Listen up Philip (2014)

Desde os nomes aos comportamentos das personagens (Jason Schwartzmann é Philip, um jovem promíscuo escritor que acaba de se tornar famoso, Jonathan Price é Ike Zimmerman, escritor jubilado que vive no campo, enterrado em frustrações e preconceitos), tudo em Listen up Philip (2014)  aponta para Philip Roth. Mas se este filme de Alex Ross Perry é uma paródia sobre o escritor, ou sobre aquilo que achamos ser parte da vida do escritor criado em Newark, vai para além disso. Philip Roth e um mundo de recalcamentos e ódios levam-nos à cabeça de alguém que sempre sonhou com a glória literária, que só sonhou com a fama e prescindiu de tudo o que era humano, começando pela empatia e pelo respeito pelo outro. Este filme começa por parecer uma comédia e transforma-se num cruel retrato de dois escritores a viverem distintas etapas da vida, mas ligados pela raiva, pela frustração e pela sensação, muito rothiana, de que as grandes lutas humanas não valem a pena, nem podem ser saboreadas, já que no fim tudo se reduz a uma patética velhice.

O animal invencível

O poema ensina o seu coração, o seu batimento, ele é muitas cidades a arderem em desejo; há no centro do poema um sol que irradia para todos os lados, uma afirmação de vida, uma múltipla fonte de luz. As palavras são centros de vibração, elas tocam-se, expandem-se em ondas, elas são estrelas em pleno nascimento, em nascimento continuo, cada olhar sobre elas as faz renascer. O poema é uma constelação que faz acender a linguagem, que a faz viver; A constelação que é o poema faz nascer a palavra a cada segundo, a cada batimento do coração a palavra é nova, ela tem novo sopro, ela é uma nova afirmação de vida, uma nova fonte, uma nova onda expansiva, a cada batimento do coração do poema surge um novo acendimento, (muitas cidades a arderem em desejo), a estação de serviço em mercúrio, o olhar da minha filha. Cada novo olhar sobre o poema, cada nova leitura, cria um novo nascimento, uma aceleração diferente: eu acelero o poema quando o olho, eu o faço nascer. O poema é um animal invencível, ele é a vitória da linguagem. Quando eu afirmo:

 

O poema ensina o seu coração

e o seu coração é um céu azul.

 

Eu digo que esse coração é um núcleo que acende tudo o que o rodeia; o poema não pergunta o que é o fogo, ele afirma, ele cria uma comunidade, ele une, ele não para nunca de unir. As constelações comunicam, acendem-se, dançam, cruzam os seus fogos, a sua dança pode ser perfeita e - por essa mesma possibilidade - ela é já perfeita. O animal invencível é a possibilidade mesma da vida, a afirmação mesma da vida. Se o poema nasce em frente a um promontório com Safo ou se ele nasce no meio da rua com Cesário Verde, o que os une é esse nascimento, o mesmo batimento que implica diferentes vibrações, o mesmo início, que implica diferentes processos. O poema ensina a cair no chão ou ensina a rir dessa queda, o poema ensina a ver o outro mas também a ser sempre outro, doutra forma diríamos: o poema faz nascer, o poema faz brotar, o poema multiplica ângulos e nisso é tão humilde como uma raiz ou um semente que leva a vida no seu interior e que só necessita um pouco de água, um pouco de terra, um pouco de luz, uma comunicação (que é também assonância e conversa) da natureza. Tudo aqui é soma, tudo aqui é mudança, acrescento, comunicação, comunhão; união enfim, é disso que falamos quando falamos de poesia, de um abraço com uma geração intemporal, de um abraço com Orfeu, de um abraço com Diógenes; este é o contacto que a poesia inaugura, um gesto que se pretende infinito, um mergulho, um abraço, nisso a poesia parece-se muito ao ato de nadar, de atravessar, de romper, quando escrevo um poema atravesso o teu peito a nada e isso é a minha comunhão, o momento de erguer a cabeça e continuar a olhar o chão, aquele momento de acendimento que se dá antes das grandes viagens. O poema antecede a viagem. Ele dá-se num mergulho de luz, num momento de celebração, de encontro (com o todo e com o mínimo), com a flor que rompe o asfalto, com um mundo que se afirma quando o afirmamos. Este é o mundo, resta celebrá-lo, bendize-lo, elevá-lo, acendê-lo, esse é o momento poético, o momento de criação de ênfase. 

Três poemas de Tiago Dias

Reflexões sobre o pé da bailarina

como pensar no peso
se o movimento encanta
espalha qualquer névoa
nódoa bolha de sangue ?
perto do chão
conseguir-se altivo idílico
como
questionar a dor interpelar o segredo
a alimentar a beleza de carregar o peso
enquanto agrada a multidão
muito mais por aquilo que dela
passa contorcendo-se ?
como
entender o limite equilíbrio
o entre: carregar o peso é dança

Sina de bom moço é colocar bem-me-quer na correnteza

ela estava entre
o entrudo e o carnaval
vendendo seus poemas
pintados no corpo nu
aqueles leitores jamais esqueceriam
do movimento de suas rimas
do verso quebrado em praça pública
da palavra rebolando
para caber na métrica perfeita
e de repente a poesia ganhava
finalmente um sentido social

Breves notas sobre o suor e a palpitação de mais um leitor

oito anos de idade não servem
para uma montanha russa
é preciso mais noites e dias
com oito anos não sabia nada
da noite dormia e sonhava
assim casou-se com um homem
velho quase sem cores e riso
exceto nas madrugadas
em que não se adormecia
controlava-se a respiração
pouco a pouco até que ela
crescesse engolindo a escuridão


[Ver perfil de Tiago Dias aqui]

As Aventuras do Senhor Lourenço (§26 processo disciplinar)

(cont.)

Há uma simetria estranha entre o encontrar-se a si mesmo e o perder-se a si mesmo. Era assim que Lourenço se sentia, nunca soubera tão claramente o que era, mas nunca também desejara tanto desvanecer-se, sumir-se no anonimato mais absoluto, talvez morrendo como um mendigo (a única verdadeira morte pessoal) ou buscando uma ascese incondicional (a ascese é uma forma de se estar morto em vida).

Lourenço, já o disse, não foi a pessoa mais inteligente que conheci, por vezes era mesmo muito lento a perceber as circunstâncias e tinha uma memória bastante fraca. Mas em certos dias, certas horas, certos minutos saíam da sua mente as análises mais lúcidas que jamais ouvi. Por isso, vestia bem pontualmente a máxima de Valéry: “Sabe demasiado para viver.” Faltava-lhe também a confiança ingénua no futuro, no seu futuro, julgava ainda que o essencial estava contra a vida, ela não aceita, com os seus permanentes saltos quânticos, qualquer verdade, uma angustiante efemeridade envolve toda a realidade, não há como fugir-lhe, pensava. Julgo que Lourenço tinha capitulado emocionalmente.

Na escola, depois das respostas ríspidas que deu a colegas e directora, uma paz podre permitia-lhe ficar no seu canto, absorto, lendo um livro qualquer de filosofia. Por vezes conversava comigo e com o Joaquim, formando-se um trio estranho. Mas esses diálogos concorriam com coisas mais interessantes: eu babava-me por uma colega nova de história, com um rabo firme e macio como mármore; Joaquim continuava a sua aventura sexual a troco de se deixar corromper pela teologia (entristecia-me vê-lo assim, mas ele assegurava-me que estava feliz, “camisa lavada, comida em cima da mesa e sexo oral fabuloso!”). Tinha mudado, sim, mas que importa. Antigamente, com uma palavra quebrava o espírito de qualquer um, era duro como um anjo. Mas não era feliz. Agora lançava bons afectos por cima da multidão, relativizava até a maldade do nazismo, tolerava a estupidez dos colegas, o desplante parvo dos alunos..., tinha uma cara sorriso e poucos vestígios restavam da sua maldita halitose.

Lourenço sempre tinha tido uma relação cordial com os alunos. Uma ou outra resposta ríspida, duas ou três expulsões da sala de aula, mas em geral tudo ficava resolvido com uma conversa a sós, no final da aula. Até que uma turma, a parte vital dela, se virou contra ele. A velha vontade de poder a funcionar. O líder começou por pedir-lhe explicações sobre o que tinha realmente feito ao bombista, se era ou não o herói que todos tinham dito ser. Lourenço respondeu que isso não era tema para a aula. Mas o Ricardo insistiu:

– Estamos nos valores éticos, não estamos? Falamos muito do que se deve e não deve fazer, do que é justo e injusto, do bem e do mal, falamos de imperativos categóricos e de carácter. Por isso, o que lhe perguntamos tem tudo a ver com as aulas.

Ricardo era o melhor aluno da turma, mas normalmente submisso, à maneira de um bom caçador de notas. Agora estava diferente, devia sentir-se, por uma qualquer razão, imune.

– Ricardo, volto a dizer que isso não interessa, é do foro privado.

– Não, stor, depois de aparecer em todas as televisões e jornais já é só privado, nós precisamos de saber se o que defende aqui nas aulas orienta a sua sua vida, não queremos mais um São Tomé.

– Não, Ricardo. Isso é do foro privado.

Mas mais alunos, meninas também, voltaram à carga, queriam compreender, por inquietação intelectual ou percebendo que podiam derrotar o professor, pô-lo a tremer, dominá-lo. O tom aumentou de volume. Lourenço, ainda meio estóico, procurou manter a calma. Até que não se conteve e começou a berrar, chamando nomes feios a alunos e pais. Do episódio reteve-se o insulto persistente a “grande parte da comunidade educativa”, a arrogância com que se pôs a salvo das críticas, o descontrolo pedagógico que se criou, como se fosse um principiante. A Direcção não lhe perdoou e pôs-lhe, com uma satisfação indisfarçável, um processo disciplinar. Lourenço corria o risco de ser expulso do ensino. Se isso acontecesse, teria de regressar para casa dos avós e tornar-se pastor, um pastor poeta talvez, prolongando o inimitável Alberto Caeiro.

Entrevista a uma vedeta das redes sociais

Uma frase da série televisiva Girls citada pela vedeta durante a entrevista

Uma frase da série televisiva Girls citada pela vedeta durante a entrevista

Ser vedeta maior dos facebuques não apascenta a alma deste escravo de trabalho que, à custa do par de anos a acartar cadernos de bolso a transbordar de frases enigmáticas, entusiasticamente acolhidas pelo crescente número de amigos e seguidores presentes nas redes sociais, virou manco, incapacitado para qualquer actividade laboral que exija ligar despertador, saltar da cama antes das onze da manhã. O seu destino é a grandeza. Os séculos XV e XVI agora na internet e no Bairro Alto. Facebuques, instagrames e tuíteres eram o trampolim necessário para a sua fama literária mas, emaranhado em frases misteriosas, poemas curtos e intensos e fotografias com filtro, a vedeta ficou presa às redes sociais, e a literatura já não é o seu ponto de chegada. Ainda pensa na escrita, não como algo urgente, a ser conquistado todos os dias, antes como um sonho, uma fantasia de verão, daquelas que se têm ao crepúsculo a trocar ideias com compagnons de route, vulgo amigos de facebuque. Não troca o certo pelo incerto. Dá a vida pelo tuíte perfeito, pelo tom de céu mais azulado que o seu android conseguir apanhar. Esta biografia é simples e brilhante: trinta e tal anos a partilhar tecto com os papás, possuidor de um curso de estudos portugueses genialmente por concluir, autor de várias trocas de contactos com o Instituto Camões que não deram em nada, notabilizado por estrofes e contos publicados em antologias e zines da moda e por uma actividade social intensa, consubstanciada em leituras de poesia e bebedeiras nos bares da capital.

 O talento nasceu consigo ou é fruto do trabalho?

Essa é fácil (abre o caderno com as notas facebuqueiras e respiga uma frase). "Talento é 1% de inspiração e 99% de transpiração.” Thomas Edison. Este cadernito é a minha vida (beija o caderno preto de capa mole, marca moleskine). Demorei anos a construir o muro da minha sabedoria. Anos a coligir e melhorar frases de famosos. A maceira que é juntar uma fotografia de um dia na praia a uma citação de William Shakespeare. As pessoas não fazem ideia, a fama exige muito.

Qual o sentimento de ser famoso nas redes sociais?

 Gratificação. Ver o nosso trabalho reconhecido é... Como diria o meu amigo Séneca, o esforço chama sempre pelos melhores. Nos facebuques não há melhor, cheguei a tão elevado nível de excelência que, postando frases como “Jantei verduras”, amealho nunca menos de duzentos likes. Ora, para quem começou do nada, a comer o pó levantado pelo sucesso dos outros, para quem se iniciou nestas lides com cinquenta amigos e postagens na ordem dos dois likes, não é coisa pouca ser considerado o Cristiano Ronaldo das postagens irónico-sarcásticas pelos melhores críticos.

Que críticos?

O Guerreiro.

O António ?

Outro. 

 De que trabalho mais se orgulha?

Sigo o lema de Confúcio. Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida. Trabalhos não tive, só prazeres. O prazer de que mais me orgulho foi uma fotografia captada na Praça do Comércio. Se bem me lembro (sorriso malandro), a loira que aparece de costas era uma sueca que conheci numa festa Erasmus. Tirar a foto foi fácil, menos fácil foi trabalhá-la, passar das cores naturais ao filtro. Naquele tempo (recuamos a 2012), a tecnologia não era a mesma. Atingir os quinhentos likes, ser considerado genial pela minha amiga Cristininha, receber não sei quantos pedidos de amizade. É para todos? Não. É para mim, que cito Adorno sem ter lido uma linha da sua obra.

Que posição ocupa a literatura na sua vida?

 A literatura portuguesa incomoda-me. Não a leio. Nunca li. Quis ser um escritor americano e ainda não perdi esse sonho, falta-me aprender o inglês ou encontrar um bom tradutor ou até um bom ghost-writer, porque ainda não tive paciência para redigir os grandes romances que tenho idealizados (e não são poucos). “Não desesperes, nem sequer pelo facto de não desesperares. Quando já tudo parece ter acabado, novas forças surgem em marcha, e isso significa precisamente que estás vivo.” Quem o disse? Kafka. Enquanto não sou o tal escritor americano, contento-me com a glória nas redes sociais. Tenho um pombo na mão. É melhor do que dois a voar. Antes genial para o Américo do que um anónimo a flutuar num mar desconhecido.

Lê?

Se leio. Como responderia aos comentários dos meus seguidores se não os lesse? (intrigado). Ler livros? (coça a nuca). Ler é sobrevalorizado. Está tudo no facebuque e quem tem google, como dizer, googla, e quem googla, ora bem, é como olhar para a Terra a partir da Lua, vê-se tudo. Poemas, disso leio muito, não que goste. Mas para ser é preciso parecer.

Muitos escritores se debruçam sobre a dor causada pela reescrita. Que tem a dizer sobre isso?

Reescrever. Doloroso. Seria bom que cada postagem minha saísse bem à primeira. Infelizmente, os likes não vêm com primeiras versões. É preciso melhorar e melhorar e melhorar. Em termos literários, não reescrevo pelo simples motivo de não ter escrito. O que de meu saiu em papel foi vomitado, cuspido, esculpido pela sola do sapato. O mundo é complexo. Já ouviu falar da teoria da complexidade de Edgar Morin? (Digo que não). É melhor nem falar disso, ficaríamos aqui a noite inteira e, como sabe, as noites fizeram-se para amar.

Qual a sua opinião sobre Lobo Antunes?

Nunca li. Mas chato.

Diga-me, há pessoa que admire?

Havia. O César. Grande poeta, enorme leitor de poesia. Beberrão. Perdi-lhe o amor quando o apanhei a despejar cerveja no urinol durante a apresentação do livro do Carlos. Sacrilégio. Deitar cerveja fora. Por tudo o que é mais sagrado. Faço minhas as palavras de uma filósofa recente, de seu nome Lykke Li: never gonna love again.

Quais os seus planos para o futuro?

É longo o caminho que vai do projecto à coisa. Molière. Pretendo consolidar a minha glória cibernética, conhecer umas ninfas, morar em Lisboa, arranjar um tacho num jornal a cozinhar recensões, fundar mais umas zines, organizar uma exposição em que se misture versos da minha autoria com obras de artistas plásticos emergentes, ganhar um desses prémios literários atribuídos a tipos que nem assinar o nome sabem, entrar no Lux sem pagar.