Anatomia de "Um" poema.

“A complexidade da arte se deve ao facto de diferentes

 graus da sua evolução estarem presentes ao mesmo tempo.

O presente encerra em si o passado e o futuro”

-Mondrian

  “e no inverno hibernava

num quarto húmido”

- João Miguel Fernandes Jorge

                                                                             I

      Importa-me a Pintura. Importa-me a palavra. Importa-me a forma como as duas comunicam entre si. Ambas podem viver de costas viradas uma para a outra, mas isso pouco me interessa. Interessa-me, sim, colocá-las em permanente diálogo. Importa-me o gesto da mão humana, a linha escura, o erro involuntário e voluntário. Num mundo cheio de tecnologia, de progresso, de formatação, de cinema e tantas outras artes porquê a pintura? Simples: só a Pintura tem a capacidade de abrandar o tempo, a pintura e a poesia. Ou seja, só as duas têm a capacidade de abrandar a nossa perceção, de nos demonstrar a nossa volatilidade e fragilidade frente ao mundo, elas “não iludem”. A pintura é a arte que não é para ser consumida em duas horas ou meia hora. Ver uma pintura, uma qualquer pintura, é um exercício intenso de atenção, um que exige muito tempo, dedicação e sensibilidade. Dirão algumas pessoas que isto é uma parvoíce, claro que se pode ver uma pintura numa hora, em meia hora, em dois minutos. Esse tipo de observação epidérmica não me interessa. Interessa-me sim o “longo tempo” que dedicamos a ver e a estudar uma pintura ou um pintor. E utilizo a expressão “longo tempo” para fazer eco ao “largo tempo” de João Miguel Fernandes Jorge, vindo, por sua vez, de Santo Agostinho.

II

      Uma poesia que não exige notas de rodapé “pouco” me interessa. Um bom poema não é só aquele que é construído por metáforas sucessivas; por vezes essas metáforas sucessivas são de um desinteresse absoluto, sobretudo se o poeta for muito mau. Interessa-me, sim, o lado narrativo, a História, o encontro com algo que não sei. Quero que a poesia me suscite curiosidade, uma que me diga “não sabes isto!”. E eu, teimoso e curioso, sou aquele que vai à procura do que o poema me diz e me esconde. Não me interessa a poesia do arrebatamento imediato, da emoção simples. Mas sei que essa “poesia elementar” também tem o seu papel. E o que é essa “poesia elementar”? Pode ser um poema escrito por uma criança, por uma avó, por um irmão ou um perdido amor; é um poema com valor sentimental, mesmo que esteja ausente a qualidade literária. Tem de haver poesia para todos os “estados” da vida, digo isto porque não comecei na poesia por ler Wordsworth. Tudo é um processo longo, longo, longo de aprendizagem e construção. A boa poesia tem de balançar entre as duas: a mais erudita e a mais simples, entre a entrega e a recusa, entre a luz e a sombra.

III

      Num poema como “Museu” de que é que se fala? Houve quem o lesse como uma mera observação de factos que se passam num museu; outros de que se tratava apenas de um gosto (meu) pela Arte Pop; outros ainda que demonstrava a minha predileção pela provocação e promiscuidade, pois se usei a palavra “tinder” é porque só posso ser um frequentador assíduo de tal aplicação. Ora, nunca fui um amante da Pop arte, sempre me aborreceu muitíssimo; se excetuarmos Warhol e Koons, pouco me interessa a Pop Arte e a Neo Pop. O poema pergunta, sim, sobre a verdadeira natureza do belo. O que é a beleza nos dias de hoje? O que estou a fazer é repetir uma antiga pergunta: “o que é a beleza?”. É o brilho de uma estátua? É o brilho de um telemóvel? Um poema sonoro sem mensagem ou imagem interessante, ou alegria de viver?

 

IV

       É preciso repetirmos todas as perguntas já feitas ao longo da História, porque os Homens esquecem-se. E nunca houve tanto esquecimento como nos dias de hoje. Quem o diz é Sokurov algures numa entrevista. Escrevi o poema – “Museu” - depois de ler “A salvação do belo” do filósofo coreano Byung-Chul Han. Ao mesmo tempo, procuro com ele demonstrar um fosso social entre uma geração mais velha e uma geração mais nova, duas gerações de costas viradas: desentendimentos, incompreensão e desinteresse mútuo. Esse “costas viradas” é um sintoma do nosso tempo e um sintoma de mudança. Temos tanta tecnologia, tantas formas de falar socialmente que, na realidade, não falamos e não dialogamos. Há tanta proliferação de eventos e ninguém discute nada a sério, é disto que fala “Isto não é um evento”. Há no poema “Museu” um claro carácter político, apresentado em leve apontamento (e uso propositadamente a palavra apontamento); um apontamento sobre o florescimento da extrema-direita em Portugal, “esta nova direita”. Esse “apontamento leve” é uma das características daquilo que tenho feito: pequeninas pinceladas, pequenas impressões, pequenos cacos/ruínas… e porquê? Porque são ou procuram ser transposições diretas da pintura, é o caso de, por exemplo, “Exército Zombie”, referência direta ao “Zombie Formalism”. Esse exército estranho, sem cabeça, movendo-se com o que lhe resta: o coração. O Grand Verre partiu-se totalmente, há pedaços pelo chão; sobre ele os pés dos visitantes pisam e transformam os cacos em areia miudinha. Interessa-me observar essa areia do Grand Verre de Duchamp, essas realidades milimétricas que ninguém dá por elas.

 

V
Numa caixa de sapatos rosa, de Barbara Stronger, encontrei a seguinte nota: «A minha primeira carta a Violante de Cysneiros irritou, hoje, muita gente. Foram incapazes de a ler como uma alegoria; viram nela uma carta real, com nomes e pessoas reais. “Falas de Eleonor X?” Qual Eleonor, respondi, não conheço nenhuma. Um nome é apenas um nome, e a minha Eleonor evoca Eleonor Roosevelt, sobre quem ando a ler um artigo. “O casal é o casal X?” Não, nada disso! É apenas um espelho de um imaginário presidente de câmara e a sua respetiva esposa, são um pretexto para falar de corrupção, sempre tão intensa nas ilhas. Tudo é ficção, tudo, exceto a caricatura final, uma caricatura, em pessoa, das instâncias culturais; é-o por sua inteira responsabilidade, não minha.» Transcrita a nota de Barbara Stronger, Raul Milhafre diz-me: “Dá-me aí um sinônimo de pirata, mas não quero Corsário!”. Bucaneiro, digo-lhe, enquanto penso: “O que é que vai sair dali?”.

VI

     Não se pode entender o que escrevo, ou como escrevo, sem conhecermos o que se passa na pintura. Desde os anos 90 que houve um afastar progressivo da pintura, enquanto arte de pensamento, uma aceitação generalizada de que a pintura tinha morrido, e, como tal, não havia por que continuar a dar-lhe atenção. Ora, a pintura é, ela mesma, uma extraordinária ideia, como disse um famoso pintor numa entrevista. E é-o sem dúvida. A pintura é o meio artístico com maior pertinência nos dias de hoje, e são impressionantes os últimos desenvolvimentos. “Provinciano!”- Já algumas pessoas me chamaram de “provinciano” por defender a pintura [como o professor da “Aula de Arte Grega”]. Serei eu o provinciano ou o observador atento? Creio que ser “provinciano” é sobrevalorizar a performance e o cinema, artes de espetáculo, ao mesmo tempo que se reduz a pintura e/ou poesia a “quase lixo”. Nada tenho contra a performance ou o cinema, que também aprecio, trata-se apenas de uma constatação do desinteresse a que é votada a pintura no campo das letras e do pensamento. É abissal a falta de conhecimento sobre pintura em Portugal, ficam-se pelo cubismo e pouco mais (raras são as exceções!). Vivem numa visão distorcida, de que tudo é feito, assim, em cima do joelho, sem qualquer pensamento ou trabalho. E em determinados eventos lá aparece os comentários mais estúpidos e superficiais de “riscos e rabiscos”. A sociedade está focada apenas na imagem que brilha e tem movimento. A Pintura e a poesia são as artes do silêncio, da imobilidade (a do leitor) e da extrema atenção. E ninguém tem mais tempo para parar, observar e pensar.

 

VII

       A pintura, Sim!, a poesia, Sim! As duas frente a frente e entrelaçadas, misturadas, porque a “pureza” de géneros sempre foi um mito. Hoje estamos perante um novo modernismo, o chamado Altermodernismo, uma nova era de experimentação, hibridez e contaminações. Nome de uma exposição que vi em Londres, em 2009, na Tate Britain (e que não me esqueço): Altermodernism, com curadoria de Nicolas Bourriaud.Misturo, logo existo” apareceu algures num poema meu (“Gente louca”), uma frase que reescreve a famosa frase de Descartes, mas é uma mistura que tem de ser pensada, imaginada, ter alguma lógica e razão de ser. Não é o misturar por misturar; é por isso que o Poeta, no meu poema, foge daquele universo aristocrático decadente e distorcido, ou seja, um universo de idiotas que se limitam a misturar sem pensar.

VIII

     Nada é atirado ao acaso sobre o papel; e quando é atirado ao acaso é porque há uma razão pensada para o ser. O círculo não é prefeito? As palavras são pintadas à mão? Há o erro propositado? Só há o negro? A margem está desfeita? Tudo é pensado. Porque não há criação (pintura, desenho, poesia, etc..) sem pensamento, sem pensamento e (in)expressividade. E há o Erro. Erros de vária ordem, porque tudo é um processo de aprendizagem, ao mesmo tempo que, no panorama atual, ainda Sou Humano, uma mancha para a Máquina burocrática e Capitalista. Eu estou aqui para irritar a máquina e os seus senhores de fato azul (“Do impulso ou da delicadesa, com s”).

IX

      Onde se lê pintura, deve-se ler poesia; onde se lê poesia, deve-se ler pintura; onde se lê união, deve-se ler liberdade. Onde se lê som, deve-se ler “sem som”. Onde se lê melodia, deve-se ler silêncio. Onde se lê recusa, deve-se ler partilha. Onde se lê convívio, deve-se ler solidão. Onde se lê solidão, deve-se ler amizade. Onde se lê corpo, deve-se ler alma. Onde se lê alma, deve-se ler corpo. Onde se lê morte, deve-se ler vida. Onde se lê vida, deve-se ler morte. Onde se lê silêncio, deve-se ler imagem. Onde se lê imagem, deve-se ler Tempo. Onde se lê Tempo, deve-se ler Deus. Onde se lê Deus, deve-se ler princípio. Onde se lê princípio, deve-se ler fim. Onde se lê fim, deve-se ler começo. Onde se lê começo, deve-se ler esquecimento.  

                                                              X

     Agora que já vos chamei à atenção, posso, finalmente, fechar os olhos e cair para dentro de mim. Chegou a hora de usar o tempo. E esperando um dia reescrever tudo isto, fechou a janela para melhor sentir as sombras.


17.12.19

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Piet Mondrian - “Composition with Lines, second state”, 1916-17



 

 




Anne Sexton, "Disse a poetisa ao analista"

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Tradução: João Coles


O meu ofício são as palavras. As palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso a minha ruína pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
despojadas dos seus olhos amarelos e das suas secas asas.
Devo sempre esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra, influenciar outra, até obter
algo que pudesse ter dito...
mas que o não tenha dito.

O seu ofício é examinar as minhas palavras. Mas eu
não admito nada. Faço o meu melhor, por exemplo,
quando consigo escrever um encómio a uma caça-níqueis,
como naquela noite no Nevada: contar como o mágico jackpot veio a tilintar
com três sinos no ecrã da sorte.
Mas dissesse o senhor que isto é algo que não é,
então esmoreço e lembro-me de como senti as minhas mãos tão estranhas
e ridículas e lotadas com todo aquele
dinheiro crente.


Said the poet to the analyst

 My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees.
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget how one word is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I work with my best, for instance,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money.

NOTAS SOBRE 2019

“muitas vezes digo a mim próprio que melhor

seria ter ficado em casa com os mapas e os horários”

- W. G. Sebald (“Vertigens: Impressões”)


I

Num filme de François Ozon – “Dans la maison”, de 2012 – é dito, nos minutos finais do filme, que qualquer pessoa, hoje em dia, pode escrever sobre arte. Não me recordo exatamente a frase, pois escrevo de memória e sem a ir confirmar, mas o sentido era de que qualquer pessoa podia escrever umas “coisas” sobre arte. A frase é dita em tom de ironia, na medida em que quer dizer exatamente o seu contrário, ou seja, poucos, muito poucos são os que conseguem e bem escrever sobre arte. Muitos dos textos escritos sobre arte, estou a falar de textos para exposições temporárias, são na realidade uma série de construções de vazios retóricos que nada dizem. Falar de dois ou três nomes de artistas num texto não é escrever sobre arte. Começo por lembrar essa imagem do filme de Ozon, para dizer que este pequenino texto não procura ser um texto sobre arte, mas, sim, meras impressões pessoais. Quando vi o filme de Ozon não pude deixar de estar inteiramente de acordo com Ozon. Muitos textos que já encontrei em galerias, jornais, panfletos, mesmo de “curadores” da moda, nada de interessante dizem. Escrever sobre arte é das coisas mais difíceis porque requer demasiado conhecimento e, além disso, talvez ainda mais importante, sensibilidade e imaginação. Venho dizer isto para dizer o óbvio, que este texto não é um texto sobre arte, mas, sim, notas imperfeitas, incompletas e pessoais. E antes de avançar queria evocar Arthur Danto. O filósofo e crítico de arte americano viu Andy Warhol pela primeira vez nos anos 60 e só foi capaz de escrever sobre Warhol 40 anos depois da primeira exposição que viu de Warhol. Gosto desta história porque isto, sim, é pensar e escrever sobre arte, foram precisos 40 anos para que conseguisse dizer algo que valesse a pena ser lido. Escrever sobre arte não é algo que nasça da noite para o dia , é, sim, um processo longo, doloroso (em parte) e persistente. A arte está sempre à frente do pensamento e aquele que escreve faz um esforço para ir atrás do sentido da obra de arte, não saber isso é o maior dos erros! É preciso longo Tempo para se escrever alguma coisa consistente. É preciso dizer o óbvio para que se perceba que a minha intenção é apenas dar aqui uma pincelada, uma impressão meramente pessoal. Não há nestas notas a pretensão de ser crítica; a crítica é uma coisa séria, ou pelo menos devia ser levada e pensada a sério. São, repito, meras impressões.

II

2019 foi um ano muito especial: o 5º centenário da morte de Leonardo da vinci; a Retrospetiva de Hans Hartung no Museu de arte Moderna de Paris; o centenário de Pierre Soulages e a sua consagração (definitiva) no Museu do Louvre; a morte de Robert Ryman; … Só estou a apontar. A retrospetiva de Hans Hartung é de maior importância na medida em que reabilita Hartung como um grande pioneiro da pintura abstrata, quer do expressionismo abstrato dos anos 40/50, quer da revitalização da abstração do início do século XXI. Esta seleção de acontecimentos que parecem nada ter haver entre si, têm, sim, ligação clara. A arte como “coisa mental”, a pintura abstrata, está viva e espelha-se nas suas mais importantes instituições artísticas. Esta última frase acaba por ser um pouco estranha, pois parece que mistura coisas que não se misturam: Leonardo da vinci + o negro de Soulages (e o outrenoir) + o branco de Robert Ryman + os gestos negros e os sprays de Hans Hartung; mas é exatamente isso. Qualquer um destes artistas merece um desenvolvimento especial que não tenho como dar conta aqui. Interessa-me apenas dizer duas coisas: a reabilitação e a consagração de Hans Hartung trata-se não só um reconhecimento da importância da obra de Hans Hartung, como um espelho do seu tempo, ou seja, a nova abstração do início do século XXI exige a revisão dos últimos anos do século XX. Muitos são os artistas abstratos atuais, uma nova geração, que exploram e amplificam as técnicas e gestos de Hans Hartung, nomeadamente através do uso de diferentes sprays. Por outro lado, dois pintores opostos, um senhor do negro e da luz, outro senhor do branco e da luz: Pierre Soulages versus Robert Ryman. São duas visões completamente opostas mas que têm como fim a luz, um via negro, outro via branco. Pierre comemora o seu centenário e Robert Ryman, infelizmente, morreu no início do ano. Ambos não são pintores para estudar por reproduções, ambos são experiências físicas; só conseguimos senti-los e vê-los no espaço físico. São distantes, diferentes e, no entanto, têm tanto em comum: a matéria, a importância do corpo no espaço; a preocupação pela montagem; a luz; o silêncio…

III

Em Portugal, de todas as exposições que vi, há duas que achei absolutamente extraordinárias: Carlos Bunga no Museu de Eletricidade em Lisboa e Nikias Shapinakis na Galeria Fernando Santos. A obra de Carlos Bunga parece herdeira de toda uma linguagem pós-minimalista e muito herdeira das preocupações com o espaço e arquitetura, obras que me encantaram e as quais ainda ressoam na minha memória. Por sua vez, Nikias Shapinakis faz uma espécie de cisão com toda a sua obra anterior e concentra-se apenas no uso do preto e branco, assim, encontramos as suas habituais paisagens e formas orgânicas imbuídas de uma nova e refrescante aura. Ainda neste ano: a retrospetiva de Joana Vasconcelos, no museu de Serralves, foi muito “previsível”, tirando uma peça, nada me impressionou, achei-a demasiado aborrecida (como todos os artistas tem coisas interessante e coisas desinteressantes, mas a exposição em si foi demasiado fraca); a exposição retrospetiva de Joan Jonas foi uma surpresa, muito boa, com obras muito interessantes, sobretudo “Reanimation” (2010), das melhores obras que vi este ano; a exposição “Estar vivo é o contrário de estar morto” uma perfeita desilusão, se retirarmos uma ou outra obra, acabou por ser um enorme vazio para um ideia interessante; a exposição de Pedro Cabrita reis, ainda em Serralves, ainda não a vi, mas creio que Isa Genzken teria aprovado.

IV

Sobre a poesia apenas uma pincelada, uma pequeníssima pincelada, 2019 viu a publicação de 4 poéticas que merecem toda a atenção: Santos Barros, Pedro da Silveira, Urbano Bettencourt e Emmanuel Jorge Botelho; 4 açorianos, 4 obras importantes e que merecem ser lidas no seu contexto nacional enquanto poesia de qualidade. Este bem pode ser o ano da “Poesia açoriana”, com aspas porque tenho dúvidas sobre essa designação que tanto tem de pertinência como de catalogação simplista. Todos os 4 autores merecem ser lidos com atenção. Sem querer fazer o meu “Top 10”, direi apenas que gostei muitíssimo de “Zombo”, de Alberto Pimenta, talvez o melhor livro de originais de poesia que li este ano. O Pen Club de Poesia para a Tatiana Faia veio corrigir um esquecimento nas listas de melhores livros de 2018, que tendem a ser, ainda, “masculinas e maiores de 60”. Uma última pincelada, a poesia no feminino está em alta, quer entre gerações mais velhas, quer entre as mais novas, livros de Inês Lourenço, Ana Luíza Amaral, Andreia C. Faria, Francisca Camelo, Mafalda Sofia Gomes, Inês Morão dias, Tatiana Faia (a fechar o ano com “Leopardo e Abstração”)… haverá outras mas não as li. Poesia masculina, e próxima do meu universo pessoal e de interesses, direi apenas: José Pedro Moreira, João Bosco da Silva, Leonardo, Ricardo Marques, João Coles, Sebastião Belford Cerqueira e Pedro Craveiro. Haverá outros, muitos outros, mas isto é uma nota pessoal, não mais do que isso.

V

Entre o chocalhar de herbertinhos e os piu piu à volta de Sophia, Sena foi um adereço, uma espécie de autocolante no peito por umas horas. O bizarro não foi a banana de Maurizio Cattelan mas a condecoração post mortem a Sophia e, semanas depois, a morte na miséria de um ator português. Ou seja, louvar os mortos, esquecer os vivos.

VI

ÓBITO DE BARBARA STRONGER (1983-2019)

Morreu, hoje, a poeta luso-canadiana Barbara Stronger.

A causa da morte ainda é desconhecida, mas, segundo

os mais próximos, morreu de cocktail de barbitúricos.

Trabalhava, em part-time, num McDonald para sobreviver

e comprar livros. Fez uma tese sobre Paul Celan nunca

publicada, ou valorizada, em Portugal; o que é normal entre

nós! Publicou em vida um único livro de poesia, no qual

é visível a sua irritação e o seu amor pelos mulheres. Não

tinha pachorra, sobretudo, para os moderadores de poesia

que sempre achou terem mais ego e barriga que nobre

espírito poético. Tudo o que fez foi enfiar o dedo nas feridas.

Presa ao álcool, vítima do desprezo e solidão, tudo mandou

à fava. Sabe-se que escreveu uma carta a todos os amigos

e aos inimigos, o que é caso raro. Nas últimas dizia: “Ide-vos

foder, à dissolução e libertação do meu Ser cheguei primeiro!”

VII

Para desespero do Daniel, continuo a ouvir a mesma música (ou álbum) durante uma semana. Melhores álbuns: Lana del Rey –“Norman Fucking Rockwell”; Jakub Orlinski –“Facce d’amore” e de Jarrousky – “Passion”. Do outro lado da barricada: Thom Yorke, FKA twigs (que ainda não ouvi com atenção) e Angel Olsen. E cinema? Vi tanta coisa que não vi nada. Para mim, “Fausto”, de Sokurov, é sempre atual.

VIII

Sentado na sarjeta, só me resta notar que estas notas podiam ter sido melhor escritas, mas o meu país não me deixa, afinal ainda estou vivo. “Um país de reles alternativa/ não frutifica”. Portugal continua a ser aquilo que sempre foi, um charco onde a água só corre para a água.

Ps1- Sobre duas obras que me são particularmente estimulantes - Fernando Guimarães e João Miguel Fernandes Jorge: sobre o primeiro, uma fabulosa obra completa, perfeita; sobre o segundo, a “Antologia dos Poemas”, preciosa, é certo, mas pequena demais, pois vi muitos poemas, de que gosto, ficarem de fora.

Ps2- E atenção, atenção; Wake up, Wake up (Madonna): a extrema-direita está à porta. “Enquanto o Kraken não estiver à /nossa porta o Mal não existe” (Vítor Teves).

Hans Hartung - “T 1989 R 45”, 1989.


O amor nem sempre é uma palavra despida de tudo

Os teus dedos acesos pousados sobre a mesa
lembram-me a calma com que me tiras as botas
quando volto do trabalho sob a chuva

A casa ferve da pureza das tuas mãos
há pão sobre a mesa, os meus filhos correm no quintal
tudo aqui guarda o segredo dos teus dedos
da tua voz levantada como o fogo
que aquece o interior dos templos

Dizes que é tarde e fechas a porta
e lá fora tudo se reveste de uma pele secreta
que poderias tocar

Mas é sobre o meu corpo que
inclinada como as árvores ancoradas à terra
te estendes

"The Advantages of Being an Azorian Poet and Artist"

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AS VANTAGENS DE SER UM POETA

E ARTISTA AÇORIANO

 

1 – TRABALHAR SEM A PRESSÃO DO SUCESSO

2- NÃO TER DE SORRIR EM GALERIAS

3- NÃO TER EXPOSIÇÕES NO ARQUIPÉLAGO

4- TRABALHAR APENAS 4 HORAS NO INFERNO

5- SABER QUE A SUA CARREIRA SÓ SERÁ RECONHECIDA DEPOIS DOS 80

6- TER A CERTEZA DE QUE QUALQUER ARTE OU POESIA QUE FAÇA SERÁ POESIA E ARTE AÇORIANA

7- NÃO FICAR PRESO NA ILHA

8- OUVIR AS TUAS IDEIAS NA BOCA DOS TEUS INIMIGOS

9- TER A OPORTUNIDADE DE ESCOLHER ENTRE PEQUENOS TRABALHOS E EXÍLIO

10- SER INCLUÍDO EM VERSÕES REVISTAS DA HISTÓRIA DA ARTE

11- SER SEMPRE UM ESTRANHO EM CASA

12- NUNCA SER CHAMADO DE POETA OU ARTISTA EM VIDA

13- MORRER SOZINHO

 

VÍTOR TEVES

(AFTER GUERRILLA GIRLS)