Dois poemas de Philip Levine

Tradução de Hugo Pinto Santos

 

Pequeno Villon

Diz-me ele que em Banguecoque o roubam
Por ser branco; em Londres porque é preto
Em Barcelona, judeu; em Paris, árabe:
Em todo o lado & a qualquer hora, & ele defende-se.

Ergue sete dedos grossos e pequenos
Para me mostrar que vem em sétimo lugar a nível mundial,
E não há qualquer paixão na sua voz, nem raiva
No liso dos olhos castanhos raiados de sangue.

Pede-me que lhe conte tudo o que me lembrar
Do meu pai, seu tio; fala da guerra
No Norte de África e do que veio depois,
A perda do pai, a perda do irmão,

As montras da padaria partidas, e o pão fresco
Polvilhado de vidro, o cheiro quente a centeio,
Tão forte que ele comia até ficar com a boca cheia de sangue.
Eles vivem aqui, vivem aqui e não morrem,

E aponta a cabeça negra sulcada
De anéis de cabelo preto. Toca-me o cabelo,
Diz-me para nunca desprezar
As duras cerdas que protegem a cabeça do lutador.

De dedos tristes, percorre-me a cara,
Como sou claro, diz-me, e macio.
Ficámos de pé até ao fim desta primeira e última visita.
Duro, 50 quilos, um metro e meio,

Não era maior que uma rapariga, agarra-me pelos ombros,
Beija-me na boca, os olhos ainda abertos,
Meu irmão imaginário, meu primo,
Eu próprio de outra forma, por toda a sua dor.


Philip Levine, Not This Pig, Wesleyan University Press, 1968

 

A Verdade Pura e Simples

Comprei dólar e meio de batatas vermelhas, pequenas,
cozinhei-as em casa, cozidas, com a casca,
e comi-as ao jantar com um pouco de manteiga e sal.
Depois caminhei pelos campos ressequidos
nos arredores da cidade. A luz de meados de Junho
suspendia-se por cima dos escuros sulcos que tinha aos pés,
e sobre os carvalhos do monte os pássaros
reuniam-se para a noite, os gaios e tordos
trinavam de um lado para o outro, os tentilhões ainda cortando
a luz poeirenta. A mulher que me vendeu as batatas
era polaca; parecia saída
da minha infância, com uma camisola de lantejoulas cor-de-rosa e de óculos de sol,
a gabar a perfeição de toda a sua fruta e verduras
junto à berma da estrada e a insistir para eu provar
mesmo o milho cru, pálido e doce que carregava para todo o lado,
jurava ela, de Nova Jérsia. "Coma, coma", dizia,
"Mesmo que não coma, eu digo que comeu."
Há coisas que sabe
toda a vida. São tão simples e verdadeiras
que têm de se dizer sem qualquer elegância, sem métrica nem rima,
têm de se pôr na mesa junto ao saleiro,
o copo de água, a ausência de luz que se reúne
à sombra das molduras, têm de estar
nuas e sós, têm de estar por si sós.
Eu e o meu amigo Henri chegámos a isto os dois em 1965,
antes de eu me ir embora, antes de ele se começar a matar,
e ambos começarmos a trair o nosso amor. Consegues perceber
a que sabe o que eu digo? A cebolas e batatas, uma simples
pitada de sal, manteiga copiosa a derreter, é claro,
fica lá no fundo da garganta como uma verdade
que nunca se pronunciou porque nunca era altura certa,
lá fica o resto da tua vida, por dizer,
feito desse lodo a que chamamos terra, o metal que chamamos sal,
numa forma para a qual não temos palavras, e vive-se disso.

 

 Philip Levine, The Simple Truth, Knopf, 1994

 

 

Originalmente publicados em http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/dois-poemas-de-philip-levine-1686353

 

Selima Hill, Alfaces

tradução de Hugo Pinto Santos

Este poema é um poema sobre ti.
Vou deitar-te sobre a cama
e tudo o que tu tens de fazer é ouvir.

Sento-me ao teu lado na cadeirinha.
E é, de facto, aqui que o poema termina –
precisamente quando estou prestes a perdoar-te.

(Este poema está a ficar cada vez mais pequeno.
Era um poema sobre alfaces.
Era verde luminoso e irreprimível.)

Selima Hill, Trembling Hearts in the Bodies of Dogs: New and Selected Poems, Bloodaxe Books, 1994

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Raposa em Fato de Homem

 

Michael Symmons Roberts 
De 
The Half Healed, Jonathan Cape, 2008
Tradução de Hugo Pinto Santos

 

 

Mascarada e enluvada, cerdas alisadas
sobre o dorso, enfraquecida debaixo do calor, 

a raposa fica em silêncio nas recepções,
atenta a palavras erguidas em defesa, fundos públicos.

Emissária dos bosques silvestres, agente
do lado de lá, a cabeça oscila

ao vinho, os canapés, dá-lhe vómitos o fedor
das pessoas, a carne e o suor delas.

Quando vêm táxis, esgueira-se por cozinhas,
põe-se de quatro (ainda em traje formal),

dispara a correr por ruas escusas
como um senhor ferino até dar com zonas limítrofes

onde – rasando a casca de uma árvore –
lhe sai a pele de homem

como uma sépala expõe a lisa vermelhidão de uma flor.
Uma língua que sorve no frio, 

focinho no bolor das folhas, fundura de juncos, cabos
de aço, de instinto. Só eu fui testemunha

e tomo-o como ressurreição (pele abandonada,
o além como alma de raposa), portanto observo

num pasmo e abrando o fôlego até que lhe seja
possível ver, e uiva, uiva.

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Dois poemas de David Harsent

Tradução de Hugo Pinto Santos. 
Ambos os poemas foram anteriormente publicados na edição online do Público

Franco-Atirador

Estou abrigado aqui e longe da vista. Estou abrigado aqui em cima
na torre sineira de Nossa Senhora da Vingança: aqui é o meu lugar,
bem provido e com tudo em ordem. Esta torre foi erguida no ano de
tal e tal, o ano do corvo, ano da nossa desgraça.
Estou abrigado aqui em cima à sombra da cruz,
com abafos para os ouvidos, tenho a minha manta e um colchão de palha,
ajoelhado, mas olho para baixo, como um homem a rezar.

Uma mulher atravessa a praça levando água.
Corre lenta, corre para não verter. Depois uma criança, à vista
desarmada, segue numa diagonal e corre como uma lebre
numa esquiva. Estou aqui ao abrigo, certinho, com uma salsicha e uma cerveja,
um fogareiro para me deixar os dedos livres. Passam os dias.
Estou perfeitamente aqui neste aconchego, a minha toca;
tenho onde pousar a cabeça, lugar onde mijar
e, como contraditório cómico, as aves dos ares.

Com um olho sobre a mira, o mundo fica por perto,
particular: este avô que abraça uma sobra, cabelo a cabelo
na cabeça, olhos orvalhados, no bolso a moeda
de antes da guerra, presa a uma corrente, o tecer do casaco. Além,
junto ao meu amigo, o Homem da Marlboro, é onde
me sentava a beber um café de manhã: o café do Arno,
uma máquina de flíperes, a jukebox, a rapariga com a cara da Madonna
até lhe vermos os detes; inclinava-me na cadeira
contra a parede a apanhar sol. Vão a medo. Vão com medo
de mim. E aonde vão, vão com as minhas boas graças.

Estou aqui em cima com muita coisa de reserva.
O céu da noite inunda-se, depois clareia, desfralda uma só estrela,
e a cidade recolhe ao silêncio debaixo da minha arma.
A mulher, a criança, o avô, não são coisa nenhuma, ou nada mais
do que a história pode ignorar, ou o amor apagar.

 

Mergulho

Um pouco mais fundo, a luz perde-se dela. Primeiro
mal se pode tocar a superfície – há formas que podiam ser nuvens
pássaros em  voo... Ela pousa a cara na espuma,

a ver pela última vez o mundo de onde veio, uma frágil
impressão de vozes que esmorecem enquanto ela se escoa
desde a alvorada até ao anoitecer, um sombrear glauco que vai

primeiro ao azul, depois mais que azul, e logo a um azul nunca visto
por ninguém que não ela, e aquele lento curso descendo disposto a cindir
tudo quanto ela tinha ou queria, tudo o que ela havia sido.

 

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Alfred Jarry, Os dias e as noites. Capítulo III: Outro dia

Livre, Sengle é condenado à morte, e sabe a data. E eis que voga a sua cama de ferro branco, em forma de gôndola. Sengle, como o rei oriental, está enfaixado até à cintura numa bainha de mármore negro, que continuará a crescer à sua volta, e que lhe lembra um passeio que deu num bosque com o irmão, num estado de espírito tal como se tivesse tomado haxixe. O seu corpo caminhava sob as árvores, material e bem articulado; e ele não sabia o que de fluido voava por cima, como uma nuvem feita de gelo, deveria ser o astral; algo de mais ténue se deslocava, mais acima, em direcção ao céu, a trezentos metros, a alma talvez, e um fio perceptível ligava os dois papagaios de brincar.

«Meu irmão», disse ele a Valens, «não me toques, porque o fio se prenderá nas árvores, como quando se corre com um papagaio por entre os fios do telégrafo; e parece-me que, se isso acontecesse, eu morreria».

Ele lera, num livro chinês, sobre a etnologia de um povo desconhecido, cujas cabeças conseguiam voar até às árvores para capturar as presas, e se reuniam a elas pelo desenrolar de um novelo de fio vermelho, regressadas, então, e adaptadas aos seus colarinhos sangrentos. Mas o vento não podia soprar de certo quadrante, porque o cordão se romperia e a cabeça voaria por sobre o mar.

Como o seu irmão Valens, que ele sabe estará longe durante dez meses, Sengle, livre, rejeita-se soldado e revive o seu passado como o presente de Valens, como impressões que lhe agradam e são, portanto, as únicas verdadeiras da sua alma. E eis aqui uma sala de examinação por onde ele já passou, e cuja recordação regressa à cama branca em forma de gôndola.

Num vasto estúdio vermelho e cinzento, sob o oásis de um grande candeeiro. Severus Altmensch, o eunuco judeu; Freiherr Suszflasche, o célebre esteta alemão; o publicista Bondroit; uma jovem rapariga, modelo de profissão, chamada Huppe; o próprio Sengle.

Tendo Huppe explicado a Sengle que lhe seria agradável ver e possuir o seu corpo, como tinha feito com Raphaël Roissoy, e antes com Bondroit, e que não esperava ter o do esteta alemão, respondeu-lhe Sengle que lhe seria mais agradável ver – ainda que não fosse possível que Hupe o usasse – o do eunuco judeu Severus Altmensch, pois não se sabia se lhe faltava tanto que fosse eunuco, ou apenas o suficiente para o declarar judeu. Pensaram, então, num artifício. Propôs-se este jogo, lícito num estúdio, de tirar à sorte quem subiria nu para a mesa de modelo; e sem truques – embora Sengle previsse o resultado –, a sorte calhou a Severus Almensch. Tendo este recusado a obedecer, Sengle agarrou-o pelos ombros – com a ponta dos dedos –, e Huppe despiu-o.

Severus Altmensch surgiu nu, excepto nos pés, ainda mais disformes por se adivinharem dentro de umas botas exageradas. Peito vazio, barriga saliente como a aresta de um tetraedro, braços como duas ripas, pernas de fauno – de um fauno que tivessem castrado, por pudor, numa estampa –, e todos os membros se articulavam em direcções imprevistas. Crescia-lhe por todo o lado uma astracã encaracolada, de vicunha, ou lama, uma lã que lembrava lanolina; e, com as suas unhas como garras, desensarilhava, em direcção ao peito, o púbis triangular do seu ventre enorme com a ponta voltada para cima.

Huppe queria dar-lhe todos os prazeres; Severus teve agudos gritos, seduziu e mordiscou-a no seio. Ela não conseguiu qualquer efeito, pois ele era masoquista, fetichista e legalista, e contorcia-se no tapete enquanto mamava no bico de um pavão empalhado.

Segundo a ordem do sorteio, era a vez de Freiherr Suszflasche se despir, e era quase tão ignóbil, atrasado, com vinte e quatro anos, e maturidade de doze, conforme o exige Schopenhauer em casos tais. Raphaël Roissoy, de traços belos e beicinho, o corpo efeminado do São João Baptista de Da Vinci.

Bondroit, bem; e o último, Sengle, o mais harmonioso – consideraram –, e o corpo mais casto, apesar do ar excessivamente de modelo de estúdio do seu bigode principiante.

E como só havia seis corpos nus, não havia qualquer atentado público ao pudor. De repente, tocou a campainha – e Bondroit, todo nu, foi abrir –; era Moncrif, duma fealdade vermelhusca, e quase tão enrugado como Severus Altmensch. O recém-chegado, estupefacto, temendo um paradoxal estupro, foi sentar-se, enfarpelado, como sempre, em diversas capas. E todos lhe tiveram um profundo horror, pois, sétimo, ainda que vestido, ele constituía o ATENTADO.

E os seis desapareceram no fumo do grande candeeiro, cujo vidro se partira; e escandalizados com a presença do Sétimo, todos correram para as suas roupas, pés descalços sobre as fissuras.