Os meus 10 livros de BD favoritos lidos em 2023 em imagens

Juni Ba, Monkey Meat

Uma colecção de cinco contos que têm lugar num mundo onde uma companhia de macacos (i.e., cujos administradores e trabalhadores são macacos) produz todo o tipo de derivados de carne de macaco. O género oscila de conto para conto entre a aventura, a paródia às histórias de superheróis ou à manga à la Naruto, e a narrativa sentimental.  

Crítica a um hipercapitalismo autofágico, capaz até de corromper deus? Sim, claro. Mas ativismo social e arquitectura narrativa são secundários – boas intenções são úteis, mas a obra pode bem viver sem elas. O que define esta novela gráfica é um sentido de jogo: uma energia pueril, caótica, fecunda, provocadora que diz sim a tudo, que não sabe quando parar, que se compraz em chocar, combinada com virtuosismo técnico. Está em tudo: no traço, no uso de cor, nos vastos painéis a transbordar de um pormenor desnecessário para avançar a narrativa, mas a história que realmente conta é a da alegria da criação. Está no humor infantil, grotesco, visceral, irrealisticamente violento. Como exemplo deixo algumas páginas de Monkey Meat, são mais ilucidativas e interessantes do que a minha prosa. Digo apenas que esta é uma novela gráfica que me impressionou como já não sucedia há algum tempo e que recomendo vivamente. 

Juni Ba, Monkey Meat, Image Comics, 2022

'Hoje não' de Ana Margarida Matos

Ana Margarida Matos, Hoje não, Chili com Carne, 2021 (banda desenhada). O livro foi vencedor da oitava edição do concurso “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD!” organizado pela editora Chili com Carne

Um diário da pandemia? Não propriamente. Uma encenação de um diário. Cada dia capturado no confinamento de uma página por meio de uma imagem (ou conjugação de imagens) e um verbete diarístico. Os mecanismos narrativos são a conjugação destes elementos – imagens, marcadores textuais, uma data – e as dinâmicas da sequencialidade – como os dias se relacionam entre si.

A pandemia, o sentimento de estar preso num mesmo lugar, num mesmo dia, imposto pela perda de elementos referenciais distintivos, ansiedade em relação ao futuro académico e profissional (a voz que nos fala é a de uma estudante a terminar a licenciatura em Belas Artes), indagações/apontamentos sobre a natureza da arte, a procura e formação de uma entidade artística, o registo de uma dieta que a minha sensibilidade vegetariana não pode deixar de reprovar,  estes são os temas encenados para nós no espaço confinado de cada página.

“Ingenuidade” é uma palavra traiçoeira. Sim, algumas observações são óbvias, “ingénuas”. Mas a maioria das nossas palavras são óbvias ou ingénuas. A nossa reacção à notícia do aumento do número de mortes diárias é óbvia, o sentimento de apreensão de um estudante de licenciatura prestes a entrar no mercado de trabalho é óbvio. A nossa previsibilidade é um bilhete de entrada num espaço partilhado. Mas se por um lado os marcadores textuais nos guiam para lugares públicos, as representações visuais encenam experiências mais específicas: a íntima curiosidade do artista que explora o espaço quotidiano e procura maneiras de o representar. O livro vive sobretudo desta tensão entre uma realidade partilhada, previsível (“mais uma bifana ao almoço”, “o Chega saiu-se bem nas eleições”, etc.), e a intimidade do olhar artístico (continuamente à procura de reinventar/re-representar o espaço). E não há nada de “ingénuo” na encenação desta tensão: é um esforço deliberado, complexo e inventivo, e o resultado é uma obra ao mesmo tempo pessoal e partilhada, empática e íntima.

Ultimate Spider-Man (Brian Michael Bendis, 2000-2011)

Ultimate Spider-Man 49, Janeiro de 2004. Texto: Brian Michael Bendis, desenho: Mark Bagley.

Como criar algo que já existe e fazê-lo novo? Como obedecer a uma série de directrizes ditadas pela exigência da indústria, excursos em eventos esmagadores, reuniões de estranhos que preferiam estar sozinhos nos seus próprios quadradinhos a ter de ser figurantes no banquete onde toda a gente é servida McDonalds, e ainda assim contar a história íntima de um rapaz a tentar encontrar o seu lugar no mundo? E apesar de tudo a escrita de Brian Michael Bendis, leve e saltitona, consegue fazê-lo parecer fácil. Este é um mundo em que os super-heróis ainda conseguem salvar o dia, mas onde os super vilões não vestem licra. Os seus erros são os da ganância, tão inocentes nos tempos que correm, porque afinal esses pecadilhos de fato e gravata, cometidos longe do foco da banda desenhada, são perfeitamente desculpáveis, e até protegidos pela lei. E o que pode um pobre rapaz de Queens com um carapuz na cabeça e um fato ridículo, remendado no traseiro, mesmo um capaz de trepar paredes, contra as leis da sociedade? Mas há um lar, uma família, as aulas de matemática, o amor de juventude, todos os pequenos rituais que nos fazem humanos entre humanos. E de alguma forma, também nós fomos convidados e somos bem-vindos nesta casa.

Uma lista de todos os números de Ultimate Spider-Man pode ser encontrada aqui.

Porque não há nota de segunda-feira esta semana

Os dez leitores que seguem este blog terão reparado que mantemos uma rubrica chamada “Notas de segunda-feira”. O que essa rubrica é suposto ser ao certo ainda estamos a tentar descobrir, mas a ideia geral é que todas as semanas um dos editores escreve uma nota mais ou menos leviana sobre o seu fim-de-semana, ou sobre algo que o captivou recentemente. Esta semana calhava-me a mim escrever a nota semanal. Este texto serve para justificar porque não o fiz.

Eu até que estava bem lançado. Tinha duas ideias para o texto, planeava escrevê-lo no sábado, deixá-lo repousar, lê-lo no domingo, descobrir que aquilo era uma parvoíce pegada e escrever outro em nada melhor, e corrigir os muitos erros e gralhas na terça, depois de os demais editores da Enfermaria me darem na cabeça. Este é o método de escrita que apurei nos últimos tempos, e acho-o extremamente eficiente. Mas algo inesperado e totalmente fora do meu controlo tomou conta do meu fim-de-semana e arrumou o meu cuidado plano na gaveta do esquecimento. Mas já lá chegamos.

 

Tópico 1 para a nota de segunda-feira que não chegou a ser escrita: Succession (2018)

A minha primeira ideia era escrever sobre a série Succession, https://www.imdb.com/title/tt7660850/?ref_=nv_sr_1). Acabei de ver a primeira temporada esta semana, e é soberba. Criada por Jesse Armstrong, um dos argumentistas de Thick of it, uma das minhas séries preferidas dos últimos anos, tem em comum com esta o humor negro e a arte de bem praguejar. É uma espécie de King Lear moderno: o patriarca da família Roy, o poderoso CEO de uma das maiores empresas de media do mundo, um misto de Trump e Murdock e excelentemente representado por Brian Cox, celebra o seu octagésimo aniversário, e os filhos posicionam-se para o suceder. O problema é que o pai não tem a mínima vontade de se reformar. Sim, claro que é um comentário à actual situação política (i.e, Trump e acesso ao poder que dinheiro e influência compram; nas minhas notas para o texto comentei “faças o que fizeres, não uses esta expressão”), mas é também um drama profundo, extremamente bem escrito, e com actores que certamente vão ganhar prémios a torto e a direito. Fui lá ter através deste texto na The New Yorker, que é muito melhor do que o meu texto seria: https://www.newyorker.com/culture/on-television/succession-reviewed-an-irresistible-family-power-struggle-told-through-soap-and-satire

 

Tópico 2: Sweet Tooth (2009-2012), de Jeff Lemire

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Jeff Lemire (n. 1976) é um escritor e desenhador de banda-desenhada canadiano e, desde que li a graphic novel[1]Essex County, no princípio deste ano, que estou apaixonado pelo seu trabalho. Essex County é uma colecção de contos em torno de uma comunidade rural no Canadá. As histórias são minimalistas e contidas, bem como o registo gráfico, interligadas de formas nem sempre óbvias. É talvez o livro mais comovente que li no último ano. Mas não era sobre esse livro que queria escrever, mas sobre a colecção Sweet Tooth, que Lemire escreveu e desenhou, e que foi publicada entre 2009 e 2012. Descrita pelo autor como “Mad Max meets Bambi” (com claras influências de The Road, de Cormack McCarthy), conta a história de um rapaz “híbrido” (a imagem da capa é elucidativa), que tenta sobreviver num mundo em que uma peste incurável e inexplicável dizimou a maior parte da humanidade, e os sobreviventes vivem atormentados pela certeza de que é apenas uma questão de tempo até que também eles contraiam a doença. Uma leitura ligeira, portanto.

 

Os meus amigos sabem do meu “interesse excessivo” por um género de videojogo genericamente denominado RPG (não me vou alargar aqui sobre a definição do género, algo fluída; direi apenas que estes jogos costumam conter uma série de elementos em comum: o jogador controla uma personagem ou um grupo de personagens, através de uma narrativa complexa, as personagens evolvem ao longo do jogo, adquirem novas capacidades e características, que alteram a forma como podem interagir com o mundo). Depois de me ouvirem discorrer durante cinco minutos sobre os méritos artísticos de jogos como The Witcher 3 ou Persona 4, eles tendem a dizer, com visível curiosidade: Não te vais pôr a falar sobre jogos de computador outra vez, pois não? O que eu tomo por sinal de interesse, e prossigo, expondo as razões porque prefiro The Witcher 3 a Fallout 4 (pace João Bosco da Silva), ou o que torna Persona 4 tão especial – o Persona 5 é excelente, e muito melhor tecnicamente, mas falha em fazer-nos sentir em casa e ligar-nos ao mundo da narrativa, como o Persona 4 faz tão bem…

Chegamos então ao ponto em que os meus planos de fim-de-semana foram deitados borda fora, como um pirata insubordinado lançado para um mar infestado de tubarões. Aconteceu-me isto:

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Não vou abusar da paciência dos leitores da Enfermaria. Direi apenas que Divinity: Original Sin 2 é um RPG excelente. Tem uma qualidade de escrita, tanto nas missões principais como nas missões secundárias, como não via desde The Witcher 3. O combate por turnos, de alta complexidade táctica à la X-Com, é fantástico, e encoraja a criatividade: por exemplo, hoje descobri que, se congelasse o solo sob o qual está um inimigo a sangrar, é possível que ele escorregue no seu próprio sangue congelado e perca a vez. É um jogo de uma audácia rara em termos do nível de agência que confia ao jogador: o jogador não gosta de uma personagem central e decide matá-la por capricho? Muito bem, o jogo permite fazê-lo, e foi concebido de maneira a que fosse possível a narrativa continuar, apesar de uma peça essencial estar em falta. Poderia continuar a discorrer sobre os méritos do jogo, mas não o vou fazer – quero antes ir limpar o sebo ao Bispo Alexandar.

 

Isto vem totalmente a despropósito, mas reli o Four Quartets este fim-de-semana. É ainda mais belo do que me lembrava.

 

Para acabar o post com uma mensagem positiva: aos dois leitores com menos de quarenta anos que lêem o blog eu digo: jovens, digam não às drogas e vão jogar Divinity: Original Sin 2. Ou ver Succession. Ou ler os livros acima mencionados. Ou simplesmente ler bons livros. Sim, isso é capaz de ser o melhor.


[1] Qual a tradução correcta de graphic novel? Romance gráfico?