AREIAS e outros grãos

“ele fala/ para a areia/ que lhe enche a boca”

Johannes Bobrowski

AREIAS

 

*

Serpente de ferro negro

correndo na frieza do

mar

traz-me a perdida pele

do meu longínquo verbo

amar


  *

Alga de sulcos veste

a mais pequena dor

lava

a mão dormente da

rede do pescador

e

louva

 

*

Cerca de terra e trigo

desmente a pérola do

rio

para que se incha nas

nas margens o junco e

o

fio

 

*

Sargo peixe de prata

corre além da fragata

ata

a curva que te rebaixa e

na espuma traz a pluma

que te

mata

 

*

Areia monódica de fino

e opulento grupo risca o

chão

em branco círculo de giz

Ir além dá trabalho assim

dizem

não

 

DESIQUILÍBRIOS DA SOMBRA

 

Do Sol ao Inferno

Do Grande ao Sofrível

Do Belo ao Vómito


  Por outras palavras…


 De Madalena a Melícias

De Isabel a Lemos

De Faria a Gesta


  …a meio ficou a aresta.


SEM JEITO PARA O NEGÓCIO

 

E o coro canta no

tempo em que os ratos

em medo

saem dos buracos

das paredes revestidas de estantes

ratos pequenos ratos velhos

alguns vermes muitos vermes e

o coro canta.

 

Sentada

a máquina tenta sobreviver

gerir o medo na penumbra.

Corre em penoso som a flor da peste

e todos leem poemas para o

confessionário Universal.

Nenhum tem jeito mas todos

têm perfil para o negócio.

 

O coro canta imparável

a futura sobrevivência

de quem sabe fazer negócio.

Tristes pavões sem grandes penas

julgados por quem vos vê.

 

Bobos da nova era

tudo será esquecido

sobretudo os nossos nomes.

Michaël Borremans , mercy 2016.jpg

Michaël Borremans - “Mercy”, 2016

No Cemitério de Vila Formosa

No Cemitério de Vila Formosa a terra é cor de tijolo, os mosquitos são famintos

Mesmo com trinta graus e o Sol é húmido de inferno e cólera,

Demorei trinta anos a visitar-te e agora vejo este monte de terra quente,

Com um cata-vento vermelho e verde, que roda às vezes,

Mesmo sem vento e tu sorris de uma foto pequeníssima,

E comove-me a forma como a tia arranca uma erva daninha,

Com o mesmo cuidado de quem tira um cabelo solto da cara de alguém,

Rega as plantas porque não te pode dar um abraço,

A morte dói só aos vivos quando o amor permanece,

Apesar da humidade do ar, aquele calor é doloroso como metal,

A minha prima soluça, não consigo deixar de olhar para aquela terra estranha,

Onde passarás o resto dos dias que já não te restam,

Custa-me esta distância, o pouco que me ficou de ti, um gelado esmeralda,

Um carrinho de brincar, o sorriso que parecia dizer que tudo está bem,

Segurando uma g3 numa foto da tropa, um monte de terra vermelha,

Entre milhão e meio, no mato rodeado por uma floresta cinzenta,

Contudo, o Cemitério de Vila Formosa, não será a tua última morada,

Essa será naquele ente último a lembrar-te ou este poema.

Turku

20.03.2020

Tu; Feriado

Tradução: João Coles

TU

Quando a vida se enrodilha sobre si
e não encontra a cauda,
quando em volta te olhas e não há nada,
quando tens fome,
quando não sabes o que fazer,

és verdadeiramente tu.

Quando o passado
é uma paisagem fechada num quarto escuro,
um retrato mal feito,
quando a esperança se seca
como um velho tronco morto,

és verdadeiramente tu.

Quando te deténs para pensar, e pensar
é a última coisa que queres fazer,
quando não há lugar nem maneira,
quando não sabes porquê,
quando te tornas incómodo,

és verdadeiramente tu.

Quando todas as coisas são pilares de nada,
um peso cego sobre as costas,
quando a garganta engole a escuridão,
quando tudo está decidido,
e te custa a perpetrar,

és verdadeiramente tu.

Quando o espírito se preenche
de nuvens negras e dos olhos
te caem todas as chuvas,
quando um amigo parte,
e não sabes se queres permanecer deste lado,

és verdadeiramente tu.

Quando a derrota é o único espelho
das tuas tentativas,
quando sob o último golpe
estás em queda e não sabes explicar
porque é que para te ergueres te preparas,
sim,
és verdadeiramente tu.

FERIADO

Vemo-nos à hora em que
o dia se guarda no espírito
e vencido por uma ternura irresistível
se abandona à noite,
minutos que ardem
no topo da cidade,
e toda a luz da manhã
é vertida nos cálices.
Os corpos trampolins de pensamentos
altos e simples como rios,
virados para o mar atrás de cada olhar amigo.
A sede das bocas
não espera resposta,
é forte em abundância,
é uma flor vermelha plantada
no meio de música selvagem,
dá-se em risadas que esquecem
cada momento e cada sentido.
Só saltos e cores,
só acenos e sabores, inúteis e reais,
só o estrondo que fala em segredo.
Pode calhar,
entre pessoas e instantes,
pode calhar veres-me
enquanto desvio
o olhar em direcção a um vazio.
Mas nenhum dos meus pés
se dirige à solidão.
Se prestares atenção,
as escuridões e as angústias do andar de baixo,
que as vassouras batem nos tectos,
têm o mesmo ritmo desta festa,
do passo de dança
que nasceu de uma qualquer queda.
Pois então não te preocupes,
voltei no ar denso de notas e de risos,
na terra que nos assemelha
são vocês os meus navios
nesta viagem sem partida.
De novo o copo vazio,
outro jogo que o mundo entorna,
e, levemente,
à volta das estrelas dos nossos olhos
a escuridão que confunde
as palavras da noite.


TU

Quando la vita si è attorcigliata su sé
e non trova la coda,
quando intorno ti guardi e non c’è nulla,
quando hai fame,
quando non sai cosa fare,

sei veramente tu.

Quando il passato
è un paesaggio chiuso in una stanza buia,
un ritratto fatto male,
quando la speranza è secca
come un vecchio tronco morto,

sei veramente tu.

Quando ti fermi a pensare, e pensare
è l’ultima cosa che vuoi,
quando non c’è posto e non c’è modo,
quando non sai perché,
quando ti sei scomodo,

sei veramente tu.

Quando ogni cosa è un pilastro per nulla,
sulle spalle un peso cieco,
quando la gola inghiotte il buio,
quando è deciso tutto quanto,
e fai fatica a perpetrare,

sei veramente tu.

Quando si riempie di nuvole nere
lo spirito e dagli occhi
tutte le piogge ti cadono,
quando un amico se ne va,
e non sai se vuoi restare di qua,

sei veramente tu.

Quando la sconfitta è l’unico specchio
dei tuoi tentativi,
quando sotto l’ultimo colpo
stai cadendo, e non sai spiegarlo
ma a rialzarti ti stai preparando,
sì,
sei veramente tu.

FESTIVO

Ci vediamo all’ora in cui
il giorno si guarda nell’animo
e da una tenerezza irresistibile vinto
si abbandona alla sera,
minuti che ardono
sulla parte alta della città,
e tutta la luce del mattino
nei calici è versata.
I corpi trampolini a pensieri
alti e semplici come fiumi,
tesi al mare dietro ogni occhio amico.
La sete delle bocche
non attende risposte,
è forte di abbondanza,
è un fiore rosso piantato
in mezzo a musica selvatica,
si dà in risate che dimenticano
ogni tempo e ogni senso.
Solo salti e colori,
solo cenni e sapori, inutili e veri,
solo il frastuono che parla in segreto.
Potrà capitarti,
tra le persone e tra gli istanti,
potrà capitarti di vedermi
mentre mi lascio scappare
lo sguardo verso un vuoto.
Ma nessuno dei miei piedi
alla solitudine è rivolto.
Se presti attenzione
i bui e le angosce dal piano di sotto,
che le scope sui soffitti battono ,
fanno il ritmo alla festa di qua,
al passo di danza
che da qualche caduta nacque.
E allora non preoccuparti,
rieccomi nell’aria densa di note e di risa,
nel paese che ci rassomiglia,
siete voi le mie navi
per questo viaggio senza partenza.
Un'altra volta il bicchiere vuoto,
un altro gioco che il mondo rovescia,
e, lievemente,
intorno alle stelle dei nostri occhi
il buio che confonde
le parole della sera.