Sinéad Morrissey, Exibição

É um jardim tão esvaziado de tempo que me faz deter, e sou incapaz de prosseguir.
Culpo as folhas: caem pelo céu numa chuva assim selvagem e dourada
Empurram-me para que as veja mergulhadas nas flores, nas tumbas
Que alguém gravou com nomes e datas, fé e dor, como se fossem
bandeiras naufragadas. Não sobram dias que possamos atravessar, todos os seres
E lugares se desvaneceram no fogo da natureza, e persiste apenas por aqui a morte
Do Outono, que ela tão bem sabe executar. A consumada ruína das árvores
Não é verdadeira dor, mas somente o culminar dos ensaios.
Pergunto-me que rosto será o das tumbas
Quando aqui se encontrar o Inverno, e o espectáculo tiver enfim terminado.

  

Sinéad Morrisey, There was a Fire in Vancouver, Carcanet, Manchester, 1996

 

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

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Nick Laird, Retrato do Artista Enquanto Piada

E no entanto chacina pode ser o plural riso...
– Javier Rodrigues Rodrigues (traduzido por Joseph Coleman)
 

Foi assim que me contaram a história:
um inglês, um irlandês e um escocês
que desciam a Union, chacinados, com grande espalhafato, e
o resto é uma lenta ascensão seguida de queda.
Eu fumava, enquanto ia passando os olhos pelo copo embaciado,

 

o relógio de mergulho, o anúncio da Guinness por trás
do gim, e vi três rostos que num esgar pronunciam:
O teu gajo entra num bar, com balcão de ferro... au.

*

A meio do caminho haverá desejos, esposas, ilhas
desertas em silêncio, tribos da selva, pelotões de fuzilamento,
últimos pedidos e génios engarrafados em jogos infantis.

No fim, vêem-se os frascos marcados pela maré, abandonados
a um fumo táctil, os fios eléctricos descarnados

do ar que pende como mordaças a puxarem burros para trás,
que à partida já não eram nada de especial.
Portanto, por favor, nada de aplausos, de risos, e, por favor, nada de aplausos.

*

De cada vez que uma rodada transforma o vidro no choque
sólido da chuva, e o pub gera as suas bolsas de ar, encolhe os ombros e cria raízes,
há uma ovação até às casas de banho. Um caralho qualquer, um gordo,


leva um soco na pança e é atirado para dentro de um Corsa.
Inesperado ferimento de bala, a lua surge


para inundar o parque de estacionamento. Outro qualquer que
discorra sobre piadas e o inconsciente,
outro qualquer que se refira à sorte dos irlandeses.

*

No espesso relvado à esquerda da relva bem aparada,
o mesmo homem que entrou no bar
está ali, dobrado de riso.

A palhaçada do seu rosto rude, cor de
casca de ovo, está prestes a romper num esgar,

o último a ser visto no azul de céu de um fraque,
escarranchado no grande ecrã do seu Samsung.
O mais certo é que ninguém se meta com ele.


*

À luz do dia, a lua declina no céu como uma gota
de condensação e, em sinal de respeito, tiram-se bonés
de golfe que anunciam lendários nomes locais, depois alguém tosse,

desliga a musiquinha do relógio de pulso.
O segredo da boa comédia.

O modo como o horizonte quase intercepta
a língua da lua, esticada para a comunhão,
como uma piada por momentos esquecida.

 

Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005

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Nick Laird, Da Beleza

Tradução de Hugo Pinto Santos

Não, não poderíamos fazer a lista
dos pecados que não nos podem perdoar.
Aos mais belos não falta uma ferida.
Começa a nevar permanentemente.

Para os pecados que não nos podem perdoar,
as palavras são maravilhosamente inúteis.
Começa a nevar permanentemente.
Os mais belos sabem disto.

As palavras são maravilhosamente inúteis.
São as malditas.
Os mais belos sabem disto.
Deixam-se ficar por ali com a falta de naturalidade de uma estátua.

São os malditos,
e, portanto, a sua tristeza é perfeita,
delicada como um ovo poisado na palma da mão.
Quando endurece, é decorada com a cara deles

e, portanto, a sua tristeza é perfeita.
Aos mais belos não falta uma ferida.
Quando endurece, é decorada com a cara deles.
Não, não poderíamos fazer a lista.

Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005

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Nick Laird, Alba

Tradução de Hugo Pinto Santos

Vai para casa. Há semanas que não durmo
sozinho e preciso de me estender
sobre os lençóis até encontrar não o calor mas a perda.
E é essa falta que me vê agora tão gordo
e nada satisfeito – com isso quero eu dizer-me
incapaz, seja de dureza, seja de amabilidade.
Inapto para falar a homem ou animal,
Não seria capaz de te deixar
veres-me assim tirado pelo avesso,
o que quer dizer que o que importa é lá estar.
Não aqui. Se soubesses o suficiente, saberias
que é na remoção que se é amado.
Levanta-te. Leva-te até à noite.
Percorre ruas que jazem contrárias e se atravessam
a si mesmas numa prece por sombra, depois luz.

 

Nick Laird, To a Fault, Faber & Faber, 2005

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Quatro Poemas de Samuel Beckett, traduzidos do francês pelo autor

Tradução de Hugo Pinto Santos

1. Dieppe

torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz

 

2.

o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo

a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha

3.

que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha


que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil

 

4.

Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor

 

Four Poems by Samuel Beckett

1. Dieppe

again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town

2.

my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end

my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts

3.

what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust

what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness

4.

I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me