Distância e obscuridade

Não é raro que o fascínio nasça do mistério e da obscuridade, por isso o silêncio é mais erótico do que a tagarelice (o amor cortês, à distância, era pobríssimo em palavras). A máscara nietzscheana (“tudo o que é profundo ama a máscara”), a multiplicação de linhas de vida em Fernando Pessoa, o mais recente estilo hermético da escrita de Lobo Antunes. Um não querer dar-se a entender, porque nos vulgarizamos quando os obstinados pela transparência tomam posse do que somos. Fazer da nossa existência uma obra de arte (Foucault), tão instável e enigmática, instável porque enigmática, quanto inspiradora. O prazer diminui quando se abre o jogo, a alegria da revelação dura pouco, só pode ser fugaz, passa-se a outras coisas quando sabemos tudo. A transparência é anódina, falta-lhe sempre tensão metafísica.

Como refere Byung-Chul Han, “A sociedade da transparência é um inferno do igual”. (A Sociedade da Transparência) Favorece também a morte sobre a vida, porque sem o desconhecido desaparece a atracção e esvai-se a vitalidade da procura. Roçamos uma tirania da transparência, é moralmente obrigatório “ser franco”, “ser claro”, “ser verdadeiro”, “ser previsível”, não fugir ao que se espera de nós. Por isso, o Porto deve jogar “à Porto” e o Benfica “à Benfica”. E com isto, ai de quem se desviar de si, uma sociedade da transparência era para Rousseau uma sociedade de um controlo e vigilância totais, impondo a cada um o que se espera dele.

Pelo contrário, a tautologia quase paradoxal nietzscheana do “torna-te o que és” indica um processo de construção, e desconstrução, de si, de permanente auto-superação, saltando de camada em camada, até chegar à maior das complexidades (maior da aberturas), em que, como diz nas Cartas da Loucura, ele já é “cada nome da história”. Mesmo em Kant, o sublime está além de toda a representação, sentido fiscalizado pelo entendimento, que é o “conheço bem” ou “fiquei a conhecer”.

Byung-Chul Han, citando Baudrillard (Les stratégies fatales), diz que a sociedade se torna obscena “quando já não há cena, quando tudo se transforma numa transparência inexorável.” Ela só é pujante e exuberante enquanto mantém as distâncias entre as subjectividades, a intimidade destrói a sociabilidade. Refere ainda o autor coreano-alemão, “A sociedade íntima é uma sociedade psicologizada, desritualizada. Sociedade da confissão, da nudez e da privação pornográfica de distância.” O pathos da distância que Nietzsche propõe como perfil do homem nobre segue isso, e há o magnífico poema de Paul Celan “Elogio da Distância”. Mas, ao contrário do que pensa alguma vulgata, não é um distanciamento sectário, dos dominantes sobre os dominados. Esse impulso exerce-se em primeiro lugar sobre o próprio indivíduo, ele deve separar-se daquilo que é, do formato social que adquiriu. Distanciamento anti-narcísico, des-subjectivação, morte do homem, nascimento do sobre-homem, o que está para lá da experiência do humanismo antropocêntrico, um ser implacável com a vulgaridade e as alienações. Mas um ser que nunca atentará contra a vida e quererá, por vezes por vias travessas, que os mais fracos se tornem fortes, que todos sejam fortes, embora meigos e educados. Nietzsche, é bom repeti-lo, preferia a astúcia à violência, a paz à guerra. Destruídas as tábuas de valores, bastava renaturalizar a moral para que uma norma sem normatização se instalasse na vida.

Divertimento

Parece eterna esta greve dos maquinistas da razão,
com paragens em Aumento de Salário,
Melhores Condições e Crédito.  
Junto das margens do quotidiano, damas e cavalheiros,
alguns vestidos segundo a última moda da época,
com piadas e chapéus lamentavelmente sinceros
dançam à volta de um presente envenenado
e choram pelo amanhã.

O tempo é compulsivo. O ar é compulsivo.

Gloriosos dermatologistas espreitam
sinais suspeitos no céu. A Lua,
esse belo e melancólico melanoma in situ,
insidiosamente recortada do método.

Penso, logo insisto na breve existência
da espera. Parece eterna.
Anjos que se exibem terminantemente
na sua terminologia,
passam dentro de automóveis cruéis
que urram por cima da História
e da invulnerabilidade, cheios de fome
e de átomos de tédio. 

Grandes ofertas de humidade escorrem
pelas paredes impávidas do século.
Não há ainda nenhuma data prevista
para sermos felizes para sempre.
O comboio que vai dar entrada na linha 2
é um macho alfa pendular
com destino a Indiferença.

Vens?

Kpinga: A idade do ferro

por aqui os negros da terra não conheciam o ferro. só mais acima uns seus primos fundiam um outro metal, muito mais amarelo. diversas culturas só de bronze os seus gumes tiveram. do ferro e do aço, jamais a glória e o flagelo. faraós e Ulisses reinaram sob o cobre dessa liga – boa mas nunca tão rígida como o ferro dos hititas, capaz de repelir inclusive as bigas egípcias.

 

a forja refaz do minério de ferro a lava em sua gana de fogo para logo refazê-la, quando sólida de novo, ainda mais forte que o marfim e o osso. ferro: substância e forma do sabre vitorioso. dele e de outras ferramentas nascidas do forno: o facão que decepa, a pua que espeta, a tesoura que corta e o machado que ao derrubar a relva produz a madeira que o prego penetra. ferro: mais que ouro na guerra.

 

kpinga: na África, um privilégio do clã Avongara. a férrea arma de arremesso do povo Zande. um misto de adaga, foice e lança, um falcão capaz de atingir cinco homens. e até de contornar seus escudos. espécie de bumerangue muito mais cruel e astuto. cavalos e guerreiros sentiram o terror desse voo recurvo, aprendido quiçá com os núbios. jalis e bruxos disseram não ser desse mundo. um pacto de reis baniu das guerras seu uso. Ogum e Xangô selaram o acordo, mantendo-a distante de seu povo.

Enquanto

enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida
              é possível ouvir
              o impassível
              pulsar do útero

e de nós está tão próximo
que um arfar contínuo –
antes tão esquecido –
novamente traz à mente
a ideia sempre renovada
de um gestar.  

e o murmúrio
de uma árvore
que brota do chão
fica guardado no ar
esperando que nós,
criadores de línguas
aqui permaneçamos –
quando não, cheguemos! –
apenas para ouvi-lo. 

é o rumor renovado
que nos ideia a esperança
de sermos cegos
ao menos um dia –
que em vigília, em vida,
a vida em nós haja

*

–  mas assim passamos
enquanto
procuramos
dinheiro
e trabalhamos
por comida: 

um zunido sem estrondo
nos chama do dentro
pedindo inquietar-nos,
e nos põe em movimento
onde antes éramos somente: 

um dia sucede ao outro
e mais um e mais um,
e neste rupestre escrevinhar
de traços na parede
divagamos o lento gastar dos dias,
o nosso romper em vagas
contra as rochas do cais,
                           devagar. 

com a mão de margaridas
arrancamos, pétala a pétala,
a esperança de um vaticínio: 

bem-me-quer, mal-me-quer
débito ou crédito,
açúcar ou adoçante,
câncer, coração ou dormindo? 

e se quiseram de verdade que
realmente fôssemos felizes,
ao final ficaremos com as mãos cheias
dos magros galhos de margaridas:
e ali sim estará a predição:
e aí sim entenderemos.