Pequena entrevista a Luís Ene (e selecção de textos)

Entrevista a propósito do lançamento do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido (Lua de Marfim, 2016)

Contactei pela primeira vez com Luís Ene a partir da revista online “Minguante”, que agregava um vasto conjunto de jovens e menos jovens autores, essencialmente portugueses e brasileiros, unidos pela vontade de publicar contos muito breves. Em 2007,  por ocasião da apresentação de uma antologia luso-brasileira (Contos de algibeira) daquilo que então parecia ser a grande moda literária do momento, a microficção, apertei pela primeira e única vez a mão ao autor. A sensação com que fiquei foi de estar a lidar com um homem afável e bom, embora, por nunca mais  com ele ter privado, nunca tenha confirmado essa sensação, que ainda se mantém. No ano seguinte, tanto eu como o Luís tivemos textos incluídos na Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa. Muitas vezes acontece-me esquecer quem sou, livro de 2006, em edição bilíngue (português/ espanhol), e Saudade de Água - Memórias de Faro (2011) são duas obras de Luís Ene ilustrativas da sua atracção por textos que, não obstante sejam muito, muito curtos, contêm algo mais essencial para a literatura do que o relatar de uma história, a intensidade. No referido livro bilíngue encontrei um texto que ainda lembro como algo que ensina a estar neste mundo (e talvez seja disso que se fala quando se fala de literatura): “Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.”

Olá, Luís. A revista “Minguante”, da qual foste um dos editores, publicou dezenas de autores. Como eu, muitos deles publicaram na revista os seus primeiros rabiscos ditos literários. Talvez não erre se afirmar que as duas antologias de microficção em que participei existiram por causa da “Minguante”. Tudo isso passou mas ainda me lembro daqueles tempos e de ti.

Olá, Paulo. Fico contente por estar de novo em contacto contigo, o qual na verdade, sinto que não perdi desde o tempo da "Minguante", ainda que sempre à distância. Penso que foi da única vez que nos encontrámos que me disseste da importância que teve para ti publicar na "Minguante", o que, confesso, muito me agradou. Segui-te sempre com atenção e admiro o que arriscarei chamar a tua coragem e persistência.

Tendo em conta que estamos em países diferentes, deixa-me perguntar-te como estás a escrever. 

Comecei por escrever este texto à mão, num caderno de argolas, pautado. Escrevo habitualmente à mão, porque sinto esta forma como mais natural, mais perto do corpo e de mim, mas a verdade é que teclo devagar, com dois dedos apenas... Escrever à mão é diferente, não se pode cortar, copiar, editar, como não deixaria de fazer se estivesse a escrever diretamente ao computador.

Vou tentar responder a todas as tuas perguntas, porém não vou seguir a ordem em que as apresentaste. A primeira coisa que pensei, quando acabei de ler as tuas perguntas pela primeira vez, foi que o livro que agora publiquei responde, em larga medida, a todas elas; na verdade este livro apresenta-se para mim como um balanço da minha atividade literária, o traçar de um verdadeiro ponto da situação, onde me interroguei sobre de onde vinha e para onde quero ir como escritor que sou.

Trocámos há uns anos opiniões sobre o que seria a microficção. Lembro-me de te dizer que a microficção e os microficcionistas não existiam. Queria dizer que o que existe são textos e escritores, que catalogar ou rotular pode afastar o autor e os seus livros dos leitores. Agora não tenho a mesma convicção. Que é para ti a microficção?

Por estes dias tenho defendido a existência de escritores algarvios e tenho-me apresentado como um deles. Não vejo que esta posição me limite como escritor que sou, porque escritor é o que eu sou primeiro, é essa a minha substância, e só depois sou um escritor algarvio e mesmo um escritor farense. Da mesma forma me digo português, europeu, mas sinto-me, sempre e primeiro, apenas humano. Vêm esta considerações também a propósito da microficção. Na altura, microficção pareceu-me uma classificação suficientemente abrangente para agrupar toda uma série de manifestações literárias breves. Hoje como então, qualificações como esta são vistas em Portugal por muitos e desde logo pelos próprios autores como limitativas e castradoras. Ainda há pouco tempo, um escritor a que eu chamaria algarvio, porque aqui reside e aqui se manifesta, interpelado sobre essa condição, reagiu de forma vigorosa, considerando-a ofensiva e negando-a. E de algum modo o mesmo se passa em Portugal quanto aos poetas e contistas, ainda que de outra forma.

Conheço quem defenda que textos de quatro linhas ou de uma ou duas frases não são literatura. Vejamos um pequeno conto: “Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida.” O autor deste conto é Lydia Davis. Autores menores ou menos conhecidos são acusados de não fazer literatura com textos do género. Que dirias em defesa dos teus próprios livros?

Escrever um texto breve e intenso não é fácil nem acontece com facilidade, todavia o que acontece quando confrontamos um excelente texto breve com um excelente texto longo é que o segundo parece sempre pesar mais, mas a verdade é que valorizamos mais o peso do que a leveza quando avaliamos um texto literário. 

Dizer o que se sabe é sempre dizer pouco, por isso prefiro dizer o que não sei, o que é sempre mais complicado. 

Tenho convicções hoje que não são muito diferentes das que tinha anos atrás quando me esforçava por defender a microficção, a diferença é que hoje nem me dou ao trabalho de responder a certas afirmações que são ditadas sobretudo pela ignorância e nalguns casos pelo medo, que andam em regra juntos. Referes Lydia Davis, acrescento Charles Simic (de o Mundo não se acaba, nem mesmo traduzido em português) e até Charles Baudelaire dos pequenos poemas em prosa (O spleen de Paris). O pequeno poema verso “Ama como a estrada começa”, de Cesariny,  não levanta infinitos seguimentos, infinitos ecos? Como colocá-lo no entanto num dos pratos da balança quando no outro está, por exemplo, Moby Dick de Melville? E no entanto…

Uma pergunta que é ao mesmo tempo um lugar-comum: que autores lês, ou melhor, que autores te fizeram querer escrever livros como o que agora lançaste? 

Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly (sobretudo de as Tisanas) são autores que me fizeram sem dúvida querer escrever como escrevo. No primeiro revejo-me sobretudo na ironia breve, no segundo revejo-me sobretudo no experimentalismo feroz.

Que livro gostarias de escrever mas nunca ganhaste coragem para isso?

Um livro que gostaria de escrever, mas que tenho evitado, ou não tenho tido mesmo coragem para isso, seria uma incursão na chamada literatura de não ficção. Elaborei em tempos um projeto, com o titulo provisório de Crimes Exemplares e em que me propunha viajar pelo país e tentar reconstruir certos acontecimentos marcantes, alguns já com vinte anos ou mais, usando todos os meios habitualmente atribuídos aos jornalistas e aos historiadores, mas depois tudo contado na primeira pessoa e recorrendo a processos literários.

No último texto do teu livro, precisamente intitulado “Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido”, temos uma lista: escrever até não conseguir escrever mais, escrever por necessidade, não saber por que motivo se escreve, escrever pouco e curto por preguiça, porque é fácil, escrever textos curtos por causa da intensidade, etc. E depois: “Mas não ficou muito tempo a pensar no que descobrira e meteu logo mãos à obra, que era a sua forma mais comum de pensar num assunto”. O mundo é complexo e as histórias, e as tuas histórias, passíveis de ser multiplicadas até ao infinito. Poderias pensar até ao infinito. Tendo estas coisas em mente, consegues resumir em algumas linhas ou frases aquilo que tens sido e aquilo que queres ser enquanto escritor? 

Deixa-me dizer-te que este último livro, na sua unidade, é para mim como um ensaio sobre o que é a escrita, ao estilo de Montaigne, que estou a reler com atenção. E no entanto, cada texto, em si mesmo, é completamente autónomo. Terminei posteriormente uma novela, chamar-lhe-ei assim, e é talvez por aí que quero ir, sendo que escrevo por necessidade e escreverei aquilo de que sentir necessidade. Sou eclético, como me disseram uma vez pretendendo insultar-me, e gosto sobretudo de experimentar.

A partir daqui, o autor prefere explicar-se com textos retirados do blog Diário mais que improvável (http://diariomaisqueimprovavel.blogspot.pt)

Tudo começa na página em branco. Tudo começa quando a escrita invade a página em branco, quando a escrita povoa a página com hesitantes porém determinados começos. E as perguntas começam a surgir. Quem escreve? O que se escreve? A primeira personagem de uma obra literária é sempre o seu autor, ou será que existe escrita sem autor? Pode o ato de escrever ser automático quando existe alguém que escreve? É claro que também existe algo que se escreve. O texto literário é o encontro entre alguém que escreve e um algo que se escreve. O processo, sim, o processo é uma outra história.

 Uma palavra à frente da outra, é assim que se escreve, é assim que se contam todas as histórias. É assim que escreve quem escreve, é assim que se escreve esse algo que se escreve. Parece fácil e é fácil; parece difícil e é difícil. Com as palavras nada é fácil e no entanto nada é verdadeiramente difícil, porque basta colocar uma palavra à frente da outra e esperar que algo aconteça, esperar que algo se escreva. Mesmo quando se responde a um apelo, a uma urgência, escrever é sempre partir à aventura, é sempre estar aberto a todas as possibilidades. Como se escreve? Escreve-se, escrevendo! Escreve-se colocando uma palavra à frente da outra. É pouco? Talvez, todavia é um pouco que é muito. Se queres escrever, escreve! Se precisas de escrever, escreve! Só escrevendo despertarás esse algo que espera ser escrito, esse algo que espera escrever-se.

 Escrevo, palavra a palavra, com cuidado. Observo, observo-me, escrevo. Como se seguisse um caminho que eu próprio imagino mas que me leva quase contra a minha vontade. Estou a caminho, como se conduzisse um carro por uma estrada qualquer

Espero, suspendo a escrita, respiro fundo. Observo, observo-me. Respiro fundo, respiro mesmo fundo, uma e outra vez. Sinto-o e escrevo-o mais uma vez. Tento encontrar a verdade desta mentira que é escrever. 

A estrada está à minha frente, é de noite, estou sozinho; para chegar seja onde for tenho de continuar. Posso perder-me, posso não chegar aonde quero, supondo que sei onde quero ir; mas chegarei a um qualquer lugar, esta é a certeza de escrever.

Estou preocupado, combato medos, luto contra a crescente ansiedade, porém tenho a certeza de que a estrada existe e que chegarei a um qualquer lugar, se a seguir; e isto é escrever.

Mas também posso ficar pelo caminho, pode faltar-me o combustível necessário para chegar, ou pelo menos para me reabastecer e continuar. Avanço, corro o risco, confio na minha sorte, confio nas minhas capacidades, deixo-me levar pelas palavras, aproveito as descidas, faço-me leve, persisto, ignoro os sinais de alarme, digo a mim medo que vou chegar e quando dou por mim, contra todas as possibilidades, cheguei ao ponto que me permite parar, que me permite continuar. 

Observo-me, sinto-me, digo a mim mesmo que vou ficar por aqui, que depois continuarei a percorrer a estrada. Digo-o, escrevo-o, e fico por aqui. Antes de terminar volto ainda atrás, e revejo o que me aconteceu. A escrita é sempre memória de si mesma.

 De entre tudo o que escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que voltei várias vezes e que arrumei finalmente numa única pasta, no que foi uma forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a escrever.

Constato que a minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia, apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque tenho publicado muito pouco. 

É difícil datar estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os, dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.

Começo por uma versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem. 

*

Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

*

Escolhi este texto, hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias, podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas em prosa, pela sua concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.

*

De um livro com o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão. Continuo.

*

Perguntavas-me o que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido pela crítica? Vender muitos livros?

Eu dizia-te que não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda não tinha respondido a essa pergunta.

*

Texto breve, fragmentário, abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.

*

POEMA UM DIA

a minha história é uma história

defrac assos

ostentoos- todos um a

um

alinhad

os no meu peito

aberto

eles são a prova provada

da minha persistência

da minha coragem

da minha teimosia

ser herói não é ser vencedor

ter sempre os olhos postos

na vitória

ser herói é não aceitar

a derrota

sabendo que nunca

se vencerá

termos os olhos postos

em nós

e vermos os outros

termos os olhos postos

nos  outros

e vermo-nos a nós

ser herói é apenas

sermos homens e mulheres

simples

deuses caídos em desgraça

e aceitarmos

o nosso trágico destino

com um sorriso pleno

de revolta

 

[um poema escrito em poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os poemas dizem tanto mais quanto mais calam]

*

Não me detenho e visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia. 

*

Está tudo no olhar

 

Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás? Então olha!

*

Fico a pensar se me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a mais nova.

*

Escrever é viver entre parênteses

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.

Àqueles românticos que fizeram templos

Àqueles românticos que fizeram templos
e depois os foram transformando em pedra,
com o olhar, nunca com os olhos,
diz-me, diz-me assim, mansa,
passa a mão sobre mim e fala-me,
assim, muito baixinho:
arruinaste-me.


Numa folha. Num espaço.
Suspira baixinho, respira sem me olhares,
faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem
apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo
a ser como feixes
e entrelaçam-se em nós.

Na ruína de uma folha,
como os românticos,
diz-lhes, diz-lhes assim:
não há lua.
Ouve-as estranhar, e repete:
não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar
desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:
este manuscrito está cheio de ruínas,
está tão morto, tão destruído,
tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,
não por respeito, como se faz aos velhos,
estava a sofrer tanto, coitado,
foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,
a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

e depois os foram transformando em pedra,

com o olhar, nunca com os olhos,

diz-me, diz-me assim, mansa,

passa a mão sobre mim e fala-me,

assim, muito baixinho:

arruinaste-me.

Numa folha. Num espaç

o.

Suspira baixinho, respira sem me olhares,

faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem

apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo

a ser como feixes

e entrelaç

am

-se em nó

s.

Na ruína de uma folha,

como os românticos,

diz-lhes, diz-lhes assim:

não há lua.

Ouve-as estranhar, e repete:

não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar

desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:

este manuscrito está cheio de ruínas,

está tão morto, tão destruído,

tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,

não por respeito, como se faz aos velhos,

estava a sofrer tanto, coitado,

foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,

a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

Àqueles românticos que fizeram templos

e depois os foram transformando em pedra,

com o olhar, nunca com os olhos,

diz-me, diz-me assim, mansa,

passa a mão sobre mim e fala-me,

assim, muito baixinho:

arruinaste-me.

Numa folha. Num espaç

o.

Suspira baixinho, respira sem me olhares,

faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem

apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo

a ser como feixes

e entrelaç

am

-se em nó

s.

Na ruína de uma folha,

como os românticos,

diz-lhes, diz-lhes assim:

não há lua.

Ouve-as estranhar, e repete:

não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar

desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:

este manuscrito está cheio de ruínas,

está tão morto, tão destruído,

tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,

não por respeito, como se faz aos velhos,

estava a sofrer tanto, coitado,

foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,

a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

Entre poesia e filosofia

Mário Cesariny, Linha de Água, s/d

Mário Cesariny, Linha de Água, s/d

Diz-nos Filomena Molder: “Muitas vezes, as associações entre as palavras correspondem a apelos das próprias palavras, o filósofo, porém, não pode deixar-se conduzir por esses apelos como o faz o poeta, não é esse o seu ofício”. (As Nuvens e o Vaso Sagrado, 2014, p. 22)

Talvez tenha razão [claro que tem razão, a razão, segundo Descartes, é a “coisa mais bem distribuída do mundo”, já que ninguém, ao contrário do que acontece com o dinheiro e a saúde, por exemplo, pede mais do que a que tem], o filósofo usa as palavras para mostrar, ou, mais raramente, criar algo que as ultrapassa, que existe antes delas e chega mesmo a rir-se delas [cuja altivez é uma forma de camuflar as terríveis insuficiências que minam a ambição de dizer tudo e de forma clara]. Mas é ao mesmo tempo esta distância entre as palavras e os referentes e significantes (os primeiros mais empíricos, os segundos mais metafísicos, “corpo” e “belo”, por exemplo) que define o verdadeiro “ofício” do filósofo, é nesta fenda que tudo se joga, obrigando a uma vida de Janus aplicada ao sentido, em vez do tempo (que também é condição de sentido, diga-se). É por isso que é preciso amar a sobriedade e os frequentes fracassos do vaivém filosófico.

De outra forma, e noutras nuvens, o poeta sabe que as palavras, às vezes as letras, são rizomáticas, que de uma nascem outras, e depois outras e outras, mais ou menos ligadas, levando o poema a colonizar (talvez cultivar) a folha, grafema a grafema, sem saber onde pode, ou deve, parar. Há uma força incontrolável em cada palavra do poeta, a força que arrebata os leitores (também os inquieta, é verdade), desarranja a gramática, curto-circuita os sentidos gastos..., mas igualmente uma força vital que num superior hermafroditismo faz nascer palavras de palavras, com a calma de uma gestação responsável ou na vertigem frenética de variações e prolongamentos explosivos. É por isso que é preciso dançar, mesmo sem talento, com a poesia.

 

A taberna da aldeia

Queixamo-nos a Dimitri das nossas idas desgastantes à taberna da aldeia.

Vamos lá uma vez por mês para socializar, embora a aldeia só tenha velhos, oito velhas e dois velhos e nenhum goste de nós.

Socializar é importante e difícil, mas nós não somos bichos e perseveramos. Neste caso é particularmente difícil, a hostilidade é manifesta. Quando estamos quase a chegar ao largo da fonte, sentimos tanto medo que nos agarramos umas às outras para não cair. Dizemos boa tarde aos velhos perfilados à entrada da taberna, não ouvimos resposta, só sentimos o rancor.

Nós as três juntas não somamos nem de perto a idade da velha mais nova da aldeia.

Levamos sempre uma lista das coisas que fingimos precisar. Quando uma de nós tira o papel da bolsinha bordada e o estica para ler, treme tanto que faz pena às outras duas. O taberneiro nunca tem nada do que pedimos. A mais corajosa de nós, às vezes aponta para a coisa em questão que estamos a ver mesmo à nossa frente, mas ele diz furando-nos as caras com os olhar “já está vendida” e nós saímos de lá sempre de mãos vazias. Os velhos zelosos à porta confirmam que não levamos nada. O cão, de três patas e zarolho, rosna à nossa passagem, que é de longe a coisa mais simpática que nos acontece quando vamos à aldeia.

Dimitri o jardineiro sossega-nos e invariavelmente nos diz que é por sermos jovens e bonitas. Uma questão de inveja e ressentimento. Hoje, contudo, acrescentou: bem podiam retirar da lista das compras os tampões higiénicos. É uma afronta que fazem às mulheres idosas, como se para além da óbvia beleza ainda lhes quisessem atirar à cara a juventude perdida. Uma arrogância desnecessária. Claro que a taberna não tem tampões, porque haveria de ter, é uma aldeia que não precisa deles. E deu uma sprayada de água nas rosas.

Dimitri cuida das rosas e agora deu mostra de querer cuidar de nós, corrigir-nos os defeitos, aumentar-nos a beleza interior.

Chamei as irmãs para uma reunião urgente.

Podíamos nós despedir Dmitri? Era ele nosso empregado? Não tínhamos já chegado à conclusão que as rosas não eram nossas, mas delas próprias? Nesse caso, ele não trabalhava para nós mas para si mesmo, para sua satisfação pessoal, não sendo as rosas senão um meio de alcançar um certo grau de felicidade. Assim sendo, Dimitri perdia o estatuto de trabalhador, tendo de nos devolver não só o dinheiro que lhe havíamos pago ao longo destes anos como ainda acrescentar o valor justo por todo o tempo que tem usufruído na nossa quinta do prazer de cuidar das rosas. Um valor alto, obviamente, porque as rosas são de grande qualidade e ele retira alegria bastante do trabalho que faz. E se quiser continuar por cá terá de continuar a pagar. Deve querer. Mas virá como cliente, como alguém que frequenta um templo de meditação ou usufrui de um spa.

Feitas as contas descobrimos que Dimitri nos deve uma pequena fortuna, com a qual podemos saldar parcialmente a dívida ao pretendente da irmã do meio para que ele deixe de nos importunar.

Findo o plenário, a irmã do meio recolheu ao quarto agarrada à cabeça, a irmã mais nova ficou a olhar para o ar e eu saí para o jardim.

As rosas estavam impecáveis, direitas, firmes, com espinhos agressivos a proteger-lhes a beleza. Bem cuidadas, eram de facto a melhor coisa da quinta. Parti o caule da mais alta e com a corola gorda na mão, arranquei-lhe as pétalas uma a uma e deixei-as cair, manchando o chão de vermelho.

Se eu e as minhas irmãs quisermos atirar o sangue à cara de alguém, atiramos, ainda mais se for para atirá-lo a velhas ameixas secas, ventres murchos. Não viemos para o campo mais longínquo para alguém nos chamar a atenção. Muito menos um homem. Menos ainda um cliente.

Amanhã temos de fazer outra reunião para decidir quem irá dar todas estas novidades a Dimitri.


Depois da representação

 (a partir do estilo de "O Torcicologologista, Excelência", de Gonçalo M. Tavares)

 

- Também está tudo excelente, excelência! Obrigado!

- Gostou da representação?

- Parece-me que este ano foi igual à do ano passado! Mas vossa excelência sabe como sou distraído!

- Tenho também a mesma ideia que vossa excelência, mas no meu caso, sou sempre surpreendido!

- Ainda que a história se mantenha?

- Ainda que a história se mantenha...

- Ainda que as personagens sejam as mesmas?

- Ainda que as personagens sejam as mesmas...

- Ainda que a moral da história seja a mesma?

- Ainda que... bem se se mantém história e personagens, excelência, manter-se-á a moral também!

- Desculpar-me-á a correcção excelência, mas tal conclusão não é válida para as personagens, apenas para a história!

- Ainda assim surpreende-me!

- A sua surpresa é para mim surpreendente! Amnésia?

- Não, lembro-me perfeitamente da do ano passado. E da do ano antes desse!

- Continuo surpreendido excelência, mas a surpresa mudou agora de coroa!

- Até dos actores me lembro!

- Agora surpresa e coroa mantém-se no mesmo trono.

- Não é a história, nem a moral que me surpreende!

- Continuo o meu relatório preciso de actividades internas: Mantém-se a surpresa, mas desta vez está completamente perdida!

- Acalmo prontamente vossa excelência...

- Surpreendida!

- Surpreendida... O que me surpreende é a avidez com que vejo a representação (história, personagens, actores, cenário) todos os anos!

- Avidez!?

- Sim! É como um conforto excelência! 

- Um calor?

- Nem exterior, nem interior!

- Nem poético da sua parte!

- Nem da sua!

- Concordo!

- Concordamos!

- Mais um conforto excelência! Mas partilhava com vossa excelência, é como se fosse uma manta, uma lareira, um doce, uma refeição, um aconchego, um abraço, um banho de sol na praia...

- Ainda que o sol esteja muito quente?...

- Ainda...

- Ainda que se queime com o sol?...

- Ainda que me queime com o sol...

- Mesmo sabendo que se vai queimar com o sol?!...

- Mesmo sabendo que me vou queimar com o sol!

- De antemão!

- De sobre aviso e sem protector, excelência!

- Desde quando? 

- Desde sempre, desde que me lembro, desde que me sabe bem!

- Mesmo que a representação tenha três condenados à morte?!

- Injustamente!!!

- Bem, em bom rigor apenas um, e depende a quem se pergunta!

- Ainda assim excelência, faz parte da beleza da história!...

- Ainda que se acuse um inocente!

- É poética!!

- Ou comédia, ou tragédia, excelência!!!

- Tragédia seguramente!!!

- Acho que até aqui se difere também na opinião dos inquiridos! Mais o quando do que ao quem!

- Assim seja, excelência!

- Mas o aconchego chega-lhe também pela exortação à dor e à morte!

- É apenas um prelúdio da história, excelência! Não julgue uma história sem a sua conclusão!!!

- Mas a representação fica-se apenas pela condenação, flagelo e morte!

- Assim o diz!

- Assim o é!

- Ainda que não sejam qualidades louváveis?

- Ainda que nem sequer sejam qualidades!

- Assim o diz, da boca da verdade!

- Mas não se esqueça de Domingo!

- Domingo não faz parte da representação de hoje!

- Excelência...

- Não vi nada disso hoje! Vossa excelência viu?

- Não, não vi!

- Apenas viu condenação, flagelo e morte! Ou saí antes de tempo?

- Saímos os dois no fim da peça, excelência!

- E mesmo assim reconforta-o?

- Sim!

- A dor, a condenação, o flagelo e a morte!

- Assim o disse... Mas como prelúdio... Como um prazer antecipado do que vai acontecer!

- Como aperitivo? Como preliminares?

- Sim, quase como isso!

- "Quase" asseguro-me que é a palavra chave!

- A que se deve tal segurança!

- Vossa excelência vai hoje reconfortado para casa?

- Muito, gostei muito da peça!

- Deitar-se-á descansado e satisfeito?

- De barriga cheia excelência!

- Belo ponto! Pego aí mesmo! E numa refeição,... por exemplo, o jantar de hoje!

- Que tem o jantar de hoje?

- Teve aperitivo?

- Não devendo, teve sim senhor!

- Dos bons?

- Dos excelentes! Um martini, amendoins e bolachas salgadas!

- Um luxo!

- Uma verdade!

- E ficaria bem apenas com o martini e os salgados?

- Com a fome com que estava, parece-me impossível! 

- Inverosímil!

- Para qualquer outra excelência que mo perguntasse! Seria impossível acreditar, mesmo que lhe mentisse com todos os dentes!

- Não se deitaria satisfeito!

- Nada! Impossível!

- O jantar foi bom!?

- Rico e farto! Óptimo, ainda que exagerado, reconheço, mas foi tudo isso!

- Ou seja sem jantar, não se deitaria satisfeito! Mesmo que amanhã soubesse que jantaria fartamente?

- Impossível! Nem só de pão vive o homem! Nem de expectativas! Por isso há que vir todo o acompanhamento do pão! Aliás, deixemos o pão! Esse sim é que acompanha!

- Bravo excelência! É bom ouvi-lo falar. Mas o que diz traz-lhe um problema!

- Vários...

- Exacto, o primeiro e o mais proeminente, comecemos pelo importante, é que a analogia que fez não é, digamos..., verosímil, para usar as suas próprias palavras.

- Estou perdido!

- Ora, vossa excelência disse que hoje ia reconfortado para casa, não é verdade.

- Sublinho!

- Mas que a peça, e excluo o jantar, ainda que comparada a um aperitivo para Domingo, o reconfortava!

- Subscrevo...

- Mas acabou de dizer que se hoje se deitasse só com um aperitivo, desta vez no estômago, não lhe chegaria! Nem mesmo sabendo que jantaria amanhã! Como no Domingo!

- Disse...

- Ou a comparação não é boa, ou a explicação de vossa excelência é parca...

- Excelência... Melhor também não lhe sei explicar... Mas é verdade...

- Mas a segunda parte, ainda que menos importante, não sei se a considero menos gravosa. Ou vice-versa!

- ...

- Consideremos que o reconforta.

- A peça.

- Essa mesmo. A sua mensagem.

- Sim...

- Vossa excelência reconfortou-se com a dor, a injustiça e a morte. Considerando-as como não qualidades ou sentimentos que não se enalteçam. 

- Como aperitivo...

- Mas aperitivo com o qual dorme bem hoje e reconfortado!

- Assim o disse... e assim o sinto...

- A minha surpresa, para além da sua, é esta mesmo excelência!

- E minha... Não creio que me tenha apercebido!

- E a mim, não creio que este meu raciocínio me tenha inibido de, mesmo assim, aqui ter vindo hoje...

- Estranho... Já bebeu do vinho quente da paróquia excelência?

- Não, mas ouvi dizer que este ano experimentaram especiarias novas!

- Venham de lá esses canecos!

- Bem lembrado excelência!

- É sempre um prazer beber bem acompanhado!

- E reconfortante!

- E reconfortante...