Caderno 1

Bruno Alves 
Carlos Alberto Machado
Catarina Barros
Catarina Costa
Fernando Guerreiro
Helena Bento
Hugo Milhanas Machado
Luís Ene
Margarida Vale de Gato
Maria Sousa
Paulo Kellerman
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Bernardo Costa
Ricardo Domeneck
Samuel Filipe
Tatiana Faia
Samuel Beckett traduzido por Hugo Pinto Santos
Victor Gonçalves

Capa 
João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, março de 2014, 68 pp.
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Cratera


O homem não sabe como ali chegou. Os autocarros não seguem aquele percurso e ele não parece sequer caminhar, mas antes flutuar com esforço, como se a gravidade surgisse intermitente só para transtornar a passagem pela terra que na lhanura se repete impávida. Abriu-se uma cratera e o homem não sabe onde, apenas pressente o seu abraço sugador. Ou foi no meio da pradaria sobre a qual ele levita por não conseguir andar e arrasta-se por não poder flutuar, ou então foi dentro dele mesmo, no peito, no cérebro ou em plenos pulmões. É um oco que se expande, carcomendo lentamente as próprias bordas de imaterialismo até atingir uma matéria orgânica indefinível no cerne da pradaria ou no próprio corpo do homem, o qual se confunde com o corpus desarvorado diante de si que, transposto, apenas dá para uma extensão dele mesmo. O homem, com uma força a cingi-lo gradualmente, está cada vez mais pesado e, à vez, vazado, inspirando o vácuo entre duas partículas de ar e expirando os resíduos que são substância bastante. De cada vez que inspira, algo dentro de si faz-se mais leve, deferível, e de cada vez que expira, projecta o vácuo e segue na corda bamba sobre o que se desfaz. A pradaria, ou será antes o corpo humano, torna-se nada, campina sem órgãos, e o homem tenta entender se chegou ao fim após tantas digressões que sempre pareceram, desde a juventude, não ter ponto de partida nem de chegada, em que bastou passar de um itinerário mental para outro sem transpor cercas. Se por fim as suas levitações e arrastamentos de uma ponta a outra da capacidade locomotora mental, em que mal se chega a pisar o chão, desembocam agora onde será preciso caminhar a direito. E transpor alguma cerca. Tenta inspirar só para ganhar alento. Os pulmões, por enquanto, estão cheios, as suas tubagens desimpedidas o bastante para respirar o ar puro das pradarias, para calcar com serenidade à chegada a erva cada vez mais rala, os vazios cada vez maiores entre os caules.

Acordámos e estava tudo branco

Folheamos o álbum de família, suas imagens têm a secura térrea das fotos que se arquivam nos registos dos cárceres largando nostalgias por sais de prata. Nelas balizados os devidos marcos cronológicos: as núpcias, a viagem transatlântica, o primeiro filho, o dia em que nevou pela primeira e última vez na nossa cidade. São os marcos que hoje nos escapam: não sabemos como representar as núpcias desenlaçadas antes de fundida a aliança, a viagem em pouca terra, o filho incriado, os dias sem fenómenos. Deixámos por isso de dar continuidade às imagens. A linhagem desemboca onde cessámos a representação. O álbum termina nessa fotografia do dia em que nevou pela primeira e última vez, a paisagem registada como um campo sobre cujas flores um manto branco havia descido sem razão. Fenómeno único, de uma beleza de parábola, nesta cidade do Sul, datado com precisão para que se dissesse neste dia acordámos e estava tudo branco. Uma transformação externa a envolver por dentro. A uniformidade oblíqua de telhados cobertos de neve só interrompida pelas irregularidades das clarabóias. E as coisas sendo então concebidas sob o véu da neve, já mordaça. Pergunto-me em que quartos, em que lucarnas se continuou a pintar com cores pardas as telas atiradas contra as paredes. Pergunto-me quem eram os que se retiravam, incapazes de representar a vida, cristalinamente, sob a imposição do branco.