O sonho molhado maoísta ou: a gravidez da Barbie*

* contém (muitos) spoilers

Quando era pequena, raramente tive Barbies: os preços da boneca, do carro e da casa da Barbie eram altos para um pai e uma mãe de classe média. Talvez por isso, habituei-me a não gostar tanto de bonecas, e quando elas me chegavam às mãos eram de outras marcas mais baratas, quase sempre um pouco estranhas, quase sempre com defeito de fabrico.

As minhas bonecas eram todas a Barbie Esquisita: mesmo as poucas da Mattel, andavam semi-nuas ou com roupas de outras que não lhes serviam, pintava-lhes a cara com maquilhagem que hoje só seria própria no Boom Festival, cortava-lhes o cabelo tão curto quanto possível e… obrigava-as a fazer muitas espargatas - era importante perceber quanto conseguiriam abrir as pernas.

No entanto, a minha Barbie favorita era - não a que a Mattel descontinuou - mas uma semelhante, provavelmente comprada num supermercado qualquer, pouco antes de o meu irmão nascer: ainda grávida, a minha mãe ofereceu-me uma boneca grávida também. Estranho, sim. Mas ainda mais fascinante do que uma Barbie perfeita, era para mim por descobrir o que se passava dentro dessa aparente perfeição, agora transmutada: poder destacar uma barriga de uma boneca para ver o que trazia lá dentro foi, sem dúvida, fundamental para perceber como chegaria o meu irmão a casa - “gosto de ser uma decoração útil”, diz a Barbie algures no filme de Greta Gerwig.

Depois de assistir ao filme no cinema, discutia com amigos ao jantar o que tínhamos retirado do filme.

Houve quem elogiasse a representatividade da Barbie negra, da Barbie transexual, da Barbie gorda. Houve quem exaltasse a importância de “pôr o homem no seu lugar” (citando frase algures ouvida), como se por se ver de repente numa realidade paralela em que é subrepresentado, os Kens fora do ecrã de súbito percebessem como deviam tratar as mulheres que os rodeiam, e quão frágeis são as linhas da agressão quotidiana do patriarcado.

Entretanto, enquanto a semana de inauguração do filme é a mais lucrativa de sempre na realização de uma mulher, o CEO da Mattel, Ynon Kreiz, terá recentemente dito numa entrevista: “A nossa ambição é criar franchises [foco no plural] de filmes.” - e a Mattel Films, a principal produtora (uma da muitas) do mesmo filme, já anunciou 14 filmes que se seguem (um deles sobre o Uno, o que é simultaneamente bizarro e curioso e outro, que será potencialmente Lena Dunham a realizar, sobre… as Polly Pockets!).

Numa altura em que se começam a considerar (mais) seriamente conceitos como o body-positive movement, a discussão de temas relativos à saúde mental e à forma como esta está relacionada com a rigidez de estereótipos sobre o corpo, a identidade e orientação sexual, ou mesmo com o poder económico das mulheres, imaginei que esta imensa campanha cosmética (pun intended) da Mattel pudesse advir do declínio das vendas da Barbie nos últimos tempos - e, logo na primeira pesquisa, surge um artigo da BBC de Julho deste ano: “Barbie: Toy maker Mattel looks to more movies as sales fall”. Questiono-me então se as mães deixarão de comprar Barbies para as suas crianças, apesar (ou precisamente por causa) do sucesso que este filme tem feito.

Tido por muitos como o grito feminista de que precisavam as meninas-hoje-adultas que sempre quiseram ter a veneração pelas suas Barbies finalmente justificada, usa-se a ideia de subversão do poder hegemónico como retrato perfeito daquilo que deve ser feito para acertar contas numa sociedade.

Ken olhava de longe a Barbie, apaixonado porém ressentido por não receber dela igual interesse, enquanto, todas as noites, ela fazia as suas “noites de meninas”, com maquilhagem e lutas de almofada. Mais tarde, depois de um passeio pelo mundo real e de perceber como pôr em prática o vantajoso patriarcado, ele grita, impondo a sua nova ordem: [Agora], “Todas as noites são noites de rapazes.”

Dado interessante: Marx acreditava que a luta de classes conduziria a processos políticos, que levariam a consequentes revoluções, necessárias para que o processo histórico avance e se desenvolva. Mais: a forma de produção anterior deveria desaparecer para ser substituída por outra.

Face à revolta dos Kens, as Barbies não vêm outra opção se não a de “acordar” politicamente as suas companheiras de classe, vítimas de uma lavagem cerebral súbita pelos machos dominantes - “Num minuto eu era a presidente, no outro estava a cortar um bife para o Ken.”, diz uma delas, acordando, de novo, para a sua realidade de prémio Nobel ou Presidente da República ou jornalista conceituada, voltando às fatiotas impecavelmente pontuadas com jóias que não podiam, claro, deixar de incluir safiras cor de rosa.

Enquanto exército renovado, a Barbie, desta vez acordada para a fragilidade da sua sociedade, apenas aparentemente sólida sob um véu de empatia e conjuntos de saia-casaco, decide então renovar o guarda roupa: qual Reforma Agrária maoísta, surgem as Barbies com um ar vagamente militarizado (e o Allan, mas ninguém fala dele porque é a figura mais interessante do filme), determinadas a recuperar os seus direitos. Envergam, sem excepção, impecáveis macacões cor-de-rosa que, estranhamente, ali existem em todos os tamanhos e para todas as bolsas.

Simultaneamente, vêem-me à cabeça flashbacks da série “O Sexo e a Cidade”, em que se pode ser feminista, sim, em que se pode falar abertamente sobre sexo e sobre dinheiro e sobre poder, sim, mas apenas gastando a quantia certa de dinheiro em sapatos e almoços em sítios tão chiques que têm um banquinho ao lado de cada cadeira, para que as senhoras possam pousar as respectivas malas que valem mais de 3 salários mínimos (cada uma). Algures num compêndio das mais famosas frases da série, podemos encontrar: “When I first moved to New York and I was totally broke, sometimes I bought Vogue instead of dinner. I found it fed me more.”

Mas rapidamente o sonho molhado maoísta se esvanece nas mãos de um exército cor de rosa que cede ao compromisso de um encontro de necessidades, muito vincadamente binário, onde haverá sempre espaço para o rosa, mas também para o azul. E onde as personagens menos visíveis no mundo Barbie (a Barbie Grávida, a Barbie Esquisita (a mais humana, afinal de contas) e o Allan - que é “só o Allan”, como o mesmo se apresenta - continuam pouco visíveis, ainda que por um momento tenham sido úteis para alavancar este fugaz momento de revolução necessária.

A minha cabeça desce de novo à terra e ouço então o Daniel, talvez o Allan da minha infância, sujeito de cerca de 30 anos que, sob todos os aspectos, é o anti-Ken dos anti-Kens, que cresceu a brincar com dinossauros: “Não podes pôr representatividade numa caixa com um preço”, por mais emocionante que tenha sido o monólogo de Gloria (America Ferrara), a operária da Mattel que sonha com a revolução.

Ouço também a Gabriela, brasileira, negra, migrante em Portugal há precisamente seis anos e seis meses: “Esse filme é um lobo com pele de cordeiro”.

Ainda assim, firmo as palavras de Gloria: “É literalmente impossível ser uma mulher.” - sobretudo se a Barbie, no mundo real, acha possível ir bem disposta ao ginecologista.

Penso na minha Barbie Grávida, desmontável e barata, no marketing feminista-liberal e nas palavras de Paul Preciado: “Cavidade potencialmente gestacional, o útero não é um órgão privado, e sim um espaço biopolítico de excepção, ao qual não se aplicam as normas que regulam o resto das nossas cavidades anatómicas. Como espaço de excepção, o útero parece-se mais com um campo de refugiados ou uma prisão do que com o fígado ou o pulmão.” (in Um Apartamento em Urano).

Bebemos mais um copo e concordamos então que, em sítios com o dinheiro e os tentáculos de Hollywood, existe representatividade desde que financiada, quer isso signifique uma Barbie-Burnout, uma Barbie-Bissexual ou uma Barbie-Hitler.

Mas que, na vida real, o dinheiro não paga sapatos Manolo Blahnik ou conjuntos de saia-casaco Chanel, ou sequer a visibilidade dos invisíveis: esses continuam a gastar dois terços do salário na renda astronómica de um apartamento pequeno numa cidade gentrificada. E o que restar não poderá pagar uma Barbie da Mattel, com certeza.

Mas talvez compre um bilhete de cinema.

"Uma estrutura sólida", Maggie Smith

Tradução: Francisca Camelo

A vida é curta, ainda que esconda isso dos meus filhos.
A vida é curta, e eu encurtei a minha
de mil maneiras deliciosamente desaconselháveis,
mil maneiras deliciosamente desaconselháveis
que esconderei aos meus filhos. O mundo é pelo menos
cinquenta por cento terrível e esta é uma estimativa
conservadora, ainda que esconda isto dos meus filhos.
Por cada ave há uma pedra arremessada a uma ave.
Por cada criança amada, uma criança desfeita, dentro de um saco,
imersa num lago. A vida é curta e pelo menos 
uma metade do mundo é terrível e por cada estranho 
gentil há um que te vai desfazer,
embora eu guarde isto dos meus filhos. Estou a tentar
vender-lhes o mundo. Qualquer agente imobiliário,
enquanto te mostra uma verdadeira espelunca, tagarela 
sobre a sua estrutura sólida: este sítio podia ser lindo, 
certo? Podias fazer disto um sítio lindo.


(in Waxwing, Issue 10, Junho 2016)

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“Good Bones”, Maggie Smith

Life is short, though I keep this from my children.
Life is short, and I’ve shortened mine
in a thousand delicious, ill-advised ways,
a thousand deliciously ill-advised ways
I’ll keep from my children. The world is at least
fifty percent terrible, and that’s a conservative
estimate, though I keep this from my children.
For every bird there is a stone thrown at a bird.
For every loved child, a child broken, bagged,
sunk in a lake. Life is short and the world
is at least half terrible, and for every kind
stranger, there is one who would break you,
though I keep this from my children. I am trying
to sell them the world. Any decent realtor,
walking you through a real shithole, chirps on
about good bones: This place could be beautiful,
right? You could make this place beautiful.

(in Waxwing, Issue 10, in June 2016)



ecce homo

há um homem
que atravessa a rua
para comprar pão
que se preocupa com as contas
a pagar no final do mês
há um homem a quem darei lugar
na fila do supermercado
por só trazer com ele
frango grelhado
e um pacote de batatas fritas
talvez lhe dê indicações na rua
quando estiver perdido
para um encontro
ou o avise da mochila aberta
numa manhã no metro
em hora de ponta
quem sabe salvo-lhe um filho
se ele não reparar
que a criança
se aproximava demasiado da estrada

há um homem
com quem me cruzarei
a cidade é pequena
e isso é tão certo
não lhe vou saber a idade
ou como queria ele envelhecer
ou se imaginava algum dia
a que velocidade
faria voar um corpo

não lhe conheço a cara
o nome, preferi também não saber
há um homem que respira
que verá o céu limpo que hoje se pôs
fará as suas plantas crescer
se não se esquecer de as regar
e pouco a pouco
ficará mais perto do chão

sabemos pouco:
há um homem
ele respira
esse homem vivo
que matou alguém que amamos

é este o homem
que fez de nós
árvores perenes da cor da ira,
venham todas as estações
dilúvios bíblicos anos férteis
passem gerações de filhos
casas demolidas antigamente habitadas
esqueçam-se detalhes
de velhas histórias de amor
morram animais dóceis
por mais amados
depois de décadas silenciosos
num recanto doméstico

enquanto um de nós for vivo
seremos sempre estilhaços
de um aperto agudo:
a perpétua busca de alguém
que sem saber
nunca voltaria a casa.

a primeira urina da manhã

instruções:
recolha a primeira urina da manhã,
desperdiçando a primeira e última
parte do julgamento ordinário.
urine directamente na opinião pública,
procurando que esta nunca toque
nos valores ou na moral.
se é violador, recolha-se discretamente,
haverá provas na pele da glande (prepúcio)
e se é mulher, separe os conceitos “corpo” e “liberdade”.
de praxe, uma coleta após período
de duas a quatro horas
sem uma mulher violada
numa cidade de 214.587 habitantes
não é suficiente
para obter uma amostra significativa.

não estavas lá

o chris brown bateu na rihanna
e eu não estava lá
só cheguei mais tarde quando ela
já estava pisada
na capa de uma revista qualquer.
a rita abortou sozinha
numa sala onde a fizeram dizer
como quando onde
porque é que deixaste
sua puta, onde está o teu namorado
agora? onde está a tua libido
agora? e eu só cheguei
sete anos mais tarde
para lhe dizer que lamento toda a solidão.
a maria casou-se com um dependente
químico para poder deixar de ser
emigrante ilegal viu-o enfiar opióides
pelo cu acima e coca narinas abaixo
anos mais tarde ficou pior
para além de cheirar ele votou no AfD,
a maria teve medo quando
ele levantou a voz então saiu
e foi para a estação de camioneta
já fazia neve e alguns graus negativos,
acho que ela teve frio. só cheguei
uma semana depois
para lhe dizer que ela não devia
ter de passar frio
em noites como aquela
o comunista de há muitos anos
quis bater em mim mas
em vez disso optou por
esmurrar a parede
de certa forma fiquei agradecida
sou péssima a mentir
ou a espalhar maquilhagem
pior ainda a explicar sem modéstia que
consigo deixar um homem louco
mesmo que isso signifique um punho
a dois centímetros do meu rosto
e por isso mesmo achei que
não seria urgente - só cheguei muito mais tarde
para me dizer que lamento que ainda
sei como se entranha na garganta
o som seco de um punho na parede
e ainda gosto de pensar que não era eu ali
quando o pequeno chris brown de trazer na algibeira
se masturba avidamente com a mesma capa de revista
enquanto me sopra ao ouvido:
não estavas lá.