Make Holywell great again [um poema do novo livro de José Pedro Moreira]
/para Shirley e Gordon Clark
1
quando terminou
a peça de Clara Schumann
e depois dos aplausos
o pianista se levantou
para apresentar a obra
de uma jovem compositora
Natalie Klouda
(n. 1984)
Mrs. Regan
agora convertida
em futura viúva
de um matemático britânico
não conteve
a sua indignação
e abandonou a sala em protesto
contra o progressivo aviltamento
dos padrões artísticos
da Holywell Music Room
a mais antiga
sala de concertos
da Europa
espalhando
à sua passagem
a redolência violenta que leva
alguns de nós
a evitar
o lado este da sala
2
o que me trouxe à memória
o dia
em que pela primeira vez ouvi
os Carducci Quartet
tocarem
o Oitavo Quarteto de Cordas
de Shostakovitch
Mrs. Reagan
alardeava triunfante
um cachecol vermelho
ainda mais nauseabundo
insuportável
aquele Shostakovitch
porque é que ele não se matou logo
e nos poupou o sofrimento?
mas o Beethoven que tocaram a seguir
era muito agradável
3
debatendo-se com os sintomas iniciais
de esclerose lateral amiotrófica
forçado a tornar-se membro
do Partido Comunista
Shostakovitch
fechou-se num apartamento em Dresden
e no espaço de três dias
12 a 14 de Julho de 1960
compôs
o que ele julgara ser
uma nota de despedida
um epitáfio que fala
da alegria de noivos
suados e exaustos
mas por fim reunidos
na conclusão
da mitzvah tantz
de aventureiros de mascarilha
em arriscadas cavalgadas nocturnas
por entre bosques românticos
da mão do assassino
seca e tremente
cada vez mais incapaz
de tocar o piano
no centro está
um homem sozinho
fechado numa casa
a chorar
a sua miséria
lá fora
chovem bombas
quando as iluminações cessarem
da cidade
restará apenas
a linha do violoncelo
4
a saída é sempre penosa
anciãos venerandos
recusam deixar o assento
arrastam os pés em protesto
adiando o mais possível
pagar o preço
que a cidade impõe
aos que se refugiam
na terra da música
se um dia houver um fogo
morremos aqui todos
diz-me o Professor Clark
e sorri
um homem sábio
sabe
como negociar
as pequenas derrotas
como quando
teve de correr pelas ruas de Tóquio
em fuga
de um grupo de bacantes
em frenesim
por o terem confundido
com Harrison Ford
chegados por fim à rua
a Shirley abraça-nos
até para a semana meus queridos
e de cada vez
nos sentimos
um pouco menos estrangeiros
José Pedro Moreira, Por favor não dê de comer aos unicórnios, não edições, Junho de 2021
Sobre o autor
Nasceu em Lisboa, em 1983.
Vive em Oxford.
Publicou traduções do 'Agamémnon' de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012) e de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012). Em 2020 foi publicada a sua tradução dos 'Hinos Homéricos' (juntamente com Tatiana Faia e Miguel Monteiro).
É um dos fundadores e editores da Enfermaria 6 (www.enfermaria6.com).
Em 2018 publicou o seu primeiro livro de poesia, 'Gatos no Quintal'. O seu segundo livro, 'Porque canta um pequeno coração', seria publicado na Colecção Mutatis-mutandis da não (edições) em 2019.