um massacre em Paris

você pode não fazer nada
que é uma ação que se resolve em si mesma 

você pode estar no trabalho
você pode não saber o que é Charlie Hebdo
quem: um homem rico, um senador da république
você pode não falar francês
você pode ter certeza da pronúncia
Tchárli à l'anglaise, Ebdô à la French 

você pode não saber o que é um hebdomadário
você pode não saber o que é um arrondissement
você pode não saber que a av. Paulista fica a 9401,51km do 20º arrondissement
a 9401,51km de distância
você pode se sentir desconfortável 

você pode ver os cartuns que seus amigos postam no Facebook
você pode ver os cartuns dos cartunistas mortos
você pode rir 

você pode nunca abrir uma edição do Charlie
você pode achar de mau gosto
você pode achar de péssimo gosto
você pode concordar com o Christopher Hitchens
você pode ser um enfant terrible
você pode achar melhor não mexer com a religião dos outros
você pode não querer saber quem são os Le Pen
você pode saber que nem todo mundo é terrorista
você pode achar os desenhos tão banais 

você pode ler as notícias sobre o ataque
você pode ler os live updates do NY Times e do Guardian
você pode ser um homem branco vivendo no Brasil
você pode ser uma mulher branca vivendo
você pode ser um homem muçulmano
você pode ser uma mulher muçulmana
você pode ser um bisneto de muçulmana
você pode ser um homem mulato nascido no Brasil
você pode ser um homem coreano recém-chegado ao Brasil
você pode ser um menino de Moçambique 

você pode ver repetidas vezes na TV um homem branco
sendo carregado de maca até uma ambulância
você pode notar que os tênis dele são Adidas
você pode nunca mais esquecer que os tênis eram Adidas
pretos com 3 listras brancas
e que ele estava sem camisa 

você pode ver repetidas vezes na TV
o policial deitado tomando tiros
nos headphones os tiros são tão altos
você pode arrancá-los de um susto 

você pode ver repetidas vezes na TV
um filminho de celular feito por amadores
no topo de um prédio
você pode ter amigos em Paris
você pode ter conhecidos em Paris
você pode não conhecer ninguém em Paris 

você pode pensar somos viciados em informação
você pode ter vontade de comprar cigarros depois de 10 anos sem fumar
você pode comprar cigarros quando sair do trabalho
você pode andar ida e volta na avenida
você pode pegar chuva na ida
você pode não pegar chuva na volta
você pode notar a fronteira azul/cinza no céu
você pode imaginar que a chuva anda mais rápido que
você pode ver como a noite vem caindo
você pode saber que já é madrugada 

você pode ouvir Mendelssohn
você pode ouvir Eduardo Paniagua e o Ibn Baya Ensemble
você pode ler as mesmas notícias cinco vezes
você pode ouvir os statements dos heads of state
você pode não se importar tanto com o que dizem 

você pode ler que uma mulher que trabalha no prédio
mandou uma SMS a um amigo dizendo
estou viva há muita morte ao meu redor
sim, eu estou lá os jihadistas me pouparam
você pode ficar intrigado com o estou lá
você pode não saber o que é Allahu Akbar 

você pode querer ligar para a sua mãe
você pode olhar os meninos tão atléticos na rua
você pode pensar que o seu gosto para homens é clássico
você pode ter um gosto grego para homens
você pode ao mesmo tempo ser lucian-freudiano em mulheres
você pode ver que o mundo também tem gorduras e descolorações
você pode preferir o mundo 

você pode ver que ninguém está arrancando os cabelos em SP
você pode ver a fila de carros para entrar no shopping
você pode ver que o labrador do seu vizinho está crescendo
ainda ontem era filhote 

você pode não dizer nada no Facebook
você pode não ler os comentários que deixaram nas notícias de Facebook
você pode ser de esquerda
você pode se espantar com um corte de cabelo na rua
você pode ler o que um grande crítico disse
você pode achar uma pena as mortes do Wolinski do Cabu
você pode pensar porém na arrogância ocidental
você pode pensar de fato na arrogância ocidental
você pode se perguntar se um brasileiro é ocidental 
você pode se sentir ocidental
você pode não sentir nada
você pode ouvir uma palestra de 40min do Edward Said
você pode se sentir pós-colonial
você pode achar que é cedo demais para o Said
você pode lembrar que ele falou dos atentados de Oklahoma City
você pode não saber quem bombardeou Oklahoma City
você pode comprar pasta de dente
você pode sorrir com a promoção

você pode ler na revista Jacobin
que é melhor se preparar
você pode ver que já vem o coice antimuçulmano
você pode pensar ai a Europa se avacalhando
você pode achar que é cedo demais

você pode pensar nos limites do humor
você pode sentir nojo do sangue desenhado nos cartuns-tributos
você pode ver uma fotos dos seus amigos no topo da pedra do Leme
você pode acompanhar até às 21h41 Tignous Cabu Charb,Wolinksi +8 

você pode lembrar que os últimos anos não têm sido bons
você pode checar as notícias da Petrobrás
você pode checar todos os sapos do Panamá morreram
você pode ler os ensaios do Foster Wallace sobre tênis
você pode não ficar obcecado com o Charlie Hebdo

você pode lembrar que têm feito novos amigos
você pode lembrar que amanhã já é quinta-feira
você pode tomar espumante porque acabou a cerveja
você pode se sentir mal porque espumante é bebida de festa
você pode tomar espumante num copo de requeijão
você pode querer fazer um brinde ao Jonathan Swift

você pode de repente sem saber bem por quê
você pode desenhar um pequeno Maomé secreto em seu caderno
 

São Paulo, 7 de janeiro de 2015 - 22:11

 

Je suis Charlie Hedbo

A redacção do “jornal satírico” francês, Charlie Hebdo, foi alvo de um atentado hoje, 7 de Janeiro de 2015. O resultado (à data): 12 mortos, 11 feridos, 4 deles graves. Entre as vítimas, Charb (director e desenhador, “je prefere mourir debout que vivre à genoux”), Cabu, Wolinski e Tignous e dois polícias.

O ataque foi perpetrado com pistolas-metralhadoras kalachnikov por dois indivíduos encapuzados (mais um cúmplice) e vestidos de negro, que por volta das 11h20 entraram na redacção e, numa desproporção de forças próprias dos cobardes loucos, cuja ética foi totalmente sugada pela religião, disparam sobre os presentes gritando, segundo uma testemunha, “allahou Akbar”. Antes disso assassinaram a sangue frio o porteiro e depois de fuzilarem a redacção, foi bem disso que se tratou, ainda abateram um polícia na rua (deitado no solo ferido, disparam-lhe uma bala na cabeça).

Face a este horror (“terror”, dizem alguns, mas isso depende já da nossa reacção, só há terror quando nos sentimos aterrorizados), quero exprimir a minha perplexidade e indignação, bem como a minha solidariedade a todos quanto deixaram de estar entre nós ou perderam os seus, devido ao tresloucamento de fanáticos que pensam, à boa maneira dos ignorantes definitivos, estarem próximos da vontade divina (neste caso islâmica, mas, mutatis mutandis, podia ser cristã ou judaica, todos os monoteísmos destilam estes cancros). Uma vingança patética (contra as críticas a Maomé) apagou em poucos minutos vidas plenas, com lastros familiares, e quis deixar um aviso à nossa condição fundamental de sociedades democráticas: a liberdade de expressão.

Se nos baixarmos, se por medo e num sentimento de culpa em ricochete desenvolvermos novos mecanismos de censura, ou pior, de autocensura, este atentado terá vingado. É por isso que escrevo este pequeno texto para expressar a minha condição de irmandade para com os falecidos e prometer defender a todo o custo a liberdade de expressão.

HEARTQUAKE

a esta hora mais coisa menos coisa
estarás a jantar em Heimlicher Strasse 
a cozinha italiana é o teu calcanhar de aquiles
(e eu só gosto de bruschetta)
é mais que certo: vista para o Weser e café
no fim da noite poesia & currywurst 
nas escadas de Böttcherstraße

a esta hora mais coisa menos coisa
espero-te no café ceuta
(o sol de setembro não te traz na nuvem
mais próxima)
há tempos ouvia-te nesta mesa
a falar dos nibelungos
do norte de Niflheim
dos burgundos 
das ramphastidæ da América

é domingo e eu imagino-te longe
entre os meus lábios e o copo de café
procurando-te em todas as canções do vh1
resignando-me sempre com um cisco no olho
a esta hora
mais coisa menos coisa

Alfred Jarry, Os dias e as noites. Capítulo III: Outro dia

Livre, Sengle é condenado à morte, e sabe a data. E eis que voga a sua cama de ferro branco, em forma de gôndola. Sengle, como o rei oriental, está enfaixado até à cintura numa bainha de mármore negro, que continuará a crescer à sua volta, e que lhe lembra um passeio que deu num bosque com o irmão, num estado de espírito tal como se tivesse tomado haxixe. O seu corpo caminhava sob as árvores, material e bem articulado; e ele não sabia o que de fluido voava por cima, como uma nuvem feita de gelo, deveria ser o astral; algo de mais ténue se deslocava, mais acima, em direcção ao céu, a trezentos metros, a alma talvez, e um fio perceptível ligava os dois papagaios de brincar.

«Meu irmão», disse ele a Valens, «não me toques, porque o fio se prenderá nas árvores, como quando se corre com um papagaio por entre os fios do telégrafo; e parece-me que, se isso acontecesse, eu morreria».

Ele lera, num livro chinês, sobre a etnologia de um povo desconhecido, cujas cabeças conseguiam voar até às árvores para capturar as presas, e se reuniam a elas pelo desenrolar de um novelo de fio vermelho, regressadas, então, e adaptadas aos seus colarinhos sangrentos. Mas o vento não podia soprar de certo quadrante, porque o cordão se romperia e a cabeça voaria por sobre o mar.

Como o seu irmão Valens, que ele sabe estará longe durante dez meses, Sengle, livre, rejeita-se soldado e revive o seu passado como o presente de Valens, como impressões que lhe agradam e são, portanto, as únicas verdadeiras da sua alma. E eis aqui uma sala de examinação por onde ele já passou, e cuja recordação regressa à cama branca em forma de gôndola.

Num vasto estúdio vermelho e cinzento, sob o oásis de um grande candeeiro. Severus Altmensch, o eunuco judeu; Freiherr Suszflasche, o célebre esteta alemão; o publicista Bondroit; uma jovem rapariga, modelo de profissão, chamada Huppe; o próprio Sengle.

Tendo Huppe explicado a Sengle que lhe seria agradável ver e possuir o seu corpo, como tinha feito com Raphaël Roissoy, e antes com Bondroit, e que não esperava ter o do esteta alemão, respondeu-lhe Sengle que lhe seria mais agradável ver – ainda que não fosse possível que Hupe o usasse – o do eunuco judeu Severus Altmensch, pois não se sabia se lhe faltava tanto que fosse eunuco, ou apenas o suficiente para o declarar judeu. Pensaram, então, num artifício. Propôs-se este jogo, lícito num estúdio, de tirar à sorte quem subiria nu para a mesa de modelo; e sem truques – embora Sengle previsse o resultado –, a sorte calhou a Severus Almensch. Tendo este recusado a obedecer, Sengle agarrou-o pelos ombros – com a ponta dos dedos –, e Huppe despiu-o.

Severus Altmensch surgiu nu, excepto nos pés, ainda mais disformes por se adivinharem dentro de umas botas exageradas. Peito vazio, barriga saliente como a aresta de um tetraedro, braços como duas ripas, pernas de fauno – de um fauno que tivessem castrado, por pudor, numa estampa –, e todos os membros se articulavam em direcções imprevistas. Crescia-lhe por todo o lado uma astracã encaracolada, de vicunha, ou lama, uma lã que lembrava lanolina; e, com as suas unhas como garras, desensarilhava, em direcção ao peito, o púbis triangular do seu ventre enorme com a ponta voltada para cima.

Huppe queria dar-lhe todos os prazeres; Severus teve agudos gritos, seduziu e mordiscou-a no seio. Ela não conseguiu qualquer efeito, pois ele era masoquista, fetichista e legalista, e contorcia-se no tapete enquanto mamava no bico de um pavão empalhado.

Segundo a ordem do sorteio, era a vez de Freiherr Suszflasche se despir, e era quase tão ignóbil, atrasado, com vinte e quatro anos, e maturidade de doze, conforme o exige Schopenhauer em casos tais. Raphaël Roissoy, de traços belos e beicinho, o corpo efeminado do São João Baptista de Da Vinci.

Bondroit, bem; e o último, Sengle, o mais harmonioso – consideraram –, e o corpo mais casto, apesar do ar excessivamente de modelo de estúdio do seu bigode principiante.

E como só havia seis corpos nus, não havia qualquer atentado público ao pudor. De repente, tocou a campainha – e Bondroit, todo nu, foi abrir –; era Moncrif, duma fealdade vermelhusca, e quase tão enrugado como Severus Altmensch. O recém-chegado, estupefacto, temendo um paradoxal estupro, foi sentar-se, enfarpelado, como sempre, em diversas capas. E todos lhe tiveram um profundo horror, pois, sétimo, ainda que vestido, ele constituía o ATENTADO.

E os seis desapareceram no fumo do grande candeeiro, cujo vidro se partira; e escandalizados com a presença do Sétimo, todos correram para as suas roupas, pés descalços sobre as fissuras.

Comparação Da Dimensão Do Espaço Depois Da Subtração Da História

“You can´t escape the past in Paris, and yet what´s so wonderful about it is that the past and present intermingle so intangibly that it doesn´t seem to burden.”

Allen Ginsberg

 

Tens razão quando dizes que Montmartre é como a aldeia do meu pai, mas a aldeia do meu pai
Sempre comeu e bebeu  o que o suor e a terra lhe deu, lá se plantava e lá se colhia, em Montmatre
Há uma vinha cujo vinho quase ninguém prova, mas tanta gente conhece e viu, não me parece
Que comam as heras que crescem na paredes das casinhas, nem vi galinhas a correr pelas ruas
Ou debaixo das mesas dos cafés, vi sim uma ou outra pomba, aves citadinas essas, que raras vezes
Vi na aldeia do meu pai a pedinchar um pedaço de pão, na aldeia do meu pai não há pedintes
De nenhum tipo, só portas abertas e a partilha do pouco que se tem, mas Montmartre respira
Ainda, mesmo que o sangue seja vinho daqui ou dali, as casas brilham e no seu tamanho são
Maiores do que o desprezo dos descendentes que herdaram telhas que apodrecem e cedem
Tudo, colapsando todas as noites à lareira, todos os gemidos nos partos em colchões de palha,
Todos os gatos que entravam por buracos pequenos em baixo das portas, como o frio
Entrava nos ossos da gente, Montmatre tem ainda luz, tem olhos, tem gente, gente que
Procura nas ruas a presença de quem já lá não está, mas tens razão, as ruas são tão largas
Num lugar como noutro, apesar da macadamização ser bem recente num lado e estar
Já bem polida noutro, falta gente e uma cidade inteira aos pés para se poder comparar,
Mas mesmo assim, não sei onde me sinto mais em casa, se onde as memórias são minhas,
Se onde as memórias são as que queria que fossem minhas, noutros tempos, as mesmas pedras.

Coimbra

10-02-2014