"Leopardo e Abstracção" de Tatiana Faia (Fresca Editores)

 
O novo livro de Tatiana Faia, Leopardo e Abstracção, pela Fresca Editores

O novo livro de Tatiana Faia, Leopardo e Abstracção, pela Fresca Editores

o que eu sei da filha de agamémnon

para lá de tudo isto o teu entendimento
um campo de feno exposto no interior da lente
antes do golpe da luz
quando a precisão de um momento te invade
e se vira exposto sobre si próprio
como papel de prata na violência do vento
e altos edifícios de pedra selam as saídas
de ruas interiores por onde carros circulam
a baixa velocidade

o que eu me lembro não é
o que nenhum poeta da antiguidade
pudesse ter deixado escrito
em versos a que sopro nenhum
imprimiria o ritmo da fala
onde ela assomasse de carne e osso
não uma criatura literária
mas a urgência de um corpo livre do seu enredo

o que eu me lembro dela
é um dia de parada quando o suor
me colava a camisa ao corpo
e a segui por entre a multidão
para lá dos guardas e das linhas de gente
reunidas para ver soldados desfilar
o que me lembro
é entender que pode ser um erro gracioso
a conclusão mais lógica de um passo
e reparar que forma nenhuma
traria de volta o momento antes da manhã romper
quando o rosto encontra o seu duplo
na superfície vítrea de um lago
claro que nada disto teve nada
de uma quietude campestre
a limpidez de uma manhã mitológica
cortada pela seta de um deus em degredo

segui-a e perdi-a e tornei a encontrá-la ainda
em ruas paralelas onde os cafés ficam vazios
a meio da tarde por causa do estado de sítio da rotina
e há secretos motivos cultivados atrás
de portas que se fecham subitamente
mas não aprendi nada do mundo dela
nem poderia precisar a extensão do seu segredo

peão e estratega
o que ficou comigo muito tempo depois
foi essa longa caminhada de muitas centenas de metros
por ruas cheias de gente
o cabelo preso que lhe caía pelas costas
o que lhe ia chamar eu antes que soubesse o que fosse
pó, ouro, o corte de papel na memória de um fantasma
inevitável, real mesmo antes
da manhã se derramar com a luz
na impessoalidade de um quarto estranho
depois de uma noite de insónia

Oxford, 3 de Setembro de 2017


o mistério dos homens adormecidos

alguns jazem no plaino abandonado
que a morna brisa aquece
no bolso direito das calças a cigarrilha breve
o peito exposto ao ar os braços cruzados
debaixo da nuca
na vulnerabilidade de um gesto
para lá da farda regimental
do fato e gravata de todos os dias
e depois da poeira sobre os sapatos
a respiração tão regular do corpo
é de repente um acidente da sorte
uma dádiva improvável e oportuna
trazendo de volta a desaceleração do quotidiano

alguns nem estão à espera de ver o mundo arder
cumprem os dias como se tudo
o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver
fosse um dia só
e apenas uma só versão desse dia existisse
a profundidade existe apenas
quando jazem sem cuidado
ao comprido num sofá num vigésimo segundo andar
num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que o nada os acosse
um leve sorriso cai sobre os lábios
e um cigarro arde no cinzeiro
enquanto eles deslizam pelo aqueronte do sono adentro
sem espadas e sem escudos que lancem a agulha
da resistência ao desconhecido
noite adentro a confiança ou uma promessa
de amantes pode ser algo como isto

alguns regam as plantas cinco minutos antes
e desfazem os nós dos atacadores
e tiram ordeiramente os sapatos
e reconhecem até mesmo a proximidade da morte
mesmo agora enquanto comem uma refeição enlatada

enquanto me dou conta de que alguns são
ainda até atléticos e musculares e necessários
e mesmo a sua extrema necessidade
alimenta o desejo de todas as coisas
a precisão de alguns instantes quando
rapazes jogam à bola debaixo dos olhares de leões
e as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão
como os aborrecidamente espertos quartetos de mozart

alguns fecham os olhos e inadvertidamente
deitam abaixo a última parede do mito
aquela que postulava que a inteligência que permite
ler os dias é uma espera posta à destruição

adormecendo alguns entrelaçam as mãos sobre o peito
como guerreiros medievais sepultados em túmulos de pedra
no coração das cidades
e é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar
e mergulhados profundamente no sono
intuem a profundidade do azul na obscuridade da noite
as chamas que marcam as amuradas da noite
as coordenadas do sal na pele
para lá das horas em que escreveram
linhas em que declararam conhecer bem o sal
que se cola à pele vindo das orlas de certas praias no atlântico

e no entanto alguns persistem e aceleram
para lá do sono em carros que cortam pela noite
demasiado cansados e um pouco decadentes
na fronteira com a extrema incoerência
um pouco para lá do cansaço
para lá do facilmente evidente

Nápoles, 8 de Outubro de 2017

 

Dois poemas de Atlas de Alba Cid

atlas.jpg

Cartas de navegación polinesias

en algures alguén viaxa furiosamente cara a ti
a unha velocidade impensábel, non o sentes? mira, viaxa día e noite
cruzando treboadas de neve, a calor de mil Limias, saltos de auga, canóns
pero saberá onde atoparte?
poderá recoñecerte cando te vexa
e darche o que trae para ti?
de mans dadas con John Ashbery,
“At North Farm”

1

o tempo dispón os corpos

cando aprenderemos que todas as cousas se desprazan?
as dunas e as algas, a adoración entre iguais,
os continentes en cada journey-work of the stars.

fóra do noso campo visual
—en completo silencio—
fúndanse illas coralíferas.

2

o navegante é capaz de calibrar as correntes do océano
            dentro do corpo
apenas un tremor na raíz da espiña dorsal
o aceno dun misto cando prende
o navegante pode dobrarse na proa da súa canoa e apreciar, corpo a corpo, as vibracións do navío
coa mesma sutileza —tap tap dos dedos sobre un ábaco.

3

é esta arte un modo de transmitir un saber
ou de ocultalo?

en terra firme,
as mans dos mariños polinesios confeccionan cartas de navegación,
tramas

escollen fitas de coco e nervaduras de plantas          a modo de correntes mariñas,
moedas e cunchas      a modo de illas
fíos, coral
—os arrecifes non figuran—

da súa habilidade resulta
algo que só pode lerse co tacto,
e que só interpretará correctamente quen o creou.

1.png

4

así a nosa comprensión dos afectos:
a ilexibilidade, a dependencia do tacto, o tecido,

unha ruta da seda
que coñece
a verdadeira violencia do que se dá por sentado.

(non adoitaban embarcar as cartas de navegación
iso quere dicir:
isto é meu, todo canto sei,
non deixarei que humedeza ou rompa
,
coa primeira e a última luz de sándalo insular, en soidade, cadaquén memoriza o seu mapa coas xemas dos dedos)

5

wappepe, rebbelib ou meddo.
tres xeitos de mapear o océano.

(a carta que me ensinaches pertencía ao terceiro tipo, e imitaba á perfección o perfil dereito de Nefertiti. desde o atol Aur, que coincide co extremo superior da súa coroa lapislázuli, até a meridional Namorik, na baixada do ombreiro. incluso o Uraeus, a cobra sobre a diadema, parece representada)

2.png

6

coma os mariños das Marshall Islands,
os namorados déitanse boca abaixo e espreitan as correntes subxacentes ao seu propio corpo-barca
o percutir das sementes terra adentro
sinfonías leves, trucos de maxia

pretenden anticiparse á refracción das ondas, calcular o embate

para iso elaboran meddos íntimos,
marañas de cabelos e apuntamentos referidos a unha viaxe específica
o modo no que as ondas abrazan certa illa e interseccionan con correntes veciñas,
o pálpito que cifra a que distancia pode esa illa ser detectada.

fóra do seu campo visual
—en completo silencio—
aneis,
innúmeros atois emerxen.


Tríptico

óleo sobre tea, a avoa reproduce unha escena de Millet

a súa man dereita oscila tres veces,
sementando cristais de sal ante a inminencia da tormenta,
coma se a moeda do mar bastase para salvarnos. as nenas obsérvanos desaparecer en contacto co cemento do patio, e son xoias un fragmento de segundo, algo que sinalar cos dedos mentres se perde.
a chuvia impide que os salmos se adhiran ás cativas
e a man que foi péndulo volve á cadeira; como a caléndula, sabe
repregarse.

cando se pranta un bonsai disponse fóra do centro para facer espazo ao divino:
así ela, conxurando o mal
desde un vértice.

óleo sobre madeira, o pai di

que recrutar é unha arte.
garda moitas cousas para si: a hora en que a neve azulea sobre a orografía suíza, o primeiro dente da filla, o estalido do óso do peito

garda silencio. nunca prantaría un bonsai.
sabe despegar a sombra
do corpo
dos paxaros.


acrílico sobre papel, a filla repite

similia similiabus curantur
[1] mentres atravesa o patio. cando naceu, penduránronlle unhas cornas de vacaloura no pulso.
un cento de quilómetros ao oeste, os mariñeiros recollen estrelamares para fertilizar a terra. ela descoñéceo.
imprudente,
colócase no centro e alza a vista, para capturar o brillo que foi

 da Vía Láctea.


[1] lei pola cal un animal ou forza maléfica non atacará a quen leve sobre si unha parte dese animal ou forza.

O lançamento do "Porque canta um pequeno coração", de José Pedro Moreira, é amanhã!

71231009_1320433464805745_7403648106400579584_n.jpg

lançamento de PORQUE CANTA UM PEQUENO CORAÇÃO, livro de poesia de José Pedro Moreira, com capa/desenhos de André Ruivo
///// Apresentação por Elisabete Marques
///// Leitura de poemas por Tatiana Faia e Victor Gonçalves

Resistência Lisboa, Calçada Marquês de Abrantes, nº 82, Lisboa
//////////////////////// Dia 5 de Outubro às 18:30h


as fontes pulsam
como se tivesses levado
uma pancada na cabeça
e um zumbido anuncia
um novo estado
de hiper-realidade
regressas
a um mundo árido
óbvio
vês
três jogadas à frente
sordidez e vergonha
ainda assim persistes
em anotar os números
fazer os cálculos
convertendo
em livro-razão do teu vício
o caderninho de infância
onde anos antes
à margem dos detritos
da mais grandiosa
guerra intergaláctica
sonhaste que um dia
um pequeno coração
poderia cantar

"O quarto rosa" de Francisca Camelo: apresentação hoje!

70831706_531719114230365_7502395584993558528_n.jpg

marilyn

gostava de ter sonhado
mas foi real
desta vez foi um veado
cabeça lustrosa
pêlo brilhante
olhos aguçados
focinho pequeno e delicado:
uma marilyn monroe
dos animais da floresta.
o veado parava
encrustrado à parede
numa loja kitsch.
segunda mão,
a etiqueta dizia,
se/gun/da/mão
digerir o significado dessas palavras
e o preço possível a pagar por isso:
olhava-me quieto
vítreo mas tão vivo
o almoço a subir-me
acidez acima
olha só que atroz
assombração
todos nós podemos
ser embalsamados um dia:
imaginei os meus olhos vítreos ali
alguém a tocar-me na íris
com a unha do indicador direito
vê se faz barulho
vê se são de vidro
tocarem-me no cabelo
pode ser falso
apesar de todo o brilho
as pestanas longas de marilyn diziam-me
tu também podes
estar um dia aqui
embalsamada a um preço caro
numa loja kitsch em segunda mão 

(talvez seja isso a
reencarnação).

sehr glück

ontem fui à barraca
da vidente
handlesen
o cartaz rodeado por aquelas
luzes baratas com que as pessoas
rodeiam o quarto, tu sabes,
before sunrise, we’re all
stardust
, capital europeia,
tudo isso a enquadrar o cenário:
agarrou-me as mãos
e desdentada, sorriu: vais ser
uma kaiser três filhos vida longa
(casar nem por isso)
sehr glück, ela disse,
mas a tua sorte é estranha

referia-se provavelmente
àquelas últimas manhãs
um quarto sem persianas
quando volto da casa de banho
e encontro um homem já vestido que me esclarece
só há um kaiser e é um jogador de futebol alemão

sentado no sofá,
(pernas abertas
mão sobre a virilha
ainda quente)
notifica-me prontamente:
precisa de alguém
para os domingos da minha
ausência. acrescenta, quando vê a fruta
no centro de mesa, i love strawberries,
e semeia sem saber
calos na minha garganta
por favor, alguém que compre
morangos a este homem
quando não estou
 

as marcas da almofada ainda na cara
(desejar esse desleixo, o hálito pesado,)
aprender novas formas de
condicionar a incerteza
sentar-me no sofá
para abandonar de seguida:

  1. o lugar fresco do fantasma

  2. a madrugada para sempre poluída

  3. o conceito de sorte

mas os morangos:
intactos.

69439904_2601436759917287_4955363984283795456_o.jpg

Sergio Maciel, Tanta vez o cântaro vai à fonte

Sergio Maciel
Tanta vez o cântaro vai à fonte
(poemas mudados para o meu corpo)
poesia

Enfermaria 6, janeiro de 2018, 22 páginas

[Ler e descarregar livro]


Sergio Maciel

Sergio Maciel (1992) é poeta, tradutor e editor da revista escamandro. É graduando em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Paraná. Publicou recentemente seu primeiro livro de poemas, ratzara (Dybbuk, 2017). Além disso, é um dos integrantes do grupo de performance Pecora Loca.

26854221_915712958581636_1696087610_o.jpg

após o estampido, 
lasca tênue
no cascalho
                      sobre o entulho,
ainda se ouve (rente

à aurora):
um signo do infinito
a retina
roendo o rubro das bocas; 

acima,

uma pedra tortura outra
pedra,
            quase estrela,
nas treliças do mundo.

Playlist