Dois poemas de 'Um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana' (Ed. Contracapa, selecção e tradução por João Coles)

 
um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana, Editora Contracapa, 2020

um pouco do meu sangue - Antologia de poesia italiana, Editora Contracapa, 2020

O rei pescador

Diz-se
que o Rei dos pescadores não busca senão
almas.

Eu já vi mais do que um
trazer para o lodo dos charcos
clarões de lápis-lazúli.

O seu reino é à medida do milímetro,
a sua flecha inexpugánel
pelos flashes.

Apenas o Rei pescador
tem a medida certa,
os demais têm uma só alma
e o medo
de perdê-la.

Eugenio Montale


[Se a alma perde o seu dom]

Se a alma perde o seu dom então perde terreno, se o inferno
é algo garantido, então a Abissínia da minha alma renasce.
Se a alva decide morrer, então o rio das nossas
lágrimas alarga-se, e a voz de Deus permanece contemplada.
Se a alma é a repugnância dos sentidos, então o amor
é uma ciência que fracassa à primeira tentativa. Se a alma vende a sua
bagagem, então a tinta é um paraíso. Se a alma
desce do seu degrau, a terra morre.

Eu contemplo os pássaros que cantam mas a minha alma
está triste como um soldado na guerra.

Amelia Rosselli


 

*Também disponível em breve na Livraria Poetria*

SAGA – Haikus Islandeses

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Em direção ao céu

os degraus

imitando um vulcão.

 

Contra o horizonte branco

dançam timidamente

as flores coloridas.

 

Envolvendo dentes-de-leão

uma renda –

longe a minha mãe.

 

Nesses mesmos seios

a saliva

de outro.

 

Sobre as ondas solidificadas

cresce o musgo –

dragões adormecidos.

 

“Não passarás”

disse o mar –

tornou-se ilha.

 

Agulhas caindo

numa lata de bolachas

vazia.

 

Alma lavada

com as entranhas

da terra.

 

Gotas caindo

na lagoa quente –

música de felicidade.

 

De barriga vazia

cheio de cansaço

e felicidade.

 

Mergulhando sob o azul

alguém toca piano

no meu esqueleto.

 

O musgo

cobre de suavidade

a violência arrefecida.

 

Ouço a guitarra

de Mike Oldfield –

chuva na Islândia.

 

Como estrelas cadentes

as gotas de chuva

percorrendo a janela.

 

Com os anos

tornei-me capaz

de ver apenas.

 

No azul quente

dos teus olhos

aqueço a alma.

 

No pêlo molhado

da égua

a marca da sela.

 

O poeta era leve

Saga

nem se cansou.

 

No pêlo do cavalo

Cai a chuva miúda –

verão islandês.

 

O que deus

deixou por acabar

o mais belo.

 

Nas arestas verdes

pastam

as ovelhas.

 

Caindo do infinito

mergulha a água

na terra.

 

Ainda não tiveram

tempo os riachos

de esculpir a terra.

 

Sobre verdes campos

os fardos

já esperam o Inverno.

 

Alguém regressa a casa

chove

amanhã amanhecerá.

 

É a chuva que cai

ou é apenas o mundo

a ser?

 

Pés molhados

copo de Brennivín

espera.

 

Depois de tantos anos

que pressa levam

as águas dos glaciares?

 

Contra os vidros

a chuva

acaricia-me o cansaço.

 

Ante que o verde branco

as ovelhas continuam

a pastar.

 

Não ouvir nada

além do vento –

que sorte a minha!

 

Em frente à cascata

três cavalos

contemplam a erva.

 

Do alto da montanha

vejo o mar

fecho os olhos vejo tudo.

 

Em cima da fraga

escutar atentamente

o silêncio.

 

Atirar calhaus

monte abaixo

e ver onde param.

 

Que fúrias divinas

terão esculpido

tais montanhas?

 

A pequena igreja

sobre a obra

de deuses antigos.

 

O templo maior é aquele

onde a chuva cai

livremente.

 

Depois de uma longa caminhada

os três cavalos

continuam no mesmo lugar.

 

Gotas de água

numa teia

esperam o Sol.

 

Abri o frasco

de tubarão fermentado

logo me arrependi.

 

Lá fora o vento

canta algo

que só compreendo dentro.

 

As luzes dos carros

passam

levando as vidas.

 

Inspirar fundo

o azul primitivo

da noite nórdica.

 

As nuvens afastam-se

e o verde

ilumina-se.

 

Milhares de anos

azul cortando

o verde.

 

Quase chegaram

a terra

os trolls de Reynisfjara.

 

Depois de tecer

a teia

a aranha espera.

 

A traça não compreende

a natureza

do vidro.

 

Vinho italiano

trutas islandesas

saudade portuguesa.

 

Até no paraíso o português

terá saudades

do seu buraco.

 

Nos montes o verde

escurece

na garrafa aclara.

 

Que pedem as vacas

que mugem

na escuridão?

 

À entrada da porta

o gato cinzento

despede-se dos viajantes.

 

O açúcar na chávena

arrefece –

chove no porto.

 

Más notícias

vêm de longe –

chove no porto.

 

Inalo o fumo

A chuva cai

Os carros passam.

 

Escrevo

porque os mortos

me visitam.

 

Islândia, Agosto de 2020

"Olhem bem como poisou a tinta"

Olhem bem como poisou a tinta
Saturno é senão a vítima castigada por um
génio pior que aquele que por ele espalha
o motivo do nosso horror precipitado

É verdade que os seus filhos
não podendo sequer sufocar o
primeiro choro escorrem-lhe já
desbordados pela beiça apavorada
mas a sorte é principal nesse sangue
juvenil e primordial sangue de onde
pende a cabeça miúda decepada
sangue vertendo finamente até aos
cavados feitos pelo gigante na carne
alva terna e maculada de inocência

Saturno curva-se ante uma pena eterna
o crime escorregadio da moral e do poder
cometido pelos homens todos do mundo
será justa a absolvição para um infanticídio
perdão para a fatalidade absoluta?

Olhando para o meneio do olhar lutuoso
salgando a carne húmida com as lágrimas
ferventes fala-nos do caos da tormenta
feita em seu rosto e esgota-se a divindade
nessa poluída fabulação de virtude

Vai sem castigo porque tu és só a pequenez
semeada nos homens e inevitavelmente
Júpiter dará a sua volta professa no céu infinito
vindo salvar essa tua tirania da já seca imortalidade

Os Persas de Ésquilo, Epidauro, Teatro Nacional da Grécia, 25 de Julho de 2020 

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O teatro de Epidauro é o elemento central de um complexo arqueológico dedicado ao deus da medicina, Asclépio, e é de todos os teatros que nos chegaram da antiguidade o mais bem conservado: a estrutura e a acústica permanecem intactas, como, segundo nos conta Pausânias, as sonhou o arquitecto Policleito no final do século IV a.C. Os doentes que convalesciam no santuário eram encorajados a ver teatro como parte da sua terapêutica. No poema “Out of the bag” do livro Electric Light, Seamus Heaney alucina que é visitado por Higeia, deusa da saúde, em Epidauro. O espaço é representado como uma espécie de fantasmagoria que convoca uma memória de infância, uma ideia de fábrica do ser, um teatro de retorno à origem, demasiado quente, um pouco doentio, fértil. Em 1988, num texto lido na Sorbonne 13 anos antes de o livro de Heaney ver a luz do dia, e hoje coligido como “Arte Poética V,” Sophia narra uma experiência em Epidauro, que existe como espécie de regra crucial da sua poética:

 

            Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário de almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.

            Tempos depois escrevi estes três versos: 

            A voz sobe os últimos degraus
          Oiço a palavra alada impessoal
            Que reconheço por não ser já minha.

            Há em Epidauro a impressão de estarmos perante algo que nos ultrapassa e que nos liga profundamente à origem (Heaney) e à passagem do tempo (Sophia), talvez porque o presente e um passado muito antigo se toquem neste espaço, num amplo parque hoje adornado de ruínas e pinheiros, onde sob o calor violento nos passeamos e nos podemos encontrar, talvez como explica Sophia com algo que, libertando-nos, nos devolve a nós próprios alterados. Qualquer coisa como um encontro com a profundidade do ser. Isto não é tanto uma explicação um pouco esotérica de um lugar difícil de explicar em palavras, mas antes uma ilustração do que as palavras dos poetas podem acrescentar ao nosso entendimento de um espaço para além do convívio com manuais de arqueologia e guias de viagem.

Na contemporaneidade, o Festival de Atenas e Epidauro acontece no pico do verão. Durante as representações em Epidauro o canto das cigarras enche a atmosfera, mistura-se e compete com as vozes das centenas de pessoas que compõem a audiência, uma amálgama de gregos e turistas. É sempre o coro das cigarras que ganha no fim da peça e existe como o fio condutor que nos resgata da tensão constante em que o acto de ver uma tragédia nos mantém. É esse o som, acho, que no final nos devolve à realidade, que assinala que ainda somos parte do mundo. Há no meio da algazarra um horizonte da mais profunda inquietude: a iluminação artificial necessária à representação é um acidente que apenas temporariamente afasta a escuridão da noite e essa escuridão é o mais adequado pano de fundo contra o qual ver tragédia. Não há talvez uma única tragédia que nos tenha chegado da antiguidade que não seja acerca de um combate contra alguma espécie de força obscura: a nossa desmesura, a dos outros, a das circunstâncias, a cólera dos deuses, a força opressiva das leis sob as quais vivemos ou sob as quais nos querem fazer viver. A tragédia é uma arte de questionamento de coisas impostas e recebidas, feita de tenções e negações, de gestos de não aceitação, desobediência e revolta. É também por isso que os atenienses viam nela uma expressão vital da sua participação cívica. Não é por nada que o seu declínio parece acompanhar o da polis ateniense. A melhor definição que conheço, dada na contemporaneidade, do que era o trabalho de um tragediógrafo, aparece num poema de Yiorgos Seferis (Nobel da Literatura em 1963), sobre Eurípides:

 

Euripides the Athenian

 

He grew old between the fires of Troy
and the quarries of Sicily. 

He liked sea-shore caves and pictures of the sea.
He saw the veins of men
as a net the gods made to catch us in like wild beasts:
he tried to break through it.
He was a sour man, his friends were few;
when his time came he was torn to pieces by dogs.

 

Seferis (tradução de Edmund Keeley e Philip Sherrard)

 

 

No passado 25 de Junho o Teatro Nacional da Grécia estreou a sua peça em Epidauro pela primeira vez na sua história também em directo online, numa tentativa de divulgar o festival e contrariar aquilo que a câmaras não esconderam: como seria de prever, uma audiência muito abaixo do habitual, que de outro modo é o espelho de uma crise profunda que vai alterar radicalmente a face de certas artes e provavelmente vai forçar certos sectores e instituições a uma reinvenção difícil e radical. Basta pensar que em Londres o híper-turístico Globe Theatre está à beira da falência.

Os Persas de Ésquilo é uma peça que sobrevive há várias centenas de anos. As palavras que compõem o texto foram escutadas pela primeira vez em cena em 472 a.C., entre os atenienses. O corego, isto é, o cidadão que custeava a despesa do coro, foi Péricles, o lendário estadista da idade de ouro da Atenas clássica. Os Persas é a primeira peça de Ésquilo que nos chega, embora a sua carreira tivesse começado um pouco mais cedo. É uma peça bastante excepcional: o seu tema não são os mitos que para os tragediógrafos foram muitas vezes uma segunda língua a partir da qual falavam do seu próprio tempo, mas um acontecimento contemporâneo, no qual Ésquilo esteve envolvido, que era para ele um assunto pessoal e um facto da sua biografia: a guerra contra os persas, que ocupou a primeira metade do séc. V a.C., e chega ao fim com os gregos vitoriosos, sendo o evento principal que precipita e permite a hegemonia de Atenas clássica sobre as outras cidades-estado da Grécia. Ésquilo combateu em Maratona em 490 contra o exército de Dario e muito provavelmente de novo em 480 em Salamina, o principal evento histórico a que a sua peça se refere, e perdeu um irmão na guerra. Ésquilo devia ter consciência de que um dramaturgo escrever sobre a guerra contra os persas podia custar caro, literalmente. Frínico, pouco depois de 494 a.C., levara a cena uma peça cujo tema era o saque de Mileto. Esta peça perdeu-se, mas sobre ela diz-nos Heródoto que os atenienses multaram Frínico em mil dracmas pelo atrevimento de os recordar dos seus próprios problemas.

A relação visceral dos gregos com o teatro é algo não está de todo circunscrito à antiguidade. A formação daquilo que é o carácter cultural da Grécia contemporânea pode ser explicado em torno de um evento que ficou conhecido como a Orestiaka. No outono de 1903 o Teatro Nacional, então acabado de fundar, leva a cena uma versão da Oresteia em demótico (a língua vernácula, por oposição à norma culta do katharevousa, a norma culta e uma reconstituição próxima do grego antigo) da autoria de um dos poetas nacionais da Grécia, Kostis Palamas. Protestos e confrontos, sobretudo de estudantes, entre os apoiantes e os opositores da ideia de ser possível encenar uma versão moderna e em demótico de uma tragédia antiga duraram vários dias e resultaram num morto. (Questões de base filológica na Grécia são outra coisa.)

            Os Persas levados à cena em Epidauro no passado dia 25 de Julho com encenação de Dimitris Lignadis, não são certamente material que possa gerar este tipo de controvérsia, mas também não são exactamente um objecto comercial facilmente descartável. Tomemos como exemplo duas críticas feitas à encenação que não podiam ser mais diametralmente opostas. Natalie Haynes no The Guardian dá-lhe quatro estrelas e chama à peça um triunfo de empatia, Louiza Arkoumania, na revista grega Lifo, dá-lhe uma estrela e arrasa a peça pela falta de empatia em relação aos persas, e, de facto, pelo aparente apagamento do tipo de pena e terror que se deve sentir por uma tão rápida e catastrófica mudança de fortuna como a que é representada na peça. No centro do texto estão o medo e a tensão constantes de Atossa, rainha do poderoso império persa, à espera de notícias do filho, que partira numa expedição contra os gregos, à cabeça de um exército que esvaziara a terra da Pérsia, assim nos diz o texto de Ésquilo, da flor da sua juventude. Todos os homens em idade militar haviam partido com ele, deixando apenas mulheres, anciãos e crianças para trás. O coro agita-se também ele à espera de notícias. O fantasma de Dario, numa cena que séculos mais tarde ecoaria um pouco em Shakespeare, é evocado em busca de conselho apenas para declarar o exército completamente perdido (não em pequena parte por causa da sua conduta impiedosa, saqueando estátuas de deuses e queimando templos), prevê o desastre que viria a seguir a Salamina, Plateias, e confirma que o exército dos Persas está para lá de salvação. A peça termina com a chegada de Xerxes, em farrapos, com as roupas manchadas de sangue.

            A cenografia, o guarda-roupa e, acima de tudo a música (que vem com alguns ecos da fértil tradição da música da liturgia ortodoxa grega, provavelmente ligada por uma longa linhagem de evolução criativa à tradição onde se originou a própria tragédia grega), nesta encenação de Lignadis são excelentes. Atossa é o centro da peça e é aqui que a controvérsia começa. Comecemos pelos actores, Lidia Kornodiou, a atriz que dá corpo a Atossa, foi ministra da cultura do Syriza, repetindo um feito que na história da Grécia parecia reservado apenas a Melina Mercouri, é uma das mais destacadas actrizes gregas, com uma longa e venerável carreira no teatro e na representação de teatro antigo. O centro da peça parece-me, no entanto, não ser tanto Atossa quanto o mensageiro, interpretado por Argiris Pantazaras. O guarda-roupa é incrivelmente elegante com ecos de alta costura, as camisas do coro e do mensageiro estão bordadas com excertos do texto de Ésquilo. A peça alterna em certos pontos entre o grego antigo e o grego moderno, e abre com o párodo em grego antigo, o que expõe perante a nossa visão e audição o facto de que Ésquilo é um dos maiores poetas que alguma vez viveu.

            Os problemas de Louiza Arkoumania com a peça são relevantes para pensar sobre a performance e começam com o guarda-roupa. Ela diz-nos que os actores parecem modelos de alta costura, o que é desadequado para um povo cujo exército acaba de sofrer uma pesada derrota (esta objecção é arqueologicamente errada, mas bastaria atentar no texto de Ésquilo, que constantemente chama a atenção para o facto de os persas serem fabulosamente ricos; o seu cuidado em termos de aparência era, de resto, famoso no mundo antigo). Que esta é a primeira de muitas falhas, porque é um dos primeiros obstáculos à nossa empatia, o que em parte está certo, o tratamento que Ésquilo faz dos persas é justo e nobre, numa lógica de nos dizer que a boa sorte pode terminar para qualquer um, e que a catástrofe que coubera aos persas pode bem mais tarde tornar-se a dos gregos, ninguém é invulnerável à mudança da fortuna. Mas há de facto algo de intrinsecamente desagradável em Atossa que em parte obscurece esta empatia, vestida de negro, há algo nela que nunca chega completamente a captivar-nos, ao contrário do que sucede em Ésquilo. Esta Atossa tem qualquer coisa de Lady Macbeth e, a partir daí, um pouco talvez de Melania Trump. Outros aspectos um pouco menos bem conseguidos (a expressão mais adequada será mesmo um pouco palermas) incluem o facto de que Atossa repete três vezes a pergunta acerca de quem é o déspota que governa sobre os gregos, sendo a democracia a mais importante diferença cultural entre persas e helenos, para que o mensageiro finalmente responda que eles não são servos nem súbditos de homem nenhum, quando no texto de Ésquilo esta pergunta é posta apenas uma vez (verso 241); outro desses aspectos menos bem conseguidos é o adereço da mini-Acrópole, constantemente acesa em palco, uma espécie de Acrópole-candeeiro para hipsters, que não convence como símbolo e arrasta para a sua pequenina escala uma cenografia de outro modo impecável.

Mas textos para performances não são evangelho, felizmente, e talvez a resistência a uma empatia completa que a encenação de Lignadis parece evocar cumpra uma função interessante. Os Persas é um texto bastante adequado ao nosso corrente contexto, é uma peça que fala de uma mudança abrupta de uma certa realidade política, da destruição de uma multidão de gente, da perda de vidas individuais que são insubstituíveis e vão deixar um trauma duradouro na memória colectiva. É também uma peça sobre um chefe de um vasto território que toma todas as decisões erradas, por ganância, soberba e falta de imaginação (para Xerxes seria inimaginável que a Grécia pudesse resistir a um tão poderoso exército). O tempo em que a peça decorre, centrado na psicologia da espera de Atossa e do coro, é o tempo do medo e da antecipação, aquele ponto em que a calma terminou e em que se espera apenas a confirmação da tempestade. No contraste entre o perfil de Xerxes enquanto governante e o de Dario, cujo fantasma é evocado pelo coro e Atossa (Dario, talvez a personagem com o guarda-roupa que menos me convenceu, faz lembrar o tio-avô que ainda não desistiu de se vestir para o Halloween, mas bem interpretado por Nikos Karathanos), estabelece-se a diferença entre um rei ponderado, cujo resultado fora um reinado próspero e feliz, e a impetuosidade e incompetência, ambas fatais, do jovem Xerxes.

            Mas é talvez por aqui que se pode entender porque parecem estes governantes persas de 2020 um pouco menos dignos da nossa simpatia do que o terão sido para o próprio Ésquilo, que vira de demasiado perto a sua ameaça, o terror e a destruição que eles trouxeram consigo. O aspecto mais desafiador e interessante da encenação de Lignadis é o final. No texto de Ésquilo, na cena final, o coro junta-se ao lamento de Xerxes, na única aparição em cena do jovem rei. Esta é uma cena difícil de encenar e traduções deste passo normalmente têm de ser muito cuidadas (em português de Portugal a tradução que temos inclui a opção absolutamente ridícula por uma versão que inclui um verso onde se lê “geme para me agradar,” que, não sendo infiel à letra, costumava no entanto convidar a risota geral de estudantes de tragédia grega). O corte de Lignadis com Ésquilo aqui é radical. Os membros do coro dos persas mantêm-se em silêncio, sentados atrás do rei, numa posição que lembra mais juízes num tribunal do que um séquito subserviente. A sua posição lembra outro passo magistral de Ésquilo, noutra tragédia, em que ele fala dos deuses ferozmente sentados ao leme. O coro, composto afinal apenas dos velhos que ficaram na Pérsia, muitos deles, infere-se, pais dos jovens mortos na expedição, é capaz da contenção que falta a Xerxes (Argiris Xafis). E é como se nos dissesse: já tivemos que baste de governantes que se enchem de pena de si próprios e que não aceitam a responsabilidade pelas suas péssimas decisões.  

Se eu achei a encenação de Lignadis lendária e perfeita, digna de inspirar uma Orestiaka? Claro que não. Mas esta cena final quase que dá vontade de lhe perdoar até a Acrópole dos pequeninos.

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Tatiana Faia

Oxford, 28 de Julho e 9 de Agosto de 2020

A educação na serra

I will not play at tug o' war.
I'd rather play at hug o' war,
Where everyone hugs
Instead of tugs,
Where everyone giggles
And rolls on the rug.
Where everyone kisses.
And everyone grins.
And everyone cuddles.
And everyone wins. 

Shel Silverstein

 

 Antes de chegar à casa
para assistir ao leve tremor das araucárias
descubro que a edificação fora projetada por Lúcio Costa
em algum momento perdido do século passado
e que, há poucos anos, o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
decidiu, mesmo sob protestos de moradores locais, erigir uma igreja
ao estilo gótico no frágil coração do bairro
Também descubro que parentes do dono da casa
um imigrante belga que desembarcara na Normandia
para lutar contra os nazistas
ajuizaram ação popular com o objetivo de interromper as obras da igreja
ou de, subsidiariamente, compelir o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
a implementar uma série de obrigações: a construção de estacionamento próprio
para os frequentadores, o isolamento acústico do templo, a adequação
da infraestrutura do prédio à rede de água e esgoto da cidade
etc., etc., etc.
Descubro, ainda, que o dono da casa – hoje quase centenário – casara-se
com uma imigrante americana, de família espanhola, após tê-la conhecido
em um evento da empresa de abrasivos em que ambos trabalhavam
Na época do encontro, ainda não existiam nem a casa, nem a igreja
tampouco L., o neto mais bonito do casal de imigrantes
que aparece, ainda criança, em algumas das diversas fotografias
espalhadas pelos cômodos do lugar, fotografias que aprenderam
a conviver com a farra das traças, com o cheiro da madeira
castigada pela umidade, com os risos que se ouvem
do lado de fora dos porta-retratos
O verão não grita sobre estes pinheiros, recém-plantados
para ocultar a efígie austera da igreja
que o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
mandou erguer nas imediações
As noites também preferem ser compridas
a emitir qualquer barulho que atrapalhe os vagalumes
ou as lagartixas à espreita dos vagalumes
Na rede branca estendida entre duas décadas, Ana P. me lembra Silvina Ocampo
ao brincar de esconder o rosto dos meus olhares, que, mesmo depois
de todo esse tempo, não cansam de cruzar-lhe as poses e as caretas
como a rios tímidos
Então, abandona a rede, joga-se na poltrona e espera a próxima chuva
enquanto J. costura, desmancha e torna a costurar
o sudário de sonhos que vaza dos seus desenhos inacabados
Não se fazem repúblicas sem novos desejos
e foi por isso – e não por causa da insolação – que P. ardeu em febre
dias depois de escutar um poema de João Cabral de Melo Neto
pela primeira vez na vida
Ana C. diz chorar sempre que lê O cão sem plumas
e se depara com aquelas imagens, insistentes feito prendas trágicas
A Ana C. de que falo nunca traduziu Katherine Mansfield
e segue tão viva quanto as esperanças de X., para quem o mundo
continua sendo capaz de fazer charme, apesar de tudo
Não quero ser obrigado a discorrer sobre revisionismo histórico
negacionismo climático ou crises constitucionais
Quero, isto sim, dizer que Clara também carrega, ao menos em parte, o nome
da mulher que amo
E. nos conta da sua infância em Miguel Pereira e de como o seu pai
é loucamente apaixonado pela música Nikita, cantada por Elton John
Com a câmera do seu celular, E. registra todas as nossas horas de distração no quintal
Ao fundo da tela, pode-se ver a arquitetura da igreja
Os pinheiros recém-plantados ainda são pequenos demais
para que se devolva à casa a sua velha paisagem.