Carta Da Sibéria

Avô, são muitos os rios que desaguam no lago Baikal,
Sim, o mesmo nome que a tua caçadeira soviética,
Terror dos coelhos e lebres dos montes trasmontanos,
Essa mesma que me tombou aos cinco com o coice,
Quando disparava contra o silvado desde a varanda,
Até a mula se deve ter assustado com a choradeira,
Agora não choro tanto, pelo menos não se vê, ou é seco,
Mas às vezes estou muito calado a olhar pela janela e tu não estás,
Ou estás, num lago coberto de nuvens para onde todos os rios
Convergem, e é aí que disparo e caio, mas só a tinta corre
E congela, mas por baixo a água continua a correr
Até ao lago Baikal, que uma vez uns poucos fugidos
De um campo siberiano, contornaram, alguns ficaram por lá,
Um dia o nosso sangue voltará a ser a mesma água,
Até lá, enquanto se foge da noite, escrevo-te estas palavras.

Sibéria

11/11/2015

Dois poemas de 'El Segundo' de Sebastião Belfort Cerqueira

Setembro

 Lembra-me um setembro
Uma sexta-feira
Ainda o sol mal posto
E a maré cheia
E a casa vazia
A casa inteira
A olhar pró mar
Sem razão pra isso.

Se fosse por mim
Ia a casa abaixo.

Lembra-me um setembro
Um dia qualquer
Uma vaga larga
Com ar de mulher
E a casa branca
Mais do que o jardim
Com todos lá dentro
E cara de fim
E a perguntar-me
Se fosse por mim
Se a casa ia abaixo
E eu acho que sim.

Se fosse por mim
A casa ia abaixo
E ainda pra mais
No fim dos vendavais
Do próximo setembro.

Se fosse por mim
Ia a casa abaixo
Talvez já de noite
Com todos lá dentro.

 

 

 Primeiro Poema Sobre o Mar


Houve um
Sentado na doca
A ver a maré vazar
Que primeiro me deu a ideia
De que há coisas no mar
Que há mais gente que vê.

E diz que é bom de contar
Que muita gente aprecia
E não é só marinheiros
É a aristocracia
E os fadistas e os banqueiros
Sentados e a escutar.

Parece que é truque velho
Pra vender casas e coisas
E que ainda hoje os engana
Isto de o mar ser usado.
Mas a mim pouco me importa
Que eu quando for vou armado
E levo o balde e a cana
E acabo isto sentado

Em tudo como na doca
Na doca com o outro ao lado
A ver a tarde passar.

 

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Uma escritora possuída por forças ocultas

 A despeito da horrenda capa com letras cor-de-rosa a dar um ar de best-seller, interessei-me por A Louca da Casa, da madrilena Rosa Montero, por ter lido na contracapa que se tratava de “uma viagem através do misterioso universo da fantasia, da criação artística”. Diverte-me, não é outro o verbo, a leitura de textos sobre a escrita, sobre ser escritor, e mais me diverte que esses textos sejam dados à estampa por escritores determinados a cientificamente elencarem as forças extraterrestres e espirituais que os impelem a garatujar frases no papel. 

  Quem confere a arte à mão que empunha a caneta? A Rosa Montero acontece escrever acima das suas capacidades, muito melhor do que sabe, e para explicar esse fenómeno ou dom recorre a algo que Rudyard Kipling apelidava de daimon,  uma espécie de espírito intermediário entre os humanos e o Além. Rosa Montero escreve na “escuridão, sem mapas, sem bússolas”. Escrever, refere, é flutuar no vazio, e para flutuar no vazio há que sonhar, como Stevenson, proprietário de uns “pequenos duendes” que lhe sopravam ao ouvido os romances que deveria escrever. Incapaz de explicar o processo que o levou a cuspir duzentas páginas impressas, o escritor recorre aos demónios, aos duendes, ao sonho, em suma, a uma série de mitos abarcados pela palavra inspiração. Devemos acreditar que o escriba detém forças mágicas ou divinas, que depende de luzes e sons ou de surreais sensações para pagar a renda da casa. Declarar que o motor da escrita é um duende que nos sopra ao ouvido, é como professar que a chuva se deve mais a uma dança tribal do que ao Sol e à evaporação. 

Qualquer artista, mesmo o mais subsidiário do inconsciente, depende do trabalho. Não é, insisto no óbvio, possível vomitar uma obra-prima sem transpirar, sem falhar, sem tentar acertar no texto certo repetidas vezes ao longo dos anos. Uma frase legível resulta de frases mil vezes riscadas.  Ainda que convivamos com demónios interiores ou precisemos de certas sensações ou estados de alma para escrever com destreza e fluidez, não é garantida a qualidade de um texto resultante de um transe criativo. O que mais vezes acontece é o texto soprado ao ouvido, apelidado por simples mortais de primeira versão, originar inúmeras alterações que invariavelmente diluem aquilo que as divindades artísticas nos sopraram. Como viveram os autores que levaram décadas a escrever um só livro? Em transe intermitente? É o inconsciente que alinha as vírgulas, que aparafusa a prosa? Rosa Montero, e outros propagadores de lérias a metro, querem que acreditemos que a escrita é para predestinados. Se todos podem ser pedreiros, apenas quatro ou cinco se podem dedicar à escrita. Esta futilidade misturada com crendice até teria alguma piada, se por exemplo saísse da pena de algum génio mitómano. Que dizer desta escritora que, mesmo possuída por forças ocultas, tão sofrivelmente escreve? Será possível, num impulso de rudeza, considerá-la predestinada para a mediania?

António Franco Alexandre: em quanto então obedece

Ao Vasco Oliveira

Publicado originalmente em 1983, A Pequena Face tem como uma de duas epígrafes (a outra é da autoria de Montaigne) o seguinte verso de Paul Celan: “Wahr spricht, wer Schatten spricht” - “Fala verdade quem diz sombra.”, aqui na tradução de João Barrento e Yvette Centeno. 

De entre os possíveis eixos temáticos emergentes em A Pequena Face – veja-se, por exemplo, as referências ao “ouvido” e à audição enquanto veículos privilegiados de contacto com a verdade, aqui entendida numa acepção lata e não-convertível, uma vez que a destreza discursiva e imagética de António Franco Alexandre segrega o que é da ordem do inamovível -, porventura um dos mais férteis ancora-se na ideia de desobediência relativamente a sistemas pré-estabelecidos de conhecimento. Tratar-se-á, porém, de uma perspectiva elástica e cujo vigor da demarcação se apresenta, com frequência, imperceptivelmente. 

Com efeito, há antes de mais um feixe de sinalizações, ora directas, ora suscitadoras de um querer saber, no que tange a revelação de interferências que se vão interligando de modo a desvelarem uma vontade de recusa. Destacamos os seguintes: 

“nenhuma arte, nenhum saber, memórias/nada na manga metálica dos olhos/nada no simples claro contratempo/nas palavras medidas pelo breve/indício do sentido,/venha comigo ver os nunca vistos/ desastres do jamais acontecido” (…) nenhuma arte, veja voz alguma.” (pg. 13); “não desejando as puras, incorruptas/ palavras, mas o sopro/transparente da boca.” (pg. 51); “saberás que a linguagem/ não começou ainda/ o seu passo perdulário, / não há, no mundo, modos/ de dizer o movimento e o imóvel” (pg. 58).

Ora no primeiro exemplo, o recurso repetido de palavras que remetem para o domínio da ineficácia/derrota - “nenhuma”, “nada”, “alguma”, “nunca”, “jamais” - parece, contudo, extravasar a pura negatividade, na medida em que se procura/propõe o alargamento da(s) probabilidade(s). Não sendo meros artifícios literários, ou sequer balizas temporais tão-só indicativas, os termos elencados funcionam simultaneamente como difusores e como núcleos discursivos próprios e autónomos, se bem que numa conectividade permanente com outros tópicos, como seja o amor, que, por vezes, poderão desaguar numa certa rarefacção.

Todavia, essa rarefacção impulsiona enormemente a multiplicidade de linhas coexistentes, impeditivas do óbvio. 

Ao tomarmos contacto com a segregação desejada das “puras” e “incorruptas palavras”, como que substituídas pelo “sopro transparente da boca”, saberemos que a “linguagem ainda não começou.” Não parece, cremos, que se preconize o aniquilamento da linguagem/fala – spricht e sprache (Dichtung)  - i.e., da materialização, por palavras, do dialogar e do interagir, mas sim, nomeadamente, uma desunião direccionada a lirismos vazios e descodificáveis. Surgem, consequentemente, uma exigência e um compromisso com a inutilidade, no caso, da poesia. Se falamos de “inutilidade”, esta relaciona-se com a censura a uma pretensa capacidade salvífica da poesia: “em silêncio me muro e me demoro/ no cálculo de rotas inexactas (…) vou dizer o que sei como quem mente.” (pg. 9); “a escrita seria, ouça,/ silenciosa,” (pg. 24). 

Celan diz-nos que a poesia “é uma forma de aparição da linguagem”, visão que se poderá relacionar com o que acabámos de dizer, i.e., a poesia como possibilidade e como faculdade de a linguagem se poder furtar igualmente à mera comunicabilidade primária, o que abre os limiares da existência da própria linguagem, convocando, assim, o silêncio.

Não obstante, o Ungrund em Celan postula um poder dialógico implacável que, por isso, possui uma veemência algo divergente da capacidade derivativa de António Franco Alexandre, que, como assinalámos, não cinge as suas manifestações apenas ao objecto do nosso testemunho. Porém, o “lançar de dados” que lemos no poemaAos Pares (Zu Zweien), dialoga com aquele “lugar incerto onde aconteço” que existe em A Pequena Face. O silêncio de quem fala verdade, em António Franco Alexandre, constituirá o de índole wittgensteiniana, ou seja, aquele que permite a abertura à “vivência do significado” (Erlebnis) que o filósofo austríaco sugere. No § 5.634 do Tractatus, Wittgenstein descortina, porventura, o poder mais específico da linguagem: “Tudo o que de todo podemos descrever podia ser diferente do que é.”, muito também porquanto “Não existe uma ordem a priori das coisas.” 

António Franco Alexandre refere “as palavras fechadas” (pg. 18) que se associam “conforme/ a tão minuciosa convenção (…) em que dormitam” (pg. 42). Ofício subtil e prolongado - “só pouco a pouco afasto das palavras/ o som que importa” - , o fazer poético específico, mas não isolado, para ser criador terá de rejeitar ópticas utilitárias e estáticas, o que também não significa, claro está, que seja alienante e sedutor – o que acabaria por resvalar na origem do comentário aqui mostrado, i.e., a suposta índole purificadora da poesia. Se as palavras “dormitam”, na poesia/vida elas terão de interferir. A sombra, que destrói o automático ao desregular a cadência, promove e enfatiza um desobedecer. 

Isto para tentar pensar com uma parte contida em A Pequena Face, livro-esboço que se dirige ao exterior, para a comunhão, ou não fosse esta, provavelmente, a materialização de um estar no mundo contingente mas potencial e vivo: “quero viver o que me dizes (…) venho encontrar-te para uma traição.” (pg. 54)

COP21

Decorre em Paris a COP21 (conferência sobre mudanças climáticas, sobretudo o problema do aquecimento global), e em Portugal o que se noticiou foi sobretudo o minúsculo incidente de um político não ter lançado retórica da tribuna principal porque outro político rival , ao que parece, se esqueceu de o inscrever. Se é verdade que Deus está nos pormenores, também não deixa de o ser que na patetice eles só mostram o ridículo.

Resumo de um post no Blog de Thomas Piketty (alojado no jornal francês Le Monde)

Tese, que é também o título: “Os poluidores do mundo devem pagar”. Piketty lamenta que os recentes ataques terroristas em Paris tenha desviado a atenção da COP21, dificultando o alcance de um sucesso real desta conferência, vital para o planeta. Piketty crê que a trajectória do aquecimento global está nos 3 graus, com consequência potencialmente “cataclísmicas”. Mantém-se céptico sobre a real vontade dos países mais ricos, quem de facto deve ser responsabilizado, em angariarem fundos financeiros suficientes para resolver pelo menos uma parte do problema.

Hoje, com uma certa hipocrisia, os Estados Unidos e a Europa desviam as atenções para a China, realmente o maior poluidor absoluto. No entanto, há dois dados que é preciso reter: a China tem muito mais população do que nós e, em segundo lugar, a descida das emissões europeias deveram-se em grande parte aos subcontratos massivos feitos na China. Se fosse contabilizado o carbono dos fluxos de importações e de exportações, as emissões europeias aumentariam imediatamente 40%, enquanto as da China diminuiriam 25% (os dados de emissões por habitante dão: 6 toneladas por cada chinês, 13 para os europeus e 22 para os Norte Americanos). Por outro lado, há dentro de cada país enormes desigualdades no consumo de energia e de poluição.

Em termos gerais, a média de emissões dos 7 000 milhões de habitantes é de 6 toneladas de CO2 por ano e por pessoa. Mas os 1% mais poluidores, cerca de 70 milhões de pessoas, emitem em média 100 toneladas por ano de CO2. Estas pessoas vivem sobretudo na América do Norte (57%), na Europa (16%), na China (5%) e no Médio-Oriente (6%). Assim, dos 150 000 milhões de dólares que são necessários para travar o aquecimento global, 85 caberiam à América do Norte e 24 à Europa.

Certo é que chegou o momento de procurar soluções fundadas num imposto progressivo sobre o carbono, é verdade que parece difícil de realizar, mas é preciso seguir este caminho se queremos que os grandes poluidores mudem os seus comportamentos. É preciso responsabilizar mais quem mais polui, maneira de se desenvolverem soluções pacíficas para este desafio mundial sem precedentes.