5 poemas de "Porque Canta um pequeno coração", de José Pedro Moreira, lidos pelo autor e por João Concha

É fácil perceber quem leu quais: as leituras expressivas e claras são as do João, o tipo com má dicção e que ainda por cima murmura os poemas sou eu (José Pedro).

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Amigos do Porto (e arredores): se puderem venham à leitura conjunta, com a Francisca Camelo, a Mafalda Sofia Gomes e o Vítor Teves, na próxima sexta-feira, 4 de Outubro, pelas 17h30 na Flâneur. Mais informações aqui.

Amigos de Lisboa (e arredores): se puderem, venham à apresentação do livro, no próximo dia 5 de Outubro, pelas 18h30. A apresentação estará a cargo de Elisabete Marques, e contará com leituras de Tatiana Faia e Victor Gonçalves. Mais informações aqui.

Os Cobardes

La belleza no es un lugar donde van a parar los cobardes.
Antonio Gamoneda


Talvez venhas a morrer perto
violentado pela luz, pelo assombro
de uma vida pensada junto ao fogo
mas de onde nunca trouxeste nada 

A vida é tanto mais pesada
se te não fere a violência de um deus
se regressas da solidão com o mesmo porte
com as mãos abertas e laceradas

como praças descobertas para a morte

"Cascando" de Samuel Beckett

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Tradução de Tatiana Faia

1


por que não apenas os desesperados
de ocasião de
derramamento de palavras 

melhor antes abortar do que ser estéril

as horas depois de te ires embora são tão de chumbo
começam sempre a arrastar-se demasiado cedo
as garras rasgam cegamente o leito da carência
trazendo ao de cima os ossos os velhos amores
cavidades preenchidas outrora com olhos como os teus
tudo sempre é melhor demasiado cedo que nunca  
a negra carência salpica-lhes os rostos
diz nove dias nunca fizeram flutuar o amado
nem nove meses 
nem nove vidas

  

2

diz de novo
se não me ensinares não aprendo
diz de novo há uma última
mesmo última das vezes
última das vezes para suplicar
última das vezes para amar
para saber não saber para fingir
uma última mesmo última das vezes para dizer
se não me amas não serei amado
se não te amo não amarei

palavras rançosas batidas no coração de novo
amor amor amor baque de um velho pistão
pisando o inalterável 

coalho de palavras
aterrorizado de novo
para não amar
para amar e não tu
para ser amado e não por ti
para saber não saber para fingir
para fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a menos que te amem

Leoa de Madeira

De ti pouco mais tinha sobrado que aquela leoa de madeira
Que comprara em Samburo quando lá estivemos,
Na viagem entre Masai Mara e Nakuro percebi que já pouco te amava,
Tudo está acabado quando o trivial se sobrepõe à ilusão,
Pela leoa queriam a minha caneta, que acabei por dar
A uma menina desconhecida, na apresentação de um dos meus livros,
A noite anterior tinha-a passado com uma professora,
Na sua casa alugada e do que me lembro mais foi de vir-me
No tracejado de luar que as persianas lhe desenhavam nas nádegas,
Tinha uma pata colada, foi se calhar por isso que a trouxe,
Sempre tive um fraco por imperfeições, casos perdidos,
Hoje da leoa só ficou um haiku que escrevi, depois de já não estarmos juntos,
Porque um garoto que nunca conheci a deixou cair
E partiu-se de forma irremediável, assim me disseram,
Não a cheguei a ver cair, contigo foi o mesmo,
Não vi a queda e só ficou um carinho como uma leoa de madeira
Com uma perna quebrada, que também desapareceu,
Às mãos da maldade de um inocente, como o tempo.

Turku

22.09.2019