O Tempo dos Mágicos. A Grande Década da Filosofia, 1919-1929, Wolfram Eilenberger

Em O Tempo dos Mágicos. A Grande Década da Filosofia, 1919-1929, Wolfram Eilenberger (1972, filósofo, jornalista, professor, escritor) relata os acontecimentos biográficos e filosóficos de quatro «monstros» do pensamento ocidental: Ernest Cassirer, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein e Walter Benjamin. Durante uma década, cada um destes pensadores define uma visão do mundo que os marcará visceralmente, enquanto estabelece um legado que alimentará toda a filosofia e as artes do século XX.

Escrito num registo que entrelaça citações filosóficas e episódios prosaicos, no que costuma chamar-se «história das ideias», permite aos não especialistas (haverá algum génio que abarque os quatros autores?) acompanhar e compreender o nascimento das ideias mais fecundas destes pensadores (mais exato seria dizer, com Claude Lévi-Strauss, «destes seres vivos»), que alimentarão a construção da neo-modernidade filosófica. A tradução é cuidada e inteligente, como nos habitou Isabel Castro Silva.

Este Bestseller (esteve durante sete meses na lista das melhores vendas do Der Spiegel, muito lido também em França e Itália) talvez crie alguma urticária nos sacerdotes do mundo da filosofia portuguesa (não é uma expressão feliz, entenda-se por isto o mundo académico que vive da filosofia em Portugal), costumamos eleger uma teorização abstrata e tendencialmente redundante em vez de uma interpretação das obras imbricadas com a vida; preferimos desencarnar os autores a vê-los na sua dimensão de humanos, demasiado humanos (como queria Nietzsche); despidos dos seus contextos de vida a contaminados pelas interações sociais e vitais. É como se purificássemos os autores para capturar mais facilmente as suas ideias, capturá-las melhor e conservá-las, lisas, em formol.

A relação vida/pensamento, tantas vezes apagada por simples facilitismo, fica demonstrada na forma como Heidegger considerou, ou consolidou, que a morte tem no Dasein o «efeito de um radical isolamento.» Depois do falecimento da mãe, um processo longo e doloroso, e na sequência de lhe ter dito, perto do final, que já não podia rezar por ele porque tinha de rezar por si, Heidegger confessou ter de carregar, com mágoa, esse desprendimento e que a sua filosofia não podia ficar só no papel. De igual modo, quem pode rejeitar que o antissemitismo sentido por Cassirer e a família a partir da segunda metade da década de 20 não influenciou o seu trabalho sobre as formas simbólica? Ou a experiência da guerra, na linha da frente, sempre perto da morte, bem como os anos de professor primário nas montanhas rurais da Áustria e a súbita conversão cristã atravessou sem deixar marcas as exigências lógicas, místicas e estéticas de Wittgenstein? Ou o registo de pinga-amor e a permanente falta de dinheiro de Benjamin decidiu uma parte da sua incapacidade em redigir um pós-doutoramento canónico e aceder a uma profissão académica?

Wolfram Eilenberger contribui, pela forma como nos dá a conhecer estes filósofos, imersos na vida, para o desenvolvimento de um sentido crítico sobre o estado vital da filosofia. Reduzindo-se, pelo menos em Portugal, a quase só servir para formar professores de filosofia e compor linhas de investigação adequadas às bolsas da FCT (apesar de tudo, mais relevante a primeira do que a segunda), a filosofia é cada vez mais anódina, um jogo concetual privado que entusiasma apenas uns poucos iniciados, boxeando no vazio. Vale o paralelismo que Eilenberger faz estre escolástica e filosofia analítica:

«À semelhança de grande parte da filosofia analítica atual, também a escolástica preferia o fetichismo das distinções subtis sobre um fundamento aparentemente sólido de investigação à aventura de propor um contributo relevante ao entendimento da sua época fundamentalmente instável.» (p. 234)

não venço o medo diurno

não venço o medo diurno
o qual carrego pelas avenidas 
em flores, pelas pontes silenciosas

chamo as coisas que conheço
pelos seus próprios nomes:
cadeiras, tábuas, despedidas
desespero

as que não conheço, ou que
estão para mim como o poente
amarelo, crio fisionomias:
alto, esguio, imponente
miúdo

à noite, não tenho medo
bebo como um animal sadio
pronto para sair e não 

voltar.

Dois poemas de Lalla Romano

Tradução de João Coles

Também o ar morreu
o céu é como uma pedra

Os pássaros já não sabem voar
arrojam-se como cegos
da beira dos telhados abaixo.


O sono durante as manhãs
prende-me os joelhos
e cinge a minha testa
com suaves ligaduras

E não invocado então
entras nos meus sonhos
e vencida acaricias-me
com mãos violadoras

A meio do dia claro
uma vertigem me cega
e no obscuro sonho
trémula me impele

ENQUANTO PAULINHO NOGUEIRA TOCA A ÁRIA NA QUARTA CORDA DE JOHANN SEBASTIAN BACH

          para a Violeta

         

Tornam-se vãos e violam-me 
os passos da vizinha apressada, pisoteando
as escadarias, tal como os avisos pontuais
da homilia que dentro em breve se inicia.

Fecho a porta ao mundo, em doce espanto,
por saber que ele toca em torno de um ré maior
que só existe na medida em que eu o escuto.

Toco com ele e voo e soo e invento
serem os meus cabelos a exacta extensão
desta pauta, dos arpejos, das suas mãos.

O meu corpo transforma-se numa caixa 
de ressonâncias, num livro onde se encontram
inscritos os mais belos enigmas 
pitagóricos.

Assim é, assim será, para sempre,
cada vez que repetir no parco espaço
deste quarto, estes pouco mais 
de três minutos

em que me faço viola, caixa, cordas 
e braço.

diná



conheço diná de uma fotografia. diná está de costas, metida num maiô vermelho, sozinha, com as mãos na cintura, como quem planeja uma viagem ou o suicídio, diná olha o horizonte para além do atlântico. o ocre predomina a imagem e, não fosse o maiô, diná seria camuflada na paisagem de areia e rochas. essa foto está num álbum da minha família e ninguém sabe dizer quem é a mulher. a chamo de diná, porque outro nome não cabe. uma mulher de maiô vermelho em mil novecentos e setenta e quatro, um ano antes do meu nascimento, a mulher que veste minha cor favorita. diná entre fotos da barriga da minha mãe, minha infância, festas de família, granulada diná entre crianças choronas, adultos bêbados e muitos cachorros. de todas as fotos, diná. que faz diná debaixo do plástico de uma das páginas de um álbum mais velho que eu? minha mãe diz que a leva foi tirada no litoral norte de são paulo. alguma praia quebrada, caída, com muitas rochas no entorno. a praia de diná. perdeu a carona numa lancha ou perdeu seu filhinho de vista ou, depois de uns mergulhos, diná desorientada, submergiu no local de areia errado e não onde estavam seus amigos, sua família, sua bolsa. todavia ela olha o mar. diná escolhe a linha que segura a água contra o céu. põe as mãos na cintura e aperta os olhos castanhos, prende os pés na areia, como se fosse possível, como se a areia fosse um poleiro e diná uma arara, como se a atmosfera quisesse arrancar diná de ser diná na fotografia do nosso álbum. agora um náufrago prende a atenção de diná que não se desespera, mede as braçadas necessárias até a areia, pensa no caminho que faria, mas não é ela o náufrago e daquele ponto, o pobre nem a vê. volta a roçar a linha fatal, o cálculo impossível, construir barcos fora dos preceitos náuticos. nada a flutuar, a não ser a hipótese de um voo raso em grandessíssima velocidade, irritar terríveis ondas, afastar o náufrago da costa, impossibilitar seu sofrimento de retorno, afogar o homem na intranquilidade azul, chegar até o limite, até o horizonte que, a essa velocidade, jamais se afastaria de uma mulher de maiô vermelho e com as mãos na cintura. um dia diná escapa da foto e aí quero ver. vou estar de olho em quem da família, além de mim, sente a falta de diná.