"O desconhecido", de Aldo Palazzeschi

Tradução: João Coles



Viste-o passar hoje à noite?
Vi-o.
Viste-o ontem à noite?
Vi-o, vejo-o todas as noites.
Olha para ti?
Ele não olha em volta,
só olha lá para baixo,
alí onde o céu começa
e a terra acaba, lá em baixo
na linha de luz
que o pôr-do-sol deixa.
E depois do pôr-do-sol ele passa.
Sozinho?
Sozinho.
Vestido?
De preto, está sempre vestido de preto.
Mas onde se detém?
Em que sino?
Em que prédio?


Lo sconosciuto

L'hai veduto passare stasera?
L'ho visto.
Lo vedesti ieri sera?
Lo vidi, lo vedo ogni sera.
Ti guarda?
Non guarda da lato
soltanto egli guarda laggiù,
laggiù dove il cielo incomincia
e finisce la terra, laggiù
nella riga di luce
che lascia il tramonto.
E dopo il tramonto egli passa.
Solo?
Solo.
Vestito?
Di nero è sempre vestito di nero.
Ma dove si sosta?
A quale capanna?
A quale palazzo?

Aldo Palazzeschi, in Poemi

Quatro poemas de "Ancestrale", de Goliarda Sapienza



Goliarda Sapienza

Goliarda Sapienza

Tradução: João Coles



Certo dia duvidei
e em plena luz
comecei
a ver a árvore
o pão
a faca e a tesoura
a madeira
o cobre.


As flores crescem
pelos mortos.
Rego-as à noite
com cuidado.
Espio-as na alvorada
da tua lembrança.


Escuta não há palavras para isto
não há palavras para sepultar uma voz
já fria no seu sudário
de cetim e de jasmim.


Separar juntar
espargir no ar
encerrar no punho
conter
nos lábios o sabor
dividir
os segundos dos minutos
discernir ao cair
da noite
esta noite de ontem
de amanhã

In Ancestrale

"Ex-vida", de Pier Paolo Pasolini

Pasolini.jpg

Tradução: João Coles

No meio de um ténue fedor de matadouro
vejo a imagem do meu corpo:
seminu, ignorado, quase morto.
Assim me queria crucificado,
num clarão de delicado pavor,
quando era criança, já autómata do meu amor.
Mas por trás desta névoa de medula
(há quantos anos ou séculos aqui imóvel?)
ó Indivíduo, ó Sósia, descobres que és
feito de mim, do meu calor, e hostil
a uma morte anterior à minha.

Eu venho até ti depois de uma viagem inebriante.
Toquei, em dias de plena luz, as paredes
enegrecidas e a relva húmida de Casarsa.
Com um gesto negligente de guerreiro
ofereci o corpo nu ao tempo fresco
antiquíssimo, lânguido, de Meschio,
de Livenza, do Po... Brinquei na orla
de uma grande planície, nos seus prados
tórridos, sob céus intermináveis,
nas casas rejubiladas no seio de um leque
de mil cheiros afectuosos, subtis.

Entro no teu círculo, amargo, fresco
como minha mãe à tarde ao passar
o limiar da porta, emperlada de erva seca,
e trago comigo um vento de paisagens,
uma soberba leveza, uma cândida
coragem de forasteiro. E tu não exalas
senão silêncio. Ó desconhecido que foras tudo:
o rapaz perdido em casa,
o jovem burguês que acalentava
os falsos amores no seu amado coração,
agora és nada, O NADA, o puro erro.

E assim, ó esfomeado, ó desejo obscuro,
com um olhar de eras pré-humanas,
exprimes a tua vida de maníaco.
A tua mania é a vida do mundo.
De mim só pretendes que corresponda
ao teu louco esforço de te anulares,
ignoras todas as atracções do meu século,
todos os feriados, todas as paixões aprendidas
nos anos de uma vida abrasada de si mesma:
não te interessa saber que, no tempo, a eternidade
se oferece a festas quase eternas.

Ignoras também jogos ainda mais vitais:
confessar os desejos masculinos,
o amor pela minha mãe, que TU amaste,
a luz estagnada nas profundezas da noite
da infância...(Ó derradeiro candor
deste meu exibir! E tu ignora-lo.)
Amei somente quem tu odiavas.
Eternizei a minha sombra de jovem
para dela lamentar, ávido, os afectos
cheios de esperança, os ardores de lírio,
que inflamavam a minha carne de filho.

Por ti, num deserto de serenidade,
desonro o pobre segredo
do meu sexo, e, despreocupado, confesso-o.
Não sei por que milagre, sossegado
e enfim honesto, invoco das minhas neuroses
céus puros, lugares inodoros,
onde – como Matéria ou Morte – morres.
Sim, muitas vezes estás morto, e o rapaz
volta alegremente ao ventre, e o mitómano
à branda forma pleno de entusiasmo,
quando apenas a vida lhe resta.

Mas tu, nos confins do tempo, aqui me esperas,
dentro de mim, onde o ventre e os músculos
se contaminam de um fedor ameno de musgo
ou de excrementos; e enquanto uma escuridão nua
de vão de escada ou de bivaque
se adensa, vejo-te, múmia, autómato,
e vês-me a mim. Ó nostalgia mortal
para quem nunca te conheceu, e que ignorando,
ó puro Ser Vivo, as tuas angústias de orangotango,
perdia-se no próprio jucundo destino,
coração desconhecido num mundo desconhecido.

Charles Bukowski, "o banho"

Tradução: João Coles


gostamos de tomar banho depois
(eu gosto da água mais quente do que ela)
e o rosto dela sempre suave e cheio de paz
e ela lava-me primeiro
ensaboa-me os tomates
levanta-os
aperta-os,
depois lava-me a gaita:
“eh lá, isto ainda está duro!”
depois lava-me os pêlos lá em baixo, –
a barriga, as costas, o pescoço, as pernas,
eu sorrio sorrio sorrio,
e depois lavo-lhe a ela...
primeiro a rata,
ponho-me atrás dela, a minha gaita entre as nádegas dela
ensaboo-lhe suavemente os pentelhos,
lavo-lhos num movimento delicado,
talvez me demore mais do que o necessário,
depois atrás das pernas, o rabo,
as costas, o pescoço, viro-a, beijo-a,
ensaboo-lhe os seios, depois a barriga, o pescoço,
as coxas, os tornozelos, os pés,
e depois a rata, mais uma vez, para dar sorte...
mais um beijo, e ela sai primeiro,
seca-se à toalha, às vezes canta enquanto ali me demoro
ponho a água mais quente
desfrutando dos bons momentos do milagre do amor
e só depois saio...
é normalmente de tarde e faz silêncio,
e enquanto nos vestimos falamos sobre o que mais
poderíamos fazer,
mas estar juntos resolve quase tudo,
na verdade, resolve tudo
pois enquanto estas coisas estiverem resolvidas
na história entre mulheres e
homens, é diferente para cada um –
para mim, é esplêndido o suficiente para relembrar
após as memórias de dor e de derrota e de infelicidade:
quando me levares isto
fá-lo lenta e docemente
fá-lo como se estivesse a morrer no sono em vez de
na minha vida, ámen.


the shower

we like to shower afterwards
(I like the water hotter than she)
and her face is always soft and peaceful
and she'll watch me first
spread the soap over my balls
lift the balls
squeeze them,
then wash the cock:
"hey, this thing is still hard!"
then get all the hair down there,-
the belly, the back, the neck, the legs,
I grin grin grin,
and then I wash her. . .
first the cunt, I
stand behind her, my cock in the cheeks of her ass
I gently soap up the cunt hairs,
wash there with a soothing motion,
I linger perhaps longer than necessary,
then I get the backs of the legs, the ass,
the back, the neck, I turn her, kiss her,
soap up the breasts, get them and the belly, the neck,
the fronts of the legs, the ankles, the feet,
and then the cunt, once more, for luck. . .
another kiss, and she gets out first,
toweling, sometimes singing while I stay in
turn the water on hotter
feeling the good times of love's miracle
I then get out. . .
it is usually mid-afternoon and quiet,
and getting dressed we talk about what else
there might be to do,
but being together solves most of it,
in fact, solves all of it
for as long as those things stay solved
in the history of women and
man, it's different for each -
for me, it's splendid enough to remember
past the memories of pain and defeat and unhappiness:
when you take it away
do it slowly and easily
make it as if I were dying in my sleep instead of in
my life, amen.

Dois poemas de Goliarda Sapienza


goliarda-sapienza-l-auteur-rebelle-et-hors-norme-dans-les-annees-1970_4058635.jpg

Tradução: João Coles



Chuva de ódio do céu

Chuva de ódio cai
do céu sobre os prados e seca
a relva as mãos queima o cabelo e cega
o homem que com atenção contemplava ao alto este
bater de asas.

Graniza ódio sobre os telhados
derruba paredes
ceifa os tendões do cavalo em fuga
que se estatela fumegante na calçada.



Está previsto

Está previsto.
A tua vida
à beira-mar
a minha morte
no fundo do poço.
Está previsto,
a mesa posta
com copos e com facas.
Está previsto
há muito tempo
o teu regresso ao meu
poço de águas pluviais.

in Ancestrale


Pioggia d’odio dal cielo

Pioggia d’odio dal cielo
cade sui prati e secca
l’erba le mani arde i capelli acceca
l’uomo che attento alto fissava quel
volo d’ali.

Grandina odio sui tetti
scardina i muri
sega i tendini in corsa del cavallo
che stramazza fumante sul selciato.


È predisposto.

È predisposto.
La tua vita
in riva al mare
la mia morte
in fondo al pozzo.
È predisposto,
la tavola apparecchiata
con vetri e con coltelli.
È predisposto
da tempo
il tuo tornare al mio
pozzo d’acqua piovana.

in Ancestrale