As famílias literárias

António Guerreiro escreve um bom artigo no Público. Eis um excerto: 

as editoras tendem a funcionar como clubes, a formar “famílias” cujos membros se protegem reciprocamente e se sentem vinculados a uma pequena comunidade.

O clubismo não é problema único das editoras. Os suplementos culturais, os departamentos universitários. Tudo o que em Portugal se dedica (ou deveria) a pensar se assemelha a um clube de amigos. No mesmo jornal em que Guerreiro publica este texto sai uma recensão a um livro que faz parte do Clube SIC e foi amplamente divulgado por esse Umberto Eco das manhãs chamado Júlia Pinheiro. Versando sobre o literato assassino Manuel Palito e pretendendo chegar às massas, presume-se que esse livro não seria alvo de recensão caso não tivesse sido escrito por um dos recenseadores com lugar cativo no Ípsilon. Tendo em conta que o próprio Guerreiro é muito “criterioso” nos livros que decide divulgar (não cabem mais do que duas editoras no seu leque de escolhas), aplauda-se a humildade de quem se decide debruçar sobre um problema para o qual muito tem contribuído. 

Notas sobre o real

Professora bem instalada no mundo académico (vide as pernas varicosas, o perfume de mau gosto e a roupa formal que os anos oitenta não souberam reter) assiste a palestra jogando uma espécie de tetris para o século XXI num ipad.

O director do centro de estudos literários aterra com a testa no tampo da secretária, não resistindo ao garrote infligido pela gravata. Sonhando com a ascensão social, os professores presentes na reunião demoram a acudir o desmaiado.

O grande especialista em cinema contemporâneo desfila com uma echarpe do preço de um T-0 na Costa da Caparica, deixando entranhada na casa de banho uma grotesca fragrância de fezes.

O melhor aluno do curso cantava e dançava numa boy band e lia Paulo Coelho e ainda massajava as costas da professora de história dos descobrimentos.

O professor mais respeitado da faculdade não lava as mãos depois de sacudir as gotas de urina do pénis. 

Para detectar o carteirista disfarçado de turista basta olhar-lhe para as mãos. A alma do ladrão reside nas manápulas tatuadas. 

A pessoa que em Portugal mais escreveu sobre uma obra de Foster Wallace não leu mais do que duas páginas dessa mesma obra. Assim vive um país, ignorando.

Constituíram um grupo de estudos, organizaram o colóquio, candidataram-se a financiamento para publicação das actas do dito colóquio. O dinheiro ganho foi desbaratado num hotel, jantando e bebendo whisky. O livro não chegou a sair. 

Mais de metade das pessoas presentes na palestra sobre o monarca assassinado adormeceu. Dormir de olhos abertos é a sesta dos académicos.

A professora doutora leva com vários "acorda" no ouvido mas, como esse ouvido é o mais afectado por AVC recente, a excelsa académica não deixa de roncar.

"As Abelhas Produzem Sol" de Nuno Brito

traduz tu Ajax ou deus pastoral
a minha sede em água
as linhas da minha vida em rios
da minha medula faz nascentes de ribeiros frescos
— põe dois pastores em cada lado e um guarda-rios
mais a sua família feliz e o doce lar em que habitam
e que eles velem a minha descida pelas montanhas —,
desço por ti, fertilizo-te a terra
dos meus joelhos faz barcos,
das rótulas as velas, dos ossos dos dedos: canoas, o tronco seco
e do meu sopro os que nela andem e que neles remem.

Que os aldeões vejam o rio engrossar o seu leito
na medida proporcional da sua sede
e na medida proporcional da sua sede abram poços,
traduz, pois, Ajax ou deus pastoral os meus olhos negros
em poços fundos, para que eles venham com os seus baldes
beber-me um pouco mais

(...)

As Abelhas Produzem Sol , de que aqui se reproduz um excerto, é o mais recente livro de Nuno Brito, colaborador assíduo aqui na Enfermaria 6. O livro sai sob a chancela da Editora Exclamação e será apresentado no dia 28 de Maio pelas 18.30 no Teatro Rivoli, no Porto. Aqui fica a sugestão.  

Repetição

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto 

tudo se repete
num fazer que

descortina: 

compre
uma flor
no mercado
e sê Monet

jardinando em
Giverny – 

refaça
no entulho
de uma casa
o dia que os
mesopotâmios

recensearam
seus deuses
mortos

não basta ao ato
bastar-se a si:
todo agir interpõe

teu agora e teu antes 

voltei-me a mime
parti mais além

fui-me aqui e
assim por diante

– toda tessitura
é a vela na
gávea de Cabral

e o trapo no
torso de
Zumbi –

sê olhar do rei cruel e indigesto
sê o olho que temeu a guilhotina

tudo se repete
num fazer que
descortina 

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto