D.J. Enright, "Dizendo não"

tradução de José Pedro Moreira

Dizendo não

Depois de tantas (em tantos lugares) palavras
Chegou-se a esta, Não.
Épocas de periquitos, pavões, aves paradisíacas –
Então uma coruja careca grasnou, Não.

E agora (neste lugar, uma vez) para celebrar,
Um som servirá,
Depois da conversa entretecida com amor sobre arte, amor e destino –
Apenas, Não.

Alguma virtude aqui, neste inane estupefacto com o discurso,
Para manter as coisas breves.
Apesar, de quão enfadonha, inchada e distendida a dor –
Dizer tão só, Não.

Virtude (ou apenas decência) teria sido,
Mas – não.
Eu envolvo aquela cabeça da morte, tudo demasiado simples, demasiado claro,
Com longas e bonitas ligaduras dizendo,

Não.


Saying no

After so many (in so many places) words,
It came to this one, No.
Epochs of parakeets, of peacocks, of paradisiac birds –
Then one bald owl croaked, No.

And now (in this one place, one time) to celebrate,
One sound will serve,
After the love-laced talk of art, philosophy and fate –
Just, No.

Some virtue here, in this speech-stupefied inane,
To keep it short.
However, cumbrous, puffed and stretched the pain –
To say no more than, No.

Virtue (or only decency) it would have been,
But – no.
I dress that death’s head, all too plain, too clean,
With lots of pretty lengths of saying,

No.

Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.

Fraenkel

Eduard Fraenkel em Corpus Christi, Oxford

Eduard Fraenkel em Corpus Christi, Oxford

1

Sr.ª Professora
é verdade que Fraenkel
costumava assediar as alunas?
e a Sr.ª Professora Doutora
Maria Helena da Rocha Pereira
franziu os olhos
e perguntou
o Eduard ou o Hermann?
como quem pergunta
o senhor é idiota todos os dias
ou só quando está embriagado?

2

como aquelas figuras em Homero
que aparecem apenas
para serem despachadas
em meia-dúzia de versos
mas que antes
têm de merecer o privilégio
de uma morte ilustre
contando como o avô
anos antes
tinha caçado
um javali metafísico
ou da glória que o pai tinha trazido
à sua aldeia
nas guerras de boxe e xadrez
ele firmou os pés
e começou a desenrolar o pergaminho
da sua obsessão
que começara no texto de Ésquilo
mas que alastrara
para a edição comentada
de Eduard Fraenkel
um monumento filológico
com quase duas mil páginas
que com um humor perverso
não hesita em corrigir o Latim
dos editores que o precederam

 3

mas a verdadeira questão
era
mais difícil de formular

poderíamos tentar reunir
o maior número possível de fenómenos
que rodeiam a vida de um homem
filho de judeus berlinenses
o pai um comerciante de vinhos
a mãe herdeira de uma família de editores
Eduard começou por estudar direito
mas cedo mudou de área
e foi discípulo
de classicistas lendários
primeiro de Wilamowitz em Berlim
e depois de Friedrich Leo em Göttingen
inicialmente um Latinista
publicou importantes estudos sobre Plauto
e mais tarde sobre Horácio
o seu interesse
parecia voltar-se cada vez mais para os Gregos
quando em 1933
perdeu o lugar na faculdade
nas purgas nazis
e fugiu para Inglaterra
e se refugiou em Oxford
onde viria a morrer
a 5 de Fevereiro de 1970
mas este exercício
falharia em cartografar
a natureza de um homem
que submeteu a alma
a uma distensão e especialização tamanhas

 4

sim
eu estava lá
quando o
Agamémnon saiu
disse Rocha Pereira
o rosto menos severo
quase um sorriso
ele estava
tão alegre
foi como se um peso
lhe saísse de cima
o peso
de três enormes calhamaços
e riu
como sabe
dedicou-o à mulher
Ruth
eu jantei em casa deles
boa gente
um homem bem-parecido
não leve a mal que lhe diga
tocava muito bem guitarra
apesar do braço paralisado
boa gente
isso dos apalpanços
era bem sabido
a mim nunca me apalpou
talvez por achar
que não valia a pena
havia outras histórias
inclusive um caso
com a Iris Murdoch
ela foi aluna dele
nos seminários do
Agamémnon
os alunos lutavam por um lugar
nos seminários dele
verdade ou não
ele foi durante muito tempo
um mentor para ela
mas era óbvio
para quem os conhecesse
que ele e Ruth
se amavam profundamente
quando se conheceram
tiveram
de namorar às escondidas
os pais dela
não o viam com bons olhos
era uma família muito abastada
ambicionavam mais para a filha
do que um mero classicista
e depois o final
horas depois
de Ruth morrer
até nisso um classicista
na banheira
os pulsos abertos
bem
boa gente
disse Rocha Pereira
com os olhos a brilhar
boa gente
mas já o estou a aborrecer
com as minhas histórias
disse Rocha Pereira
e com um gesto brusco
estendeu
a sua mão
minúscula e firme

Frank

a filha encontrou
entre a tralha
empilhada no sótão
uma velha antologia
de poesia italiana
bolor
tempo
e uma caligrafia
demasiado complexa
tornaram a dedicatória
praticamente indecifrável
só a palavra
sposa
e a assinatura
Frank

mãe
quem era o Frank?
a mãe
não se recorda
não se lembra
de alguma vez
ter conhecido um Frank
é tão pouco
o que ela consegue
recordar por estes dias

mas ainda sabe
alguns versos de cor

Ultimate Spider-Man (Brian Michael Bendis, 2000-2011)

Ultimate Spider-Man 49, Janeiro de 2004. Texto: Brian Michael Bendis, desenho: Mark Bagley.

Como criar algo que já existe e fazê-lo novo? Como obedecer a uma série de directrizes ditadas pela exigência da indústria, excursos em eventos esmagadores, reuniões de estranhos que preferiam estar sozinhos nos seus próprios quadradinhos a ter de ser figurantes no banquete onde toda a gente é servida McDonalds, e ainda assim contar a história íntima de um rapaz a tentar encontrar o seu lugar no mundo? E apesar de tudo a escrita de Brian Michael Bendis, leve e saltitona, consegue fazê-lo parecer fácil. Este é um mundo em que os super-heróis ainda conseguem salvar o dia, mas onde os super vilões não vestem licra. Os seus erros são os da ganância, tão inocentes nos tempos que correm, porque afinal esses pecadilhos de fato e gravata, cometidos longe do foco da banda desenhada, são perfeitamente desculpáveis, e até protegidos pela lei. E o que pode um pobre rapaz de Queens com um carapuz na cabeça e um fato ridículo, remendado no traseiro, mesmo um capaz de trepar paredes, contra as leis da sociedade? Mas há um lar, uma família, as aulas de matemática, o amor de juventude, todos os pequenos rituais que nos fazem humanos entre humanos. E de alguma forma, também nós fomos convidados e somos bem-vindos nesta casa.

Uma lista de todos os números de Ultimate Spider-Man pode ser encontrada aqui.