: “livro com conselhos práticos para maridos e mulheres”. Ou que Flaubert foi a tribunal porque viram em Madame Bovary a prova de que defendia o adultério. A recepção e utilização nazi de Nietzsche ou, no pós-guerra, o heroísmo da superação (Überwindung) apresentado como chave‑mestra para ser lido em paixão sagrada. Por isso, para Hillis Miller, a necessidade de constituir uma ética da leitura não deriva das condições iniciais, a priori, para uma “leitura boa”, mas de constatarmos que leituras erróneas têm efeitos funestos (Don Quixote sofria de irrealismo por ler tantos romances de cavalaria; muitos dos que compram Economia para Totós acreditam na bondade natural do Mercado). A sua posição pode ser sintetizada assim: todas as leituras produzem efeitos, deve portanto constituir-se uma ética da leitura para mitigar as consequências excêntricas.[ix] O problema, daí destacarmo-la tão pouco, está no desenvolvimento de uma ética que seja capaz de regular as tergiversações sem instituir poderosos mecanismos de censura. Assim, ou regressamos a Kant e aos imperativos a priori ou seguimos pela via de uma codificação legislativa cheia de interditos.

Temos então duas possibilidades: a primeira a priori, a segunda, subsidiária daquela, a posteriori. Problematizam bem a questão da recepção, permitem teorizar deontologias jornalistas... Mas ajustar-se-ão aos livros por quem espontaneamente nos enamoramos?

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Haverá cavalos

Dou atenção a pormenores e a coincidências é a partir deles que tomo as minhas decisões. Por isso, já em viagem, surpreendi-me quando me dei conta que fazia propositadamente várias centenas de quilómetros para saber se ainda havia cavalos selvagens nos montes próximos a San Andrés de Teixido, que segundo o ditado galego vai de morto quen non foi de vivo, a norte do norte, numa zona em que a grande Ibéria não está entregue a abismos imaginários e sim a falésias reais onde o mar investe uma e outra vez.

Perto do destino abrandei e abri a janela. Estavam estacionadas algumas caravanas com matrícula francesa. De uma delas saíu um homem com óculos redondos muito pequenos e cabelo farto todo branco cuspindo para a gravilha os caroços de uma laranja. A paisagem apresentava-se como na infância e adolescência quando aos domingos de passeio subíamos os montes. Parei em sítios onde o horizonte se via desimpedido mas actuei como se não visse mais de cinco metros à frente dos olhos. Quando era jovem também não perdia um minuto a olhar o mar. Estava sempre presente. O tempo transcorreu e o horizonte continua a ser-me indiferente. Uma linha contínua que separa o mar distante do céu ainda mais distante. Um horizonte enganador, impossível de perceber. Há pessoas que se jactam de não acreditar em Deus, eu não acredito sequer no horizonte.

Ainda restavam cavalos. Adestrados, com selas e rédea curta. Uma palmada no lombo e eles afastam-se para o lado. Cavalos com nomes de personagem de banda desenhada, segundo escutei, outrora selvagens, para venda. Cavalos menos intratáveis, não acometem uns contra os outros e não molestam as éguas sem licença humana. Mas este ar que respiramos aqui fora, aqui realmente fora, não permite a total e forçada limitação da natureza. E por isso sei que não fiz centenas de quilómetros em vão. Não me vai permitir começar agora a acreditar no horizonte mas concede-me pelo menos uma renovada convicção de que os coices, por poucos que sejam, não cessarão nunca.

Muitos a falar

De Onde Fingimos Dormir como nos Campismos (inédito)

 

Querer-te no peito
uma constelação de barcos
e resolver depressa isto
falar limpo como o brilho 

Torna porém a imagem
o corpo rodando lento no
soco luminoso de praia
este bração nos lumes  

Rasgo valente mas extenuado
tu vens correndo e escrevia
deste lado a areia é muita
molhando num toque d’osso

Dás numa luz de corpo
resoluta e audaz que às vezes lembra
o encorpar a
bater de megafones marados    

Cumprimento os amigos
gosto deles e antipatizo
colaboro
e revolvo dentro nas bizarrices   

Amanhar depressa isto
falar tiro limpo
como brilho 

A moral certa

Em 1951, numa publicação intitulada Comício, Teresa Quadros dispensava conselhos  «sobre como adaptar o perfume que usamos a diferentes ocasiões» ou «usar jóias com uma certa classe» ou ainda «para ajudar as mulheres a acalmarem-se». Mais de cinquenta anos depois, Gonçalo M. Tavares escreveu as Breves Notas Sobre o Medoum pequeno livro onde se inclui um texto chamado «A moral certa», que parece piscarolho a um certo Proust (citado em Príncipes Reais). A ideia: a de que nos juntaremos sempre a quem tenha o «mesmo grau de confusão». Se numa mão temos uma autora feminina (não confundir com feminista) entregue ao supostamente fútil, na outra temos um autor (não confundir com deus) entregue ao pensamento.
Não é, no entanto, de nenhum deles que vou falar – e o que quero dizer, hoje, é mais ou menos breve. Desconfiando desde há uns meses que toda a gente (toda, mesmo) é igual, descobri finalmente a importância do meio. Quero dizer: tenho um amigo que é um leitor ávido, um homem curioso, de boa memória, sempre com uma resposta tão inteligente quanto bem humorada na ponta da língua. Para além disto, tem bom ar e juventude que chegue para uma vida generosa. Quando nos sentamos para falar é evidente que a coisa vai demorar: se ele acabou com a namorada ou se eu tenho problemas no emprego, é certo que vamos gastar horas na centrifugação de tudo quanto pode ser pensado sobre um único tema. Se por acaso tivéssemos mais do que um problema num dado momento creio que seria preciso uma semana para que tudo ficasse dito. Se o tema for a namorada vamos falar de clássicos russos, de filósofos alemães, de poetas portugueses, de deusdo diabo. Quando o tema for o meu emprego falaremos das rabidantes caboverdianas, do sol na Índia, de contos zen, da imaginação que deverá sempre ser maior que o entendimento. No fim, animados mas sem ter dito tudo quanto poderia ter sido dito, teremos que continuar vivos – e sem soluções.
Simultaneamente, há um mundo paralelo onde as coisas acontecem, exactamente da mesma maneira, sem tanto uso de palavras. Um mundo onde as namoradas acabam com os namorados, onde os empregos são miseráveis, onde Kafka soa a marca de tabaco, onde na música o horizonte é a RFM, onde artes plásticas são «isso até eu podia fazer, fôda-se», onde as coisas se arrumam dizendo que ela é uma cabra, que uma andorinha não faz a primavera, que a vida continua, que vai ali uma gaja boa, que hás-de arranjar trabalho, e que fizestes [sic] o teu melhor, destes [sic!] tudo o que podias, e isto é tudo por causa da inveja que os outros têm de ti.
E aquilo que para mim se vai tornando evidente é que este exercício de pensar, se for separado da experiência de viver, é irmão gémeo do exercício de não pensar que, de resto, nem sequer existe – porque, quer queiramos quer não, toda a gente pensa.No mundinho superficial de Teresa Quadros podia não estar presente o génio de um M. Tavares mas dele nunca se ausentou o coração selvagem. O meio, que nos quer obrigar a ser mais espertos do que a vida, contornando-a pela via da tese, não nos faz ascender ao céu. 
Teresa, como toda a gente sabe, era pseudónimo de Clarice Lispector.