Charles Bukowski, "um poema é uma cidade"

@ René Burri

@ René Burri

 Tradução: João Coles

um poema é uma cidade repleta de ruas e esgotos
repleta de santos, heróis, pedintes, loucos,
repleta de banalidade e bebida,
repleta de chuva e trovoada e períodos de
seca, um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade a perguntar porquê a um relógio,
um poema é uma cidade sob chamas,
um poema é uma cidade armada
são barbearias repletas de bêbedos cínicos,
um poema é uma cidade onde Deus cavalga nu
pelas ruas abaixo qual Lady Godiva,
onde cães ladram à noite e afugentam
a bandeira; um poema é uma cidade de poetas,
muito parecidos uns com os outros
invejosos e rancorosos…
um poema é esta cidade agora,
a 50 milhas de nenhures.
9:09 da manhã,
o gosto a licor e a cigarros,
nem polícia, nem amantes pelas ruas,
este poema, esta cidade, fechando as suas portas,
barricada, quase vazia,
de luto e sem lágrimas, envelhecendo sem dó,
as duras montanhas rochosas,
o oceano como uma chama de lavanda,
uma lua destituída da sua grandiosidade,
a musiquinha de janelas partidas…

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,
um poema é o mundo…

e agora meto isto debaixo de vidro
para escrutínio do louco editor,
a noite é alhures
e senhoras acinzentadas fazem fila,
um cão segue outro até ao estuário,
as trompetes anunciam as forcas
enquanto homens pequenos tresvariam sobre coisas
que não conseguem fazer.


a poem is a city

a poem is a city filled with streets and sewers
filled with saints, heroes, beggars, madmen,
filled with banality and booze,
filled with rain and thunder and periods of
drought, a poem is a city at war,
a poem is a city asking a clock why,
a poem is a city burning,
a poem is a city under guns
its barbershops filled with cynical drunks,
a poem is a city where God rides naked
through the streets like Lady Godiva,
where dogs bark at night, and chase away
the flag; a poem is a city of poets,
most of them quite similar
and envious and bitter …
a poem is this city now,
50 miles from nowhere,
9:09 in the morning,
the taste of liquor and cigarettes,
no police, no lovers, walking the streets,
this poem, this city, closing its doors,
barricaded, almost empty,
mournful without tears, aging without pity,
the hardrock mountains,
the ocean like a lavender flame,
a moon destitute of greatness,
a small music from broken windows …

a poem is a city, a poem is a nation,
a poem is the world …

and now I stick this under glass
for the mad editor’s scrutiny,
and night is elsewhere
and faint gray ladies stand in line,
dog follows dog to estuary,
the trumpets bring on gallows
as small men rant at things
they cannot do.

Carta Perdida 

 

Lembras-te do tempo em que me encerrava na casa de banho 
A ler Bukowski trazido da biblioteca e a rabiscar poemas 
Sobre um amor que devia ter ficado a apodrecer no seu nojo, 
Enquanto tu dormias, os vizinhos fodiam, depois mijavam, 
Puxavam o autoclismo e enquanto ouvia a água a correr 
Pelos canos algures nas têmporas, acabava mais um poema de merda 
E tu orgulhavas-te de mim, se calhar por nunca me teres lido, 
Porque a língua uma distância palpável entre nós, 
Agora, dentro de ti cresce algo que nunca fui, 
Algo que nunca serei, não sei sequer se me arrependo, 
Mas na verdade, sempre brinquei com a tristeza,  
Como alguns brincam com o fogo no verão, 
Espero-te bem e desculpa-me os pequenos infernos 
Privados, encerrado em casas de banho na madrugada. 

 Turku 

27.01.2019 

Charles Bukowski, "competição"


competição

agora vivemos na alfândega e à noite
os barcos soam amiúde as sirenes de nevoeiro.
ela tem o sono leve.
ela dá um salto e fica sentadinha e direita na cama.
“porra!”, “que se passa, que se passa?”
“pensava que te tinhas peidado”
“desta vez não, querida”
ela é boa moça.
viver comigo deu-lhe cabo dos nervos.
a verdade é que eu gosto de guardar os peidos
para a banheira.
aquelas bolhas cinzentas fazem pairar
um fedor mágico no ar.
peidar é muito parecido com foder.
não se o pode fazer a toda a hora.
mas quando o fazemos
surge amiúde um sentimento de orgulho
como se o nosso talento artístico no acto fosse algo
de raro e precioso.
eu peido-me mais do que fodo.
e peido-me melhor do que fodo.
e fico contente
por ser confundido com uma sirene de nevoeiro
a meio da noite.


competition

we live by the harbor now and at night
the ships often blow their foghorns.
she's a light sleeper.
she will leap up, sitting straight up in bed.
"damn!" "what is it, what is it?"
"I thought you farted."
"not that time dear."
she is a good child.
living with me has dysfunctioned her nerves.
actually, I like to save up the farts
for the bathtub.
those grey bubbles waft up
a magic stench.
farting is much like fucking.
you can't do it all the time.
but when you do
there often comes a feeling of proudness,
as if your artistry in the act were a rare
and precious thing.
I fart more than I fuck.
and I fart better than I fuck.
and I am pleased
to be mistaken for a foghorn
in the middle of the night.

Charles Bukowski, "Sossego"

tradução de José Pedro Moreira

Sossego


sentado esta noite
diante desta
mesa
junto à
janela

a mulher está
de mau-humor
no
quarto

estes são os seus
dias especialmente
maus.

bem, eu tenho
os meus

portanto
em consideração
para com ela

a máquina de escrever
está
parada.

é estranho,
escrever isto
à
mão

lembra-me de
dias
passados
em que as coisas não
estavam
a correr bem
noutros
aspectos.

agora
o gato vem
visitar-
-me

refastela-se
debaixo da mesa
entre os meus
pés

estamos ambos
a derreter
no mesmo
fogo.

e, caro
gato, estamos ainda
a trabalhar no
poema

e alguns
observaram
que há um certo
“declínio”
aqui.

bem, aos 65
anos, eu posso
“declinar”
o que me apetecer, e ainda assim
dar
uma abada
a esses críticos
da treta.

Li Po sabia
o que fazer:
beber outra
garrafa e
enfrentar
as consequências.

volto-me para a minha
direita, vejo esta enorme
cabeça (reflectida na
janela) a chupar
um cigarro
e

sorrimos
um
ao outro.

então
volto
atrás

sento-me aqui
e
escrevo mais palavras neste
papel

não há nunca
a grandiosa
declaração
derradeira

e essa é o
engano
e o truque
que funciona
contra
nós

mas
gostava que pudessem ver
o meu
gato

ele tem uma
mancha
branca no
focinho
contra um
fundo
laranja-amarelado

e então
quando olho para cima
na direcção da
cozinha

vejo uma parte
clara
sob as luzes
do tecto

que se esbate
no escuro
cada vez mais
escuro até
não ver
mais
nada.

 

Charles Bukowski, You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, 1986

Bukowski.jpg

DÍPTICO BUKOWSKINIANO

“Merda para a beleza. Merda
para os poemas bem escritos.”

Rui Nunes – “Suíte e Fúria”

 

para o João Coles

 

                           I

A NOVA FACULDADE DE ECONOMIA

 

Larga a poesia, rapaz!
Deixa o edifício de velhos azulejos e segue para o sul.
Aproveita o bom sol, a praia, o ar
condicionado,
o bom pavimento, a tecnologia de ponta,
as garinas ou
os betos cheirosos.
Gente de bem! De boas famílias!
Deixa a poesia, rapaz!
Segue para sul, muda de edifício.
Tudo o que importa é fazer, ou fingir
fazer, contas. O que importa
são os números!
Não penses muito, rapaz!
Não sejas do contra!
Segue para sul.
Além
é
que
está
a felicidade absoluta. O futuro
radioso:
 

Um bom ordenado, um bonito nome aristocrático,
a boa empresa:
intervalos longos; jogos utilíssimos de motivação; o
convívio com os colegas 24h seguidas; a bolinha
amarela antisstress de mão em mão; o
incentivo à
rapidez e eficiência;
os prémios e o
apelo ao
empreendedorismo.
 
Segue a economia, rapaz!
Isso das letras já morreu.
Não sejas teimoso,
Não esperes o último
azulejo
sobre a tua cabeça.
Não esperes, sossegadamente, o pó.
 
Tudo tem de ser rápido.
Rapidez, pragmatismo, produção.
(superficialidade, secura, pântano)
Produzir, produzir, produzir…
Mas o quê?
Não importa, não importa. A
economia é que importa. Nada mais.
Porque mereces,
dou-te um edifício digno,
remodelado
da unha do pé ao fio de cabelo mais fino.
Um testamento de cavalo!
Cavalo?
Sim, cavalo! Aquele que relinchando,
aprovava, aprovava, aprovava.
 
Deixa as letras, rapaz!
Segue para sul.
Dedica-te aos números.
Dedica-te à economia.
Deixa que os edifícios das letras
caem por completo.
Salva-te enquanto podes!
 
Deixa as letras, rapaz!
 

                                     II

                       JOÃOZINHO

 

Menino, eu, menino,
Vai para a escola!
Vai para a escola aprender
rima.
Vai para a escola!
Usa o esquema rimático,
a metáfora condensada,
o verso longo,
nunca
o
curto,
a
sílaba ou letra
separada da longa e densa
frase. Não, enganei-me, o verso!
Vai para a escola menino,
aprende lentamente tudo
aquilo que terás de
esquecer.
Dirás: Sim, Senhor professor!
Dirás: Presente!
Dirás: Sim, sempre sim.
E passado anos, olhar-te-ás
ao espelho
e verás o boneco de cera em que te tornaste.
Um papagaio
caranguejando,
como um grilo,
os sins ao senhor professor!
Sim, a poesia é só rima,
Sim, a poesia é só métrica,
A técnica, a técnica… Bla bla bla,
Mas que raio!
Que se foda toda essa
lengalenga mentirosa.
Não porque seja má a rima ou a
métrica. É má e mentirosa
essa necessidade
aborrecida de dizer
tudo em filtro! Dizer: a poesia é ISTO,
NÃO AQUILO!
Raios partam, senhor professor,
viril,
machão,
sentado com eles no dito salário!
E eu cansado de tentar,
tentar, tentar, tentar…
Tentar o quê?
Tentar adaptar-me a esse
covil hipócrita, snob,
que cheira a mofo, a baratas, a frases
cheias de virgulas.
Odeio virgulas!
]
Lerão tudo o que escrevo,
digo,
como sendo da mão daquele que
escreve, logo
eu que nunca diria cona,
eu que nunca ofenderia uma mosca!...[
Sim, senhor professor!
Não, senhor professor!
Raios a essas sintonias! Quem? Todos os que
acham que a poesia tem de viver
numa grelha,
que nem sardinha assada.
 
Ai não gostam deste poema? Os meninos da
Catequese não gostam deste poema?
Ai não? Quero lá saber! Pois bem,
só por isso farei 300, só para vos foder o juízo!
Querem um Camões, aos pés de casa,
entregando o pequeno-almoço. Logo eu que
nunca quis ser coisa
nenhuma!

 
Um poema não pode ter
Calão!
]…Puta, cagão, brochista nunca
deve entrar num poema
!?
Falta aqui uma enorme razão!...[
Uma razão para agitar essas
pardas águas,
esse mofo!
 
Pois, claro! Pois, claro! Sou um idiota.
Mas nunca recusei ser idiota ou louco.
É o maior dos elogios!
O que escrevo só diz respeito
aos recusados, aflitos, esquecidos.
Se lerem este poema no metro,
farão rir dois ou três.

está o meu leitor:
o inadaptado,
o vírus do sistema, da máquina
que procura uniformizar:
gostar de A e B e só de A e B:
dizer poesia apenas na forma grelhada;
forçar sempre o sorriso;
nunca dizer uma caralhada;
nunca dizer: vai-te foder!
Exagero?
Pois bem, nada pode ser exagerado, nada
pode ser dito a gritar, nunca
a cólera,
a fúria,
a vontade e a força que nos faz
ser idiotas, imperfeitos, incompletos,
Imbecis.
 
No dia em que fecharmos a poesia
numa grelha,
nesse dia,
já não seremos humanos!
A máquina, a boa vontade da máquina, já
nos terá sugado as
entranhas e tudo será dito
como querem que seja dito:
«Sim, senhor professor, tens
toda a razão,
a poesia só
existe
pela
e
na
Rima.»
 
Mas haverá sempre falha no Sistema: EU!
 
Vai-te foder, Senhor professor!
Vai-te foder!

2.10.2018

Charles-Bukowski-2.jpg

Charles Bukowski (1920-1994)