'Hoje não' de Ana Margarida Matos
/Um diário da pandemia? Não propriamente. Uma encenação de um diário. Cada dia capturado no confinamento de uma página por meio de uma imagem (ou conjugação de imagens) e um verbete diarístico. Os mecanismos narrativos são a conjugação destes elementos – imagens, marcadores textuais, uma data – e as dinâmicas da sequencialidade – como os dias se relacionam entre si.
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A pandemia, o sentimento de estar preso num mesmo lugar, num mesmo dia, imposto pela perda de elementos referenciais distintivos, ansiedade em relação ao futuro académico e profissional (a voz que nos fala é a de uma estudante a terminar a licenciatura em Belas Artes), indagações/apontamentos sobre a natureza da arte, a procura e formação de uma entidade artística, o registo de uma dieta que a minha sensibilidade vegetariana não pode deixar de reprovar, estes são os temas encenados para nós no espaço confinado de cada página.
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“Ingenuidade” é uma palavra traiçoeira. Sim, algumas observações são óbvias, “ingénuas”. Mas a maioria das nossas palavras são óbvias ou ingénuas. A nossa reacção à notícia do aumento do número de mortes diárias é óbvia, o sentimento de apreensão de um estudante de licenciatura prestes a entrar no mercado de trabalho é óbvio. A nossa previsibilidade é um bilhete de entrada num espaço partilhado. Mas se por um lado os marcadores textuais nos guiam para lugares públicos, as representações visuais encenam experiências mais específicas: a íntima curiosidade do artista que explora o espaço quotidiano e procura maneiras de o representar. O livro vive sobretudo desta tensão entre uma realidade partilhada, previsível (“mais uma bifana ao almoço”, “o Chega saiu-se bem nas eleições”, etc.), e a intimidade do olhar artístico (continuamente à procura de reinventar/re-representar o espaço). E não há nada de “ingénuo” na encenação desta tensão: é um esforço deliberado, complexo e inventivo, e o resultado é uma obra ao mesmo tempo pessoal e partilhada, empática e íntima.