Lançamento de "A cadeira (do) Fantasma: Cinema excêntrico" de Fernando Guerreiro

Lançamento do livro "A Cadeira (do) Fantasma: Cinema excêntrico" de Fernando Guerreiro. 5 de Novembro, 18 horas, livraria Linha de Sombra (Cinemateca Portuguesa/ Museu do Cinema, Lisboa).


Com a presença do autor, do editor Victor Gonçalves, e apresentação de José Bértolo & Luís Mendonça

Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.

Paisagens relacionais – comentário sobre três poéticas de 2017 (Câmera lenta, Ar livre e “Aproxime-se e me aborde”)

mapas e miradas

Antes da cidade asteca Tenochtitlán ser de fato invadida e saqueada pelo Estado espanhol, ela fora previamente fundada no papel, como Nova Hispania. Em brevíssimo tempo, Hernán Cortez, um escritor muito prático e eficiente, rapidamente anexara o território indígena nos seus documentos de relação, que era obrigado a escrever. Conquistar a “América” começa, então, com o controle simbólico dos referentes do espaço, no papel e tinta, construindo um mapa instantâneo com a pena, visto de cima.  

Mas sempre ficam os restos, os excedentes e “outras muitas coisas que por serem tantas e tais não as sei significar à Vossa Majestade.” Excessos que não cabem nas rápidas transições de poder por documentos anexadores.  

Penso nessas muitas coisas outras, na cidade e nas suas sobras, em termos de paisagem – a partir da qual trocamos toda uma experiência afetiva; a paisagem com seus fluxos materiais e sonoros que nosso corpo, imerso, acopla e respira. E penso em tomar o poema como exercício, prática especulativa de descolonização da ordem estabelecida pelas diretrizes do império – ou do governo, para a atualizar os termos.  

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Nesse exercício, a partir do interstício entre o corpo e o lugar, a cidade começaria na textualidade do poema – que, por sua vez, enuncia a experiência íntima e indissociável daqueles. Lembro-me da anotação-poema sobre dois quadros, ainda a serem elaborados – quadros que também seriam mapas:  

“Looking” is & is not “eating” & also “being eaten” 
That is, there is continuity of some sort among  
the watchman, the space, the objects.1 

É do pintor Jasper Johns, que iniciava alguns de seus quadros com rascunhos em verso, sugerindo, num curto circuito, que a paisagem que sempre tentamos mirar, já nos devora quando conseguimos abocanhá-la em alguma parte. Nunca somos um vigilante pleno, mas participamos do ativamente do entorno. Com uma predisposição descolonizadora, que parta do texto, é que a noção de mapa é construída:  

Beware of the body
& the mind. 
Avoid a polar
situation. 
Think of the
edge of the city & 
the traffic there. 2 

Johns pintara o quadro “Map” sobre um mapa dos EUA, que um amigo seu lhe dera. É elaborado sobre o mapa-tela com diversos erros não controlados, mas que são inerentes ao projeto e ato de pintura, de forma que “não há acidentes”. A técnica artística se dá em tensão com o espaço que lhe escapa, no qual borrar os limites está constantemente em jogo.  

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Nesse desmapeamento poético, os referentes se perdem em movimentos indeterminados, tráfego entre corpo-mente-cidade, como as anotações-poemas de projeto sugerem.  

Lugar do poema este, podemos pensar, que se tece em “ritmo orgânico”, movimentos que vão se borrando num país sem uma cor de origem, cujos Estados se sobrepõem um sobre o outro de forma a se interligarem por suas diferenças (em certa medida, cores em contraste se encontrando). 

Tal como formula, agora, Herberto Helder em Photomaton & Vox: “este intento: o da relação, segundo uma forma básica, entre a intensidade pessoal e a intensidade do mundo.” Assim também num breve conto desse autor, sobre uma escultura que aciona uma “arte relacional” – como os Bichos de Lygia Clark ou Parangolés de Oiticica:  

(as transmutações)  

Escultura: objecto.  

Objectos para a criação de espaço. Espelhos para a criação de imagens. Pessoas para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de silêncio.  

Em câmera lenta

A paisagem, o mapa e os deslocamentos de espaço, têm sido temática de intensa reelaboração na poesia brasileira de hoje que, por sua vez, propõe novas olhares e relações afetivas com o entorno. Da forma como vejo, tal perspectiva paisagística é um ponto de partida possível para a leitura do trabalho de alguns poetas contemporâneos – e, portanto, da cisão de um sentido mais tradicional do “poético” da poesia.  

“– o que você está tendo é um problema de realidade” – ele diagnostica quando ela abre os olhos “e tudo fica tremido se fast forward”. Ela chega no mesmo terminal, e semanas depois a cena se repete, num movimento em loop. Do lado de dentro, ela fecha os olhos e a paisagem-mundo passa como um “mapa feito à mão”.  

É a cidade e seus diagnósticos em Marília Garcia, no poema “pelos grandes bulevares”, de Câmera lenta, livro mais recente da autora. Câmera lenta é um cinematógrafo em que entramos, um lugar escuro em que as palavras ecoam sem um corpo definido, mas sempre em movimento. O livro fala sobre imagens em movimento, das suas velocidades, e também sobre a apropriação dessas imagens, nas transições entre o “lado de dentro e o lado de fora”.  

“o cinema é 24 vezes / a verdade por segundo”. Verdade que pode ser desmontada se diminuirmos a velocidade, entrarmos em câmera lenta:  

“este segundo poderia ser 24 vezes a cara dela quando fecha os olhos e vê.”  

O que ela vê? É aí que os poemas começam a atuar no cinema: paisagens em aberto, com seus loops e closes, que o telespectador deve preencher e “usar a um modo”. Como nas cenas de In the mood for love, que prolongam os passos e breves momentos solitário das protagonistas; ou nos fragmentos de corpo que escapam à imagem una da pessoa – também aqui encontramos o lugar entre o dentro e o fora, landscape/inscape. “Para nós, é essa falha – princípio de desfalecimento do sistema construído pelo falso campo-contra-campo ou pelos equívocos efeitos de ‘raccord’ nas cenas do prédio de apartamentos – que estrutura o filme e constitui, a exemplo da pintura de paisagem oriental, o princípio do vazio (o ‘segredo’) que mobiliza o jogo das formas e o seu oscilante acerto de conjunto” – como diz Fernando Guerreiro, sobre o filme citado.  

Os “vazios” da paisagem de que apropriamos, continuam ecoando em pequenas “falhas” das cenas na Câmera lenta.  

Em “tem país na paisagem? (versão compacta)”, tirar fotos do mesmo ponto da cidade remete a um habitar o espaço que sempre escapa; tentativa contínua de uma experiência que almeja captar o que acontece nos momentos presentes, com suas sobras e os excessos. Abarcar o que acontece entre.  

sempre tinha tentado  
pular as etapas da vida  
e apagar o entre.  
como atravessar os meses neste lugar  
e ver o que acontece?  
a fotografia divide o futuro  
e passado – seria possível ver o que  
está no meio?  

Mapas constantemente redesenhados. Essa poética desmonta, em zoom, em câmera lenta, em silêncios, as linhas fronteiriças entre o passado e o futuro – uma “volta ao real” que se constrói em instantes presentes de enunciação, tensionados com a tentativa-e-erro de vozes de outros momentos, agora imprevisíveis. No poema que abre o livro:  

assim,  
esta voz que fala aqui  
é a  
voz de uma marília de um mês atrás  
é a minha voz falando a partir do passado,  
é a minha voz,  
mas sem controle.  

Nesse sentido, Ana Cristina Cesar também abre uma cisão com poema moderno no Brasil. Inaugura – com suas cartas, diários, anotações, projetos de ficções, escrituras à mão dirigidas a si mesma, ao remetente/leitor, a ninguém – um lugar a partir do qual poderíamos pensar a poesia contemporânea, depois da “primeira folha aberta” e da perguta-título: “A poesia pode me esperar?” A leitura, uma questão de tempo de enunciação, pede uma outra relação com o texto e com a escrita.  Em Ana C: 

Não, a poesia não pode esperar.  
O brigue toca as terras geladas do extremo sul.  
Escapo no automóvel aos guinchos.  
Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando
digo hoje, falo precisamente deste extremo ríspido,  
deste ponto que parece último possível?  

Então, quando penso na literatura que considero experimental (termo um tanto vago), vejo que ela só faz sentido quando, no ato da enunciação, possibilita articular um modo outro de habitar o presente, por sua abertura não totalmente decodificável – mas com outro ritmo e modo de enunciação. Um descontrole da ordem dada, das autorias de “quem diz”. Na paisagem presente de que participamos, é necessário uma abertura da escuta:  

e eu fiquei pensando  
se estaria muito seco nesse dia ou não  
e pensei que talvez a gente pudesse  
fazer silêncio  
e deixar a escuta aberta  
para ouvir.  

Ao Ar Livre

Essa experimentação do itinerário e do literário – experiência das cidades agora como palavra em aberto, carta, rascunho, mapa desenhado – é formulada insistentemente num “teste limite” das relações entre texto, corpo, paisagem e sociedade, ao longo da poesia e prosa de Maurício Salles Vasconcelos.  

Numa escrita em trânsito livre, a descolonização dos símbolos se coloca como um desaprender dos sentidos demarcados: “Encontrei no fim da conversa um chamado de voz por engano, dizendo possuir um precioso pacote de endereços, que eu fosse até o ponto de sua perda”. 

Como em Maggie Nelson – “maniacal bouts of writing, learning to adress no one” – em Ar Livre (2017), recente livro de Maurício (com o qual eu tento um diálogo em celular.quitinete.rua), as formas de habitar o espaço, ao longo desta virada de século (atravessando os anos de 1999 até 2015) são materializadas em inusitadas formulações do que poderíamos entender por liberdade.  

Num “ritmo/rasura”, os “desaprenderes” se dão em pequenas metapoesias que seus versos snorizam. O autor volta à imagem do cão vira-lata para construir espaços intersticiais dentro do sistema global e colonial. Uma atenção a outras formas de vida. Do habitar o presente. Em “Cão (zero)”:  

Atravessa poentes e, sem saber,  
Pontes de uma sombra demarcada,  
De tão ondulado o cão (estará  
Sempre, bem aqui, em companhia  
Dos anos, dentro dos outros,  
No coletivo que o engloba)  

O social mostra-se no texto pelos rastros e restos das megalópoles (populações, praias, apartamentos). Tudo isso ganha materialidade na escrita, atravessada por diversos ecos, acontecimentos fractais, mapas interconectados.  

No “Andar sobre o que resta de praia” o que se capta é  

“(um leve rumor por trás,  

por dentro, talvez o sol,  
talvez o acidente que se azinhavra  

em nome do atlântico, um simples revoltoretorno)  

carioca proliferante piolho universal em mar aberto  
alastrado óleo
onde se antevê a alucinação dos lugares  
sob o menor movimento  

A alucinação dos lugares é uma exigência por outras formas de olhar e sentir o texto e as “populações”, que não devem estar presas ao mundo literário como sistema independente (por isso, em certa medida, seus livros podem incomodar leitores habituados à literatura como gênero essencialmente autorreferencial); mas sim, em dialogismo pleno com manifestações no presente. Uma escrita em abertura que consegue materializar diversos pontos de conexão. E são escritos “metapoéticos” à medida em que deixam mostras de seu procedimento e reformulam modos de fazer poesia.  

Numa escuta ao ar livre – nos acontecimentos geracionais, entre lugares públicos e habitações comuns, homenagem a artistas recentemente mortos, manifestações populares, hippies, budas, taxistas, vozes da telefonia e da rua –, estão os modos específicos do autor construir sua poética. Na forma textual com que vai compondo ao vivo. Em sintonia com o presente, o registro de tradições e pequenos acontecimentos que retornam e se assimilam no ato da leitura, compõem um inesperado mapa interligado da virada de século, ressoando como novas potencialidades poéticas deste tempo. Qual uma feliz letra de rock:  

“Parque temático” 

Queremos estar – logos insone –  
Ser homens feitos, nomear o que
Não se vê – a origem e a  
Correnteza exangue, à solta –  

Dentro de um panorama, ou então,  
Um parque, um cessar-fogo  
A qualquer hora, pelas tantas   fontanas  

Sob o contínuo rumor do fim da vida.  

Aproxime-se e me aborde

Não na dualidade arte-vida, mas numa linguagem que movimente afetos de um real ainda a se construir, ou do regresso a um corpo-memória que deve ser acordado, estamos em consonância com boa parte da poética de Ricardo Domeneck.  

Nos enjambements em a cadela sem Logos (2007), a posição do sujeito lírico torna-se subitamente estranha diante da disposição dos corpos nas cidades. Em monólogos que se confundem com outros sujeitos enunciadores, entre aproximações e distanciamentos com o leitor, sujeito lírico e as personagens referenciadas (todos em um diálogo indeterminado), criam-se deslocamentos de voz, que vão desmembrando as políticas de cor, imigração, gênero, trabalho, em todo o contexto que se articula a prática literária, escrita e oral no âmbito público. A confusão de vozes acarreta um sentido performativo aos poemas, que se escrevem na tensão entre enunciado e enunciação, de forma que o modo, o corpo e o lugar com que se pronuncia um texto estão sempre em jogo.  

a língua não  
é autônoma mas reage  
à saliva à dor de  
cabeça à boca  
alheia no meio  
da sentença  
percebe o  
esgotamento do assunto  
e vira o  
rosto para evitar  
os olhos do  
interlocutor 

Como magistralmente explorado por Tiago Guilherme Pinheiro, em a cadela sem Logos  “não há nada que indique que tal trajeto seja percorrido por um mesmo sujeito, que cada sentença esteja sendo proferida por um único indivíduo.” Desse modo, num deslocamento da voz, simultaneamente se escancaram as formas de vida política na nossa “democracia”, e abrem-se narrativas que nos fazem perceber, em sua enunciação (na participação do leitor) outras formas de sentir o mundo/ler o texto.  

Em analogia, também parece haver um deslocamento de paisagens muito presente na poesia de Domeneck. Em “Composição como contexto”, último texto de a cadela… e espécie de posfácio  sobre o procedimento de escrita do autor (em que confluem influências literárias com acontecimentos em sua vida e contexto histórico), lemos passagens em que reforça-se que o entorno sempre participa no “interior” do sujeito – fato presente desde a imagem do poeta-anfíbio do primeiro livro do autor.  

“Se está chovendo enquanto caminho por uma rua da antiga Berlim Oriental e penso este início, quanto o caminho, a velocidade dos passos e o vento frio no rosto influenciam o ritmo desta oração?”  

“A multiplicidade do contexto não impede o indivíduo, gera-o”  

“Se já não se sabe o quanto o sujeito mistura-se ao objeto, se sou eu a paisagem contemplada, se amanhã ou vinte anos depois, se o limite não é parte do mundo como a fronteira não pertence ao país, como tratar a COISA de forma DIRETA se a direção do objeto é a mesma do sujeito, movendo-se continuamente entre semântica e sintaxe?”  

E, citando John Cage, Domeneck escreve: “Atento ao ambiente como/ o ambiente ignora a/ minha vontade”.  

Com isso, lembro, no giro de uma década (2007-2017), do poema “Aproxime-se e me aborde”, escrito esse ano pelo autor – e faço esta breve (e mui passional) nota sobre esses versos recentes, em que o mundo (sociedade e natureza) começa numa viagem ao corpo. Nas suas dobras, no contato com a pele outra, habitando as fronteiras tênues que separam indivíduos de uma espécie. Há uma força geológica que desloca as pessoas em livre associação – como se não fosse para estarmos aqui, nosso encontro com acidente, nossa espécie, esse breve desvio de uma dança concêntrica a que participamos.  

Lavas, crateras, oceanos, continentes, evoluções – deslocares acordados pelos órgãos, pelas suas fissuras, erupções e fendas que nos fazem sentir – nos fazem expandir – os limites do corpo. Processos de cisão e abertura, pensamentos e continentes que se desdobram conjuntamente. Quando toca a outra pele, essa fronteira em risco de extinção, os estímulos mútuos voltam-se em pleno wishful “changing”. 

Uma volta a um afeto (uma escuta do corpo) que integra sem hierarquia a pessoa e o entorno, paisagem móvel de monções, correntes de ar a entrar com o habitar humano, o ar que bombeia os pulmões e faz trocar material, fluidos, sopros e movimentar palavras entre-nós, em rearranjos de formas de vida, palavras-ações em dinamismo com o globo. 

Nada como culpar o movimento da terra e sua inclinação torta, o deslocar de paisagens, continentes, cidades e acidentes, os thousand natural shocks that flesh is heir to de Shakespeare, entre o ser e não ser – por justamente você não estar aqui. Etc.  

“Aproxime-se e me aborde” 

Até mesmo os continentes afastam-se, 
colidem, formam cordilheiras e oceanos, 
detêm correntes de ar, mobilizam monções, 
separam membros da mesma espécie
que se adaptam, mutações de azar e sorte.   
Por que não seria assim conosco, tão mais
bruscos em nossos joelhos e cotovelos, 
tão mais destrutivos em nossas erupções
pelas fendas deste corpo no qual a pele
dobra-se úmida, anunciando as crateras?   
Em nós também contam apenas as quinas
e buracos. Montanhas, fiordes, precipícios. 
Felizes as bactérias inquilinas de nossa pele, 
como cegos que apalpassem um elefante, 
só parte do planeta doente em que vivem.  
E já nem sei se maldito ou bendito esse mar
de lava sobre o qual dançam nossos pés, 
as erosões e tremores que expõem fósseis
onde buscamos pelo elo perdido da espécie, 
aclare a desgraça de cambalearmos bípedes.  
Eu culpo o eixo torto da Terra, as estações
incansáveis, essa rotina do brota-e-murcha, 
a neve, seu despenca-e-derrete, eito e horto
da boca que troveja quando queria ensolarar, 
une ríspida os dentes e morde ao mal lamber. 


Referências

Sobre Hernán Cortez e a conquista pelas “letras”: Mago Glantz. La desnudez como naufragio. Borrones y borradores.  

Sobre Jasper Johns: Marjorie Perloff. “Watchman, Spy, and Dead Man: Johns, O’Hara, Cage and the “Aesthetic of Indifference”. <http://marjorieperloff.com/essays/watchman-spy/>  

Sobre In the mood for love: Fernando Guerreiro. Imagens Roubadas. <https://enfermaria6.squarespace.com/fernando-guerreiro-noites-na-enfermaria> 

Sobre a cadela sem Logos e a voz: Tiago Guilherme Pinheiro. “Espectros sonoros: voz, corpo e democracia em Ricardo Domeneck”. <http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018529>

O detective-projeccionista: sobre 'Imagens Roubadas' de Fernando Guerreiro

Buster Keaton - Sherlock Jnr (1924) dream.jpg

A revisão de certos filmes não tem apenas como consequência a descoberta do que ainda não víramos. Ainda sob o seu efeito, acontece-nos encarar a mecânica do mundo à luz do que neles acontece, e compreender que parte importante do que fazemos e conhecemos nas nossas vidas é já por eles anunciada. O acaso de voltar a Sherlock Jr. (1924) de Buster Keaton, pouco depois de terminar a leitura de Imagens Roubadas, motivou um desses episódios de reconhecimento.

À semelhança da personagem daquele filme, Fernando Guerreiro poderia também ser descrito como um detective-projeccionista: o que parece orientar o seu trabalho é, por um lado, o desejo de decifrar pela escrita a verdade sobre as imagens que analisa, percebendo qual é a sua natureza e como é que estas agem sobre nós; e, por outro, o interesse na capacidade que essa escrita tem de criar ela própria as suas imagens. Considerando esse intuito, faz todo o sentido que o livro tenha a peculiaridade de ter como subtítulo a designação “um poema por imagens” (que, curiosamente, atesta a coerência da obra do autor ao evocar um livro anterior que se apresentava como “um romance por ideias”); como faz também sentido que o tipo de cinema sobre o qual incide com mais fulgor seja aquele que porventura obriga de modo mais imediato a uma tomada de posição quanto ao destino das imagens.

Poder-se-ia então sintetizar Imagens Roubadas junto de quem ainda não o leu como uma investigação atenta das “mutações” e “metamorfoses” – termos omnipresentes na escrita de Guerreiro – que a concepção de imagem tem vindo a sofrer ao longo da História do Cinema. Para quem conhecer bem o horizonte estético e teórico do autor, não será surpreendente que esse processo, ao contrário do que geralmente acontece, seja encarado de maneira bastante positiva. Ainda na secção inicial do livro, “Grãos de Pólen”, que funciona como declaração de intenções acerca do pensamento que o leitor encontrará exposto nos ensaios que se lhe seguem, Guerreiro, no estilo fortemente idiossincrático que o caracteriza, faz uma observação reveladora sobre a questão. No seu entender, é pouco sensato criticar “a «contaminação» do Cinema pelos novos media como um fenómeno negativo (desestruturador) ou letal”; esta deverá antes ser vista como “o problema mais instante da teoria na fase «crisálida» (larvar) da mutação em curso” (p. 21). O excerto é emblemático da relação de Guerreiro com o cinema, e torna explícita a sua constante determinação em emendar certas ideias feitas e valorizar a emergência daquilo que, poucas páginas depois, baptizará como um “momento Cronenberg das artes” (p. 46). O realizador é, aliás, um dos mais convocados ao longo de Imagens Roubadas, e não estaria errado ler muitas das hipóteses avançadas no livro à luz da sua figura. É com base neste arcaboiço crítico que Guerreiro consegue defender com perspicácia obras por vezes vilipendiadas – veja-se, como exemplo paradigmático disso mesmo, os seus comentários sobre Psycho (1998) de Gus Van Sant no ensaio “Motéis, drive-ins e piscinas”.

Talvez o maior elogio que se possa fazer a este livro e ao seu autor seja dizer que, mesmo nos casos em que não estamos de acordo ou inteiramente seguros sobre alguma ideia apresentada, lê-lo é uma actividade que nos impele a questionar e a robustecer os nossos próprios juízos sobre os filmes discutidos. Se já não é isto que esperamos da crítica, é apenas prova de que estamos mal-habituados; mas livros como Imagens Roubadas ajudam a corrigir a situação. O mais interessante, contudo, é que aquilo que ao início poderia ser entendido apenas como o que Guerreiro pensa sobre o cinema transborda também para a sua escrita. A receptividade à coexistência de diferentes registos e tipos de arte ajuda, por exemplo, a explicar o seu ecletismo. Em “The Hollow Men”, usa-se o poema homónimo de T.S. Eliot para se falar de War of the Worlds (2005) de Steven Spielberg; e em “Poor Little Rich Girl (1965)”, são as ideias de Jean Epstein que esclarecem o filme de Andy Warhol. Nestes e em muitos outros ensaios, as relações sugeridas são arriscadas, mas funcionam sempre. O que importa sublinhar, no entanto, é que Guerreiro não escreve distanciado ou removido daquilo que fala, nem se limita a fazer considerações meramente estéticas sobre um domínio que conhece bem: está completamente imerso nesse domínio, e há uma consonância tal entre o que escreve e o seu ofício de viver que se torna claro, em Imagens Roubadas, que para o autor não seria concebível estabelecer uma separação entre o cinema e a vida.

O cinema não só dá a Guerreiro as ferramentas para descrever adequadamente o mundo como se confunde com ele; já não é só o que se passa quando se entra numa sala para ver um filme, mas o principal elemento regulador da nossa relação com a realidade. Esta harmonia entre um programa estético e um projecto de vida, evidente em muitos passos do livro, talvez encontre a sua melhor expressão em “A passagem dos fantasmas”: é aí que se refere um “real sempre engrandecido” (p. 101) pela presença dos espectros cinematográficos. A experiência do cinema não seria assim um evento isolado e delimitável, mas um acontecimento duradouro e com efeitos concretos sobre a sua existência. Para Fernando Guerreiro, e talvez para todas as pessoas que vêem no cinema parte necessária daquilo que são, roubar imagens parece ser um modo de existir.