Exercícios sobre a espera I

Eu não sei quanto a você, mas os peixes 
estão cada vez mais tristes nas fotografias 

Desenho um jardim para as plantas 
onde ele entregaria o corpo cansado 

De manhã compro ovos 
sou bem mais útil do que a tarde 

De tarde molho as plantas 
de tarde fumo cigarros 
e estudo a arquitetura da casa 

De tarde quebro os ovos 
amasso com farinha um bolo amarelo 
ofereço ao dia
 
A casa antiga 
eu desenharia um peixe em cada parede 
abro de tarde um livro antigo 

he knocks on the crown as though to 
dislodge a foreign body, 
peers into it again, puts it on again 

De noite a casa tem fantasmas 
a casa sou eu sou a casa 
as luzes acesas 
um livro que queima lento 

Eu ficaria pensando se não fosse aquilo tudo 
se não fosse aquilo tudo. 

Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz


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Na casa desconhecida há um pátio com glicínias. Ouve-se o relógio da igreja. São os sinos, a brindar com o seu “cântico nos beirais”. Há uma cozinha com uma grande chaminé, umas escadas em pedra, e um piano, “sempre tocado a quatro mãos”, que guarda as impressões digitais para o futuro. Há uma sala onde se joga às cartas, “um rei, uma vitória, uma dama de espadas”. Alguém puxa de um trunfo, rendido na certeza de poder baralhar, de novo, o destino, e encontrá-lo, novamente, ao amanhecer. É a carta da “juventude”. A que vale mais e leva tudo à frente. Num dos quartos ouve-se Beethoven, quinta sinfonia, e noutro fala-se do Zeca, da Carla e da Maria. Há um livro onde “tudo se escreve”. Está guardado na cave, onde a casa “estende os seus braços e ergue-se em tourada numa possível lezíria onde os sismos recuam a medo”. Na casa grande da Granja, arde um fogo, “por motivos que o fogo não entende”, e noutra casa há uma capela onde há anos brotaram objectos que estavam enterrados, uma sala com um palco e portas tapadas, e talvez pessoas emparedadas.

Rui Pedro Gonçalves nasceu em 1973, na freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo. Fez ali a escola primária. Depois foi estudar para o Cartaxo, para o Colégio Marcelino Mesquita, que já não existe. Fez a escola secundária ainda no concelho, e quando entrou na universidade, no curso de Geografia, na Faculdade de Letras, mudou-se para Lisboa. Viveu durante alguns anos na capital e depois voltou para o Cartaxo, para Pontével, para a terra da infância e para a casa de família, uma casa “muito grande e muito antiga, com muitos quartos, um espaço por onde já passaram várias gerações”.

O primeiro livro saiu em 2004, Uma Terra chamada Imaginário, com ilustrações de Inês Xavier. Foi publicado pela Câmara Municipal do Cartaxo, como recompensa por ter ganho o Prémio Literário Marcelino Mesquita, que distingue os melhores trabalhos inéditos nas modalidades de teatro, prosa e poesia, e que é atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.

É nessa terra chamada imaginário que descobrimos que houve uma bicicleta: “nessa velha bicicleta / que ainda guardas no teu quarto de brinquedos / atravessámos o vento / ao som dos pedais da infância”, e que essa bicicleta, como vamos saber depois, foi muito importante: “Parece mentira / Mas foi um engano essa infância / de cerejas. / O pior de tudo / foi um furo no pneu / havia a minha bicicleta / e isso foi muito importante.”

Os pais tinham uma casa agrícola, que vinha do tempo dos avós de Rui. Produziam vinho e tinham uma exploração florestal. Quando a madeira tinha de ser cortada, de sete em sete anos a dos eucaliptos, e um bom par de anos no caso dos pinheiros, Rui ajudava os pais, assim como a irmã, mais nova, que também escreve. Foi criado com os avós paternos. O avô era produtor de vinho e tinha uma relojoaria. Tinham grandes propriedades de terra. Os avós maternos, com quem teve pouco contacto, também eram agricultores.  Hoje, já poucas pessoas vivem da terra. Em parte, é essa a “história de certas famílias do Ribatejo e de outros lugares do país.”

Começou a escrever poesia “mais a sério” depois dos vinte, “vinte e poucos anos”. Não se lembra do primeiro poema. Começou, e continuou, por incentivo dos amigos, que liam o que escrevia e gostavam. Estava na faculdade, no curso de Geografia, que afinal não era bem aquilo que ele queria. Então? “Uma profissão ligada à terra”. “A coisa que eu mais gosto é de trabalhar com a terra. Depois vem a poesia, em segunda, terceiro ou até em quarto lugar.” Antes passava as tarde de inverno no café, mas agora escreve sobretudo à noite. “Tenho uma visão prática do dia. Gosto de me levantar cedo, fazer o que tiver a fazer, e isto [a poesia] não é uma obrigação, é um prazer que vem depois das coisas obrigatórias”. Também não lê durante o dia. “Não consigo conceber estar dias inteiros a ler, para mim não faz sentido.” Então? Caminha e cuida das plantas, e trata das tarefas ligadas à casa. E nos anos em que consegue colocação, ensina Geografia.

Mas voltemos à bicicleta. Entre casas reais e imaginárias, esses “organismos que ardem por dentro”,  houve portanto uma bicicleta. “A bicicleta é para mim a coisa mais palpável e mais materializável que talvez exista na minha vida”. A bicicleta serviu para tudo, para fazer amizades, descobrir ruínas e terriolas, andar dentro de casa e fugir dos cães. E o poema, o tal que fala duma infância de cerejas e de um furo no pneu, continua: “O mesmo será dizer que andei por aí / A buzinar aos cães e aos velhos / E a fazer trim / Nos trilhos das formigas.

Houve, aliás, várias bicicletas. Verde, azul, verde, e agora uma de montanha, porque apesar de a bicicleta estar guardada naquele “lugar feliz da nossa cabeça, onde as memórias boas estão guardadas”, e onde as raparigas e os rapazes crescidos em desespero ainda vão dormir à cama da mãe, o poeta escreve: “Ainda tenho uma bicicleta obsessiva / no rebentar das ondas do mar / da minha solidão”. E noutro poema: “Vou pegar na bicicleta / E rodar tudo de novo / Até ser feliz”.

 Em 2006, Rui Pedro Gonçalves publicou o livro Noites na Granja (edição de autor). Na primeira página há uma citação de um livro de Gógol, o Noites na Granja ao Pé de Dikanka, que ajuda a explicar o título do seu livro. Diz assim: “Petró dormiu dois dias e duas noites seguidos. Ao terceiro dia acordou e pôs-se a olhar demoradamente para todos os cantos da sua casa, mas foi em vão que tentou lembrar-se de alguma coisa: a sua memória era como o bolso de um velho sovina, donde ninguém consegue tirar um tostão”. Uma epígrafe que, de resto, não podia ser mais enganadora. O que se segue é um exercício de memória, de recuperação, de regresso a casa, à infância e à bicicleta, ensaiado ao longo das páginas deste documento pessoal. Um bocado como o homem do cais que atira as coisas todas para o rio, sapatos, chapéus, livros, um frigorífico, um elefante, presos a uma corda, e depois, já em velho, volta para vir buscá-las e levá-las para aquele lugar feliz da cabeça. Os últimos versos de um dos poemas dizem assim: “À noite / Ainda de janela aberta à grande planície, / Ouvíamos os cânticos da terra e a sua transpiração mediterrânica. / Sem o sabermos, / Íamos fundando raízes no interior de nós / E, depois, adormecíamos na frescura do pinhal / E dormíamos muito, muito.”

Rui Pedro Gonçalves é também autor de Diques (2007) e Nitratos do Chile (2010), título que vem do painel de azulejos que ainda hoje se encontra em muitas localidades portuguesas, “Adubai com Nitrato do Chile”, o adubo natural que era usado na agricultura, e que o avô, segundo conta, provavelmente terá usado para enriquecer a terra. O título presta-lhe por isso homenagem.

Em 2009, participou num livro de textos e poemas publicado pela editora Averno, Merry Christmas, que reúne autores como Alberto Pimenta, Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho, entre outros, e em 2012 participou em Ruindade, o livro dos poetas ‘Ruis’: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro. Tem também poemas publicados em alguns números da revista “Telhados de Vidro”, editada por Manuel de Freitas e Inês Dias.

Este ano publicou Um Rapaz à Procura da sua Idade, pela editora Do Lado Esquerdo. O livro abre como uma dedicatória a Bernado Sassetti: “Era uma vez um rapaz que gostava de tocar piano. Aprendeu a tocar, pois não conseguia ter gaivotas entre quatro paredes. Um certo dia, o piano ficou fechado e o rapaz foi ter com as gaivotas. Ainda foi a tempo de registar umas certas notas musicais, mas deixou-as consigo, por ser tarde nesse dia de Maio”. Rui não chegou a conhecer o pianista, mas admira a música dele. “Tem um bocado a ver com a bicicleta, com o movimento da bicicleta. É uma música circular, obsessiva, como se andasse sempre em círculo.” Como se quisesse rodar tudo de novo até ser feliz.

 

Capitão macaco e professor gorila

O capitão macaco jurou que arrastaria pelos artelhos quem se lhe atrevesse a dirigir um sussurro que fosse, não estava para queixumes, apetecia-lhe emborcar copo e mais copo e mais copo e mais copo até esgotar o vinho e bater com a testa desmaiada na mesa, e depois ser levado por duas bailarinas que inspirassem desejos carnais, duas mulheres que pudesse sufocar para aplacar a dor. Silêncio, bradou de copo erguido e brindou aos mortos. Os homens que o rodeavam não se atreviam a contestar as suas ordens, bebericavam calados, carpiam para dentro, não exteriorizando qualquer emoção que quebrasse os traços marmóreos exigidos a sanguinários batidos. Ninguém acatava de ânimo leve as ordens do capitão macaco mas o medo era mais forte do que qualquer vontade de rebelião. O tratamento a bordoadas com barra de ferro recebido pelo (outrora belo mas no presente desfigurado) mestre orangotango servia de exemplo a qualquer sacana que decidisse contrariar as vontades do capitão.  O professor gorila, apelidado de boçal por possuir uma capacidade de raciocínio diminuta e um crânio do tamanho de uma laranja grande, nunca largava a sua navalha da sorte. Com ela degolara um não acabar de homens. Uma das suas ambições era passar o metal pelo pescoço do capitão macaco e acabar com a tirania, mas esperava pelo dia certo e o dia certo nunca chegava, porque o dia certo seria aquele em que o macaco parecesse doente ou enfraquecido e isso nunca acontecia. Mesmo a cair de bêbedo, o macaco dava ares de conseguir dar cabo dos seus capangas com duas ou três braçadas. O capitão disse caluda e ao silêncio sucedeu-se um silêncio ainda maior. Tinham morrido cinco dos seus homens no dia anterior e o macaco não suportava o aperto no peito. Cinco almas rijas tragadas pela vaidade. Para aprender que conquistar uma mulher à força nem sempre era tarefa fácil. Ouviram, lorpas? Não voltaremos a entrar desarmados em casa de mulher nenhuma. Puta que se arme em esperta leva logo com um tiro na têmpora, é atirar para matar, e se formos obrigados a satisfazer-nos depois de matá-las, que seja, mais nenhuma vaca mata um homem meu. O capitão macaco desmaiou de tanto beber, o que deu alento ao professor gorila, que de pezinhos de lã e cheio de coragem se foi aproximando, aproximando. O professor gorila tinha uma navalha e orgulhava-se de ser o único dos homens do capitão macaco que matava sem recorrer a armas de fogo. O mestre orangotango tapou os olhos com as mãos. Os outros saíram a correr. O professor gorila encostou a navalha ao pescoço do capitão macaco e este, mal sentiu o frio metal no pescoço, ainda tentou estraçalhar o seu assassino. O professor gorila roubou a coroa ao capitão macaco. O seu reinado durou uma hora. 

An uncertain time after Patmos

we heard and remained: the islands
won't come they won't
wait                 at the light-blue
twilight
        you step your foot
on culture dry as milk
we wait and             we drink
to dance, spirits and lose the snow
hiding our purpose. if you had the dead
flowers in your hairskin rendezvous
with the past,       if you wait
and it comes with the golem
we wrote, some giotto
criminal        with the word
no one speaks–  eleven stars
from marburg, each god
pathetic, just like schubert
would have wanted it.
               who is the third, the false
beginning? sometimes in seas
   of ghosts turned athletes
      a fire flows downwards, graceful.