"a sós com toda a gente", Charles Bukowski

 
buk and bible.jpg
 

Tradução: João Coles



a carne reveste os ossos
e põem-nos uma mente
lá dentro e
por vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homens bebem
em demasia
e ninguém encontra a pessoa
certa
mas continuam
à procura
a rastejar para dentro e para fora
das camas.
a carne reveste
os ossos e a
carne procura
mais do que
carne.

não há nenhuma
saída:
todos estamos encurralados
por um só
destino.

nunca ninguém encontra
a pessoa certa.

as lixeiras enchem
os ferros-velhos enchem
os manicómios enchem
os hospitais enchem
os cemitérios enchem

nada mais
enche.


in Love is a Dog from Hell, Ecco, 2003


alone with everybody

the flesh covers the bone
and they put a mind
in there and
sometimes a soul,
and the women break
vases against the walls
and the men drink too
much
and nobody finds the
one
but keep
looking
crawling in and out
of beds.
flesh covers
the bone and the
flesh searches
for more than
flesh.

there's no chance
at all:
we are all trapped
by a singular
fate.

nobody ever finds
the one.

the city dumps fill
the junkyards fill
the madhouses fill
the hospitals fill
the graveyards fill

nothing else
fills.

in Love is a Dog from Hell, Ecco, 2003

"Fim da tempestade", Pier Paolo Pasolini

 
pppasolini.jpg

Tradução: João Coles

Tomba a árvore ao vento,
as casas voltaram
aos seus lugares, após longa
viagem, e sonham de olhos abertos.
Mesta a alma se encaminha
para os sonhos; vago fica
o quarto: estou longe.

In I confini (1941-1942). Agora in Tutte le Poesie II, Meridiani Mondadori, 2003


FINE DI TEMPESTA

Crolla l'albero al vento,
son ritornate ai loro
luoghi le case, dopo lungo
viaggio, e trasognano.
Mesta s'avvia l'anima
ai sogni; sgombra resta
la stanza: sono lontano.


In I confini (1941-1942). Ora in Tutte le Poesie II, Meridiani Mondadori, 2003


"Vertigem", de Ada Negri


 
 


Tradução: João Coles



— Cala-te, cala-te

(mulher, assim nos seus braços
deliraste uma noite)

— cala-te, cala-te,
não profanes
com palavras envelhecidas pelos séculos
a novidade selvagem
deste momento.
Novos somos
e livres de qualquer proibição
e jovens como virgultas
no Março agreste.
Deixemos atrás daquela parede
os anos vividos, as lutas
vencidas, as ruas calcadas
a sangue, e os rostos fiéis,
e os sonhos e as obras,
e aquilo que parecia a nossa
razão e o nosso porquê
de sermos vivos.

E agora aqui não existem
senão a tua força solar
e a minha fluída graça,
senão o inflamar do teu sangue
e a tua boca que não se sacia;
e o meu rosto desfalecido
não é o que outros já viram,
mas que em ti se fixa, que em ti conflui,
na sua linha trágica,
na sua pulsante lividez,
é o rosto imortal do amor.

**

— Cala-te, cala-te

(mulher, assim nos seus braços
deliraste uma noite)

— nenhuma palavra
consegue proferir o milagre,
nenhuma música
consegue exprimir o êxtase,
só o fragor das tuas artérias,
só o arrepio dos meus pulsos.
Viva ontem não estava,
morta estarei amanhã,
destruída pelas tuas
mãos. Aperta-me, como se, presos um ao outro
à beira de um cume
por nós apenas conhecido,
tivéssemos de nos precipitar no vazio.


In, Il libro di Mara, Fratelli Treves Editori, 1919


Vertigine

— Taci, taci,

(femmina, nelle sue braccia
delirasti una notte così)

— taci, taci,
non profanare
con parole vecchie di secoli
la novità selvaggia
di questo momento.
Nuovi noi siamo
e liberi d’ogni divieto
e giovani come virgulti
neII'aspro marzo.
Lasciammo dietro quel muro
gli anni vissuti, le lotte
vinte, le strade calcate
a sangue, ed i visi fedeli,
e i sogni e le opere,
e quel che ci parve Ia nostra
ragione ed il nostro perchè
d’esser viventi.

Ed ora qui non esistono
che Ia tua forza solare
e Ia mia fluida grazia,
che l’avvampar dei tuo sangue
e Ia tua bocca che non si sazia;
ed il mio volto riverso
non è quello che altri già vide,
ma in te fiso, in te converso,
nella sua tragica linea,
nel suo pulsante pallore,
è l’immortale volto dell’amore.

**

— Taci, taci,

(femmina, nelle sue braccia
delirasti una notte così)

— nessuna parola
può dire il miracolo,
nessuna musica
può esprimere l’estasi,
solo il rombo delle tue arterie,
solo il brivido de’ miei polsi.
Viva non ero ieri,
morta sarò domani.
distrutta dalle mani
tue. Stringimi, come se, avvinti
sull’orlo d’un culmine
a noi sol noto,
precipitar dovessimo nel vuoto.

In, Il libro di Mara, Fratelli Treves Editori, 1919

Pier Paolo Pasolini, "Giorgio Bassani"


Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Tradução: João Coles


A nova temporada literária italiana começou com um livro que li, desgraçadamente com uma profunda «correspondência de amorosos sentidos»: A garça, de Giorgio Bassani. É a história de um delírio - do qual o protagonista se dá conta subitamente, e não num momento «de compasso forte», mas num momento «de compasso menos acentuado» - em conformidade com a diabólica habilidade do autor, ou seja, no momento estilístico mais vazio, narrativamente mais cinzento. O «desgosto inconsciente» pela própria vida de um pequeno-burguês de Ferrara, vulgar mas nada insensível, a não ser pela ferocidade judaica que, tornando-o vulnerável, o arrancou brutalmente da vulgaridade fatal da sua classe social - passando a «desgosto consciente» repentinamente e sem razão nenhuma: talvez por saturação. Uma entropia que explode. Edgardo, o protagonista, é para mim um homem, se não odioso, repelente. Não conseguiria escrever uma só linha sobre este Edgardo. Sobre ele Bassani escreveu um livro inteiro; viveu com ele, portanto, durante anos. Como conseguiu?

Para Bassani, homens como Edgardo são heróis: «heróis burgueses» mal-grado a evidente contradição de termos, «a contradição que não consente». E porque é que são heróis? Porque não pôde ser como eles: um burguês semelhante. E o não pôde ser por factores externos: porque é judeu e durante a sua juventude - excluindo a perseguição racial e a «diversidade» judaica objectivamente operacionais em qualquer momento histórico - durante a sua juventude viveu o fascismo. Bassani foi, portanto, bloqueado na sua crítica à burguesia porque algo ou alguém o impediu injustamente de tornar-se burguês - caso ele tivesse querido. Ele foi privado da sua liberdade de tornar-se burguês. Isto fê-lo ver a burguesia sob uma luz diferente: a luz da nostalgia. Tratando-se para ele de uma «condição perdida» por motivos de força maior e não por escolha própria, começou a ter saudades dela (contrariamente à sua natureza de poeta que não consegue ser burguesa nem consegue ver um burguês como um herói; consegue, quando muito, vê-lo como «criatura» que dá pena ou faz sorrir, como nos filmes de Renoir ou de Tati).

Não sentindo repugnância mas nostalgia pela vida deles, Bassani pode não só descrever o mundo dos burgueses, mas pode, inclusive, descrevê-lo «revivendo» os seus discursos, isto é, citando constantemente as frases feitas e os lugares-comuns destes. Todos provenientes de uma ideologia atroz: conservadorismo, conformismo, consumismo paleocapistalista. Na prática, delineando a própria prosa da linguagem destes, Bassani consegue criar uma analogia entre o pequeno mundo burguês e o seu estilo, que se tornam em duas realidades paralelas. Edgardo decide morrer por causa da própria vida; Bassani, que reviveu a vida de Edgardo através do próprio estilo, parece desejar morrer com ele. Por isso é que a leitura deste livro é tão assustadora.

“Tempo” nº 47, a. XXX, 16 de Novembro 1968

in Il caos, Garzanti