Sinéad Morrissey, O espelho de tecto

 Sinéad Morrissey (Irlanda, 1972) 
There was a Fire in Vancouver, Carcanet, Manchester, 1996
Tradução de José Manuel Teixeira da Silva

 

Desmontei-o há dois anos, mas continua a bater-me à porta.
Havia nele espaço em demasia.
Do exterior, tudo lhe ofereci-
A curva longa da minha espinha; braços, pés, coxas.
Actuava e era o próprio realizador da sua imaginação,
E estava morto por possuir o mundo inteiro, cá fora. A vibrante
Coroa da minha cabeça era, no seu céu, a estrela que nascia.

Nunca estava cheio, nunca ficava só, e tive de o desejar
Sem o poder ver. Nenhuma exibição ou qualquer reflexo-
Nem ao menos nos seus olhos, tão fora de si próprio,
Tão à margem de si próprio, tão distante de cada derradeira célula 
De si próprio- e eu só ansiava por uma cega discrição.
Continua à minha porta, implorando pelo perdido barbitúrico,
Mas o espelho está nos arrumos. Só prometo teias de aranha, um pouco de cal.

THE MIRROR ON THE CEILING

I took it down two years ago, but he still comes knocking. 
There was too much space in him. 
I gave him everything on the outside – 
The long curve of my spine; arms, feet, thighs. 
He was the actor and director of his own imagination, 
Dying for every exterior. The moving 
Crown of my head was the rising star in his heaven. 

Never whole and never alone, I got to wanting it 
Without the sight of it. No show, no reflection – 
Not even in his eyes, which were so outside of himself, 
So beside himself, so down on every last cell of himself – 
I craved for nothing but blind discretion. 
He stands on my doorstep, pleading his lost barbiturate, 
But the mirror is in the outhouse. I promise cobwebs, whitewash.

 

Sinéad Morrissey, Exibição

É um jardim tão esvaziado de tempo que me faz deter, e sou incapaz de prosseguir.
Culpo as folhas: caem pelo céu numa chuva assim selvagem e dourada
Empurram-me para que as veja mergulhadas nas flores, nas tumbas
Que alguém gravou com nomes e datas, fé e dor, como se fossem
bandeiras naufragadas. Não sobram dias que possamos atravessar, todos os seres
E lugares se desvaneceram no fogo da natureza, e persiste apenas por aqui a morte
Do Outono, que ela tão bem sabe executar. A consumada ruína das árvores
Não é verdadeira dor, mas somente o culminar dos ensaios.
Pergunto-me que rosto será o das tumbas
Quando aqui se encontrar o Inverno, e o espectáculo tiver enfim terminado.

  

Sinéad Morrisey, There was a Fire in Vancouver, Carcanet, Manchester, 1996

 

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

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Desatenção

Não sei se me lembro bem, foi inesquecível. Tínhamos finalmente alcançado o lugar monumental e famoso, e tudo aconteceu deste modo, sensivelmente deste modo. O autocarro da excursão escolar percorrera em esforço as estradas sinuosas e fomos reparando que o guião da viagem, tão minucioso, incluindo mapas e umas quantas citações poéticas, servia de leque, óculo improvisado ou avião de brincadeira que aterrava no sítio subitamente tão concreto. Sintra, atravessada de luz entre arvoredos, abraçava viajantes afinal desprevenidos. Olhávamos com surpresa e o grupo desorganizava-se. Onde fixar a atenção?

Os responsáveis pela visita de estudo inquietam-se com o incumprimento do roteiro. Impunha-se seguir de imediato o percurso do capítulo VIII de Os Maias, expoente, sublinha o guião, da arte realista; subtítulo, como é sabido, “Episódios da vida romântica”. Mas alguns alunos lambiam enormes gelados, outros ficavam a ouvir música no passeio oposto, voltados para uma parede vazia. Os olhos piscavam, encandeados, porque a praça onde estacionáramos entontecia de demasiada luz. O centro do lugar, onde quer que isso fosse, irradiava em labirintos ofuscados. Estavam desatentos! Sintra refulgia de espaço, como assinalava de novo o guião, mas as sombras eram também fortes e criavam áreas onde a humidade se tornava espessa e os vultos quase invisíveis. Estaríamos todos? Sorviam enormes gelados, mostravam-se imensamente desatentos e olhavam para tudo.

 

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Enumeração: August in Paris

a)
No papel em branco, começar por estabelecer a teoria das três cidades (no mínimo): aérea, ao nível dos cais, subterrânea. Ir para lá do sítio onde sempre caminham os nossos pés, aquele que vem nos mapas dos turistas, muito dobrados sobre si próprios. Quem sabe, contar depois, com falsa ingenuidade, (mas será difícil…) uma história que tentasse nada disso esquecer. Nada disso e tudo o mais. Recapitulando. Primeira cidade: nas torres o lugar suspenso das nuvens, as ruas e as praças como um brinquedo frágil e sofisticado, com um trânsito preciso, cuidadoso; segunda: uma cidade mesmo junto ao rio, percurso solitário e errático de cais, largando os negócios do corpo e da alma uns metros acima; terceira: uma imensa plataforma subterrânea, túneis e túneis entrecruzando-se, esgotos, colónias de ratazanas e uma necrópole que murmura um silêncio com demasiada terra e raízes.

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