Ésquilo, Coéforas, 585-630

Coro das Coéforas na  Oresteia encenada por Peter Hall (National Theater, 1981)

Coro das Coéforas na  Oresteia encenada por Peter Hall (National Theater, 1981)

estr. 1

Coro (cantando:)

A terra cria muitos seres
     temíveis, causa de medo e dor,
e os braços do mar
de monstros hostis
estão repletos; entre o céu e a terra as tochas[1]
no alto ferem
as criaturas aladas e as que caminham sobre a terra: elas podem
falar do ressentimento ventoso das tempestades.[2]

 

ant. 1
Mas do espírito excessivamente audaz
     do homem quem pode falar
ou das paixões da mente ousada
da mulher, capazes de tudo ousar,
parceiras nas desgraças dos mortais?
Os laços que unem o casal
a perversa paixão que domina a fêmea[3] desfaz,
tanto entre as feras como entre os homens.

 

estr. 2

Ficará a sabê-lo aquele cuja inteligência
     não voa longe
ao conhecer o desígnio que a destruidora do filho,
     a miserável filha de Téstias[4]
     
formou,
mulher que premeditadamente ateou o fogo,
     
incendiando o tição cor de sangue
da mesma idade do filho, desde que ele saiu
     
do ventre materno e chorou,
medindo a vida deste pela sua
até ao dia marcado pelo destino.

 

ant. 2

Uma outra há nos mitos para se detestar,[5]
     
uma donzela
manchada de sangue, a que tomou o partido dos inimigos
     
e matou o próprio pai,
     
persuadida
por um colar cretense
em ouro forjado, dádiva de Minos,
privando Niso do cabelo
imortal, quando ele, desprevenido,
no sono – cadela sem coração! – exalava um sopro.
E Hermes alcançou-o.[6]

 

estr. 3

Uma vez que recordei feitos
desapiedados, não distinto é o casamento odioso
     e abominável para a casa[7]
e os desígnios e maquinações de uma mulher
contra um homem que brandiu armas,
†homem respeitado até pelos inimigos†.
Honro o lar onde a lareira não é acendida pela paixão
e a lança da mulher não ousa.

 

Edição utilizada: M. L. West, Aeschylus, Choephoroe, Teubner, 1991.

[1] Provavelmente meteoros ou cometas.

[2] Esta estrofe está pejada de problemas textuais e o texto traduzido é bastante incerto.

[3] Expressão ambígua. O adjectivo θηλυκτρατής (thêlyktratês), que só ocorre neste passo em toda a literatura grega e que se traduziu por «que domina a fêmea», pode também significar «de uma fêmea dominadora» ou «pela qual a fêmea domina».

[4] Alteia, mãe de Meleagro, quando este nasceu ela foi informada de que o filho morreria quando o tição que então ardia na lareira fosse totalmente consumido pelo fogo. Ela tirou o tição da lareira e guardou-o numa caixa, mas mais tarde devolveu-o ao fogo, quando Meleagro matou os irmãos numa disputa.

[5] Cila, filha de Niso, rei de Mégara. Quando a sua cidade foi sitiada por Minos, rei de Creta, ela cortou a madeixa de cabelo que conferia imortalidade ao pai e sem o qual ele não podia viver, a troco de um colar de ouro, causando assim a sua morte.

[6] Hermes guiava as almas dos que morriam até ao Hades.

[7] O casamento de Clitemnestra com Egisto.

Imagem de Natividade

Geoffrey Hill

Tradução de Hugo Pinto Santos, 

para Tatiana Faia

 

Salvo do mar, aglomerado de detritos marinhos,
Vigas, quilhas, feridas de coral,
Rostos remotos, óleos efémeros,
Jorrados no mar alto do mundo,

Um rei-menino mudo
Alcança o seu posto; detém-se,
Incólume, entre lábeis serpentes; garras
De animais que a carne amacia. No congresso

Da privação torpe e banal,
O artista parece prestar culto
capitular; confirma a intimidade
Dos galardões; crê nos seus próprios olhos.

Acima do prodígio, toda a mente,
Densa, anjos, asas desnaturadas em riste,
Regelam num gesto
que lembra os mortos.

poema originalmente publicado em For the Unfallen (1959)

Read More

:no mato

:no mato
que é massa
andar
descalço, 

e a tudo
atento
que a flecha
o sol a pedra
a cobra
é uma só, 

é uma
a flecha
que fura
pedra
e a cobra
que caça
sol 

pra ir
avante
no mato,
trato,
coragem, 

no mato
que é massa,
mas mande
sempre
um salve,
não siga só:

 

*

Rodrigo Lobo Damasceno mantém o blogue de tradução de poesia chilena, otra versão.

Olhar sem ver

945421_10202290057954538_1552826070_n.jpg

                                                                                 © sonja valentina

Aguardo junto da janela, à espera que chegues; estás atrasado, para não variar. Como sempre, olho lá para fora, para a rua e para o céu, para o vazio, para nada em concreto, apenas porque olhar para algures (olhar sem ver) é uma forma eficaz de distrair o pensamento, de ocupar a passagem do tempo. Por vezes, a cortina acaricia-me o rosto, movendo-se quase imperceptivalmente ao ritmo da minha respiração (como se houvesse uma tempestade dentro de mim, a querer sair; como se a minha expiração fosse um vento incontrolável); e nada mais acontece: pensamentos e expirações em turbulência, ténues movimentos, suspensão da vida.

Mas de repente, ao sentir a ocasional carícia da cortina na minha face, surge-me no espírito uma questão súbita e inesperada (como se alguém invisível a gritasse com tal veemência que fosse impossível fugir-lhe): porque haveremos de usar cortinas, porque nos protegemos da luz? Porque não procuramos a luz? Não seria esse um desejo mais natural, uma necessidade mais natural? Afinal, a luz nunca deveria ser demasiada, deveríamos viver sôfregos por ela. Mas não: usamos cortinas. Porquê?

Paro um momento para pensar (ou seja: excluo todos os outros pensamentos da minha mente), percebendo que não estou a ser ensombrada por uma fútil e passageira questão mas por várias e múltiplas perplexidades, que se vão desdobrando, enredando-me em dúvidas. Na verdade, gostaria de estar a conversar estes assuntos contigo. (Lembras-te quando passávamos noites a discutir aquelas irrelevâncias que tanto nos entusiasmavam e comoviam? Teremos alguma vez falado de cortinas? Certamente que sim, porque na nossa primeira casa optámos por não usar cortinados; lembras-te?) Mas estás atrasado, como sempre; e, por isso, terei que conversar sozinha; comigo própria.

Que absurdo é pensar em cortinas; ou talvez não. Na realidade, um pensamento é uma parte de nós, nasce de nós e apenas existe porque nós existimos; deveremos, por isso, assumi-lo como nosso, pois afinal é uma mera exteriorização do que somos; cada pensamento é um pedaço de nós, tal como as mãos, o cabelo, as unhas; ou, noutra dimensão, como cada palavra que dizemos, como o cheiro que emanamos, como cada acção que executamos. Nós somos tudo isso; não apenas corpo e espírito mas também som e cheiro, tudo o que fazemos e sentimos e pensamos.

Pensemos em cortinas, então. (Detesto tanto os teus atrasos.) Usamo-las para nos protegermos do exterior, para não nos revelarmos demasiado; não concordas? Mas a verdade é que queremos revelar-nos um pouco (ou não teríamos janelas; recusaríamos o exterior; tentaríamos permanecer encerrados em nós, fugindo do mundo); queremos revelar-nos parcialmente e as cortinas protegem-nos, impedem que sejamos vistos inteiros e nítidos; as cortinas deformam-nos, desfocam-nos. É para isso que servem, é por isso que as usamos. Mas há um preço, infelizmente: também impedem que o mundo nos chegue completo e inteiro, pleno, fulgurante; filtram o que recebemos do mundo. Ou seja (digo eu a mim própria): o que nos protege também nos empobrece. E fico um instante a imaginar o que responderias a isto. Talvez dissesses: sim, tens razão; o que nos protege do mundo também protege o mundo de nós; e é uma ideia algo perturbadora, não achas? O mundo lá passa, sem nos ver completos, sem nos perceber completos; vê as nossas cortinas, apenas – e falo em cortinas como poderia falar em máscaras, não é? Protegemo-nos do mundo e, por isso, o mundo vê-nos parcialmente, vê um fragmento, uma sombra, uma aparência de nós. Mas será isso que desejamos verdadeiramente? Manipulamos o que o mundo vê de nós e achamos isso inteligente e sensato, pragmático; mas sê-lo-á?

Continuo a olhar lá para fora (o mundo a passar por mim, totalmente indiferente) e reflicto nesta tua ideia, nesta ideia que tive por ti: protegemo-nos com máscaras, como protegemos as janelas com cortinas. E depois, assim de repente e sem aviso, deixo de pensar nisso; não me apetece. Não me apetece pensar seja no que for porque, afinal, os pensamentos também podem ser como cortinas: separam-nos da realidade. E quando deixo de pensar, há algo que se torna óbvio: não me apetece esperar mais. O que desejo verdadeiramente – percebo-o sem surpresa nem receio, sem entusiasmo ou incredulidade – é dispensar a protecção das cortinas e abandonar a penumbra do nosso quarto; o que desejo é enfrentar o mundo e saborear toda a sua luz; mostrar-me ao mundo completa e inteira, ser luz. É isso o que desejo, assim de repente. Acreditas numa coisa destas? Atrasas-te, a cortina toque-o o rosto, os pensamentos atropelam-se: e é tudo; mas o suficiente para que a minha vida mude.

Saio sem sequer trancar a porta, corro pelas escadas e abandono o prédio, atravesso a rua como se fugisse a um qualquer perigo indefinido (ou como se corresse em direcção à felicidade?); mas depois paro, simplesmente paro: e fico a olhar para a nossa janela, vendo-a como nunca a vira antes, vendo-a do lado de fora. Estou parada no meio do passeio, há pessoas indiferentes e apáticas a passarem por mim (desviando-se, sem me tocarem; porque atemorizará tanto o toque de um estranho, o toque a um estranho?); o céu brilha, o ar resplandece de luz. E eu aqui parada, olhando a nossa janela: como se olhasse algo desconhecido e enigmático, algo que não fosse meu; tentando perceber como seria estar do lado de lá da cortina; tentando ver-me como os outros (o mundo) me veriam; olhando-me a mim própria – à versão pública de mim própria – mas sabendo que existe uma cortina pelo meio, a separar-nos. Perguntando-me: porque insistimos em manter duas versões de nós próprios, uma íntima e outra pública, versões irremediavelmente separadas por espessas cortinas inamovíveis? Porquê?

Eis-me, assim, chegada a este inesperado momento. Parada no passeio e sentindo a brisa no rosto, o vestido a esvoaçar ligeiramente, a luz a rodear-me, a envolver-me, a acariciar-me, a clarear-me, a inebriar-me: olho com ternura a nossa janela, a nossa cortina (sim, como se fosse uma despedida); mas não se trata de olhar sem ver, desta vez é algo diferente; olho e vejo mesmo. Vejo a realidade, sem o filtro de cortinas ou máscaras; apenas a realidade concreta e real, materializada numa banal janela, numa perspectiva diferente da mesma banal janela de sempre. E tu continuas sem chegar, atrasado; sempre apressado, apesar de irremediavelmente atrasado em relação à vida, a mim. Mas – e enquanto consciencializo isto talvez esteja a sorrir, o que é um pouco triste – o teu atraso deixa subitamente de ter qualquer importância; porque quando chegares, já não estarei à tua espera.