Tio

Morreu-me um tio, não o via há mais de 25 anos,
Dele lembro-me do carrinho de corrida vermelho
Com um escorpião desenhado
E dos olhos tristes da minha mãe,
Dele lembro-me da pantera cor-de-rosa do ovo kinder
Que lhe enviei e ele guardou como uma relíquia
E dos olhos tristes das minhas tias,
Dele lembro-me das cadeiras brancas
Em casa dos meus avós
Onde a família toda nunca reunida
E dos olhos tristes dos meus tios,
Dele lembro-me dos gelados esmeralda
E dos olhos tristes dos meus primos,
Dele lembro-me do luto da minha avó
Que se tornou mais luto
E dos seus olhos tristes,
Morreu no Brasil, pensei que sempre teria o Brasil,
Afinal não.

A transformação de Portugal segundo Agostinho da Silva – breve aproximação

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Grande parte da produção ensaística nacional dos últimos duzentos anos centrou-se numa necessidade de pensar, ou regenerar, um Portugal a padecer de enfermidades várias, das quais se destacam as conhecidas crónicas crises económico-financeiras que até em termos de mentalidade acabaram por ter reflexos na vida lusitana. Produzida em tempos em que as ciências humanas ainda não eram vistas com o rigor e o carácter científico (e até técnico) de hoje, por elites político-culturais não necessariamente ligadas ao meio académico, essa reflexão em torno do sempre urgente tema do reformar o país, de criar um Portugal futuro desligado do polimórfico vocábulo “crise”, não conheceu a objectividade que por vezes se exige a quem escreve história ou ensaio. A obra de Oliveira Martins, historiador oitocentista, tantas vezes criticado pelo carácter narrativo, subjectivo, pouco isento, com que historiou o Portugal do seu tempo, é demonstrativa de uma forma de pensar no papel que não obedecia à ciência académica, aos imperativos do rigor e da neutralidade. Também no abundante trabalho escrito de Agostinho da Silva se enquadra não só esta vontade de transformar Portugal, mas de modificar os homens de maneira a instaurar novas formas de viver regidas pela liberdade, palavra fundamental para o entendimento de um homem que perdeu o seu posto na função pública por se recusar a assinar um documento a atestar que não participaria em associações clandestinas (opostas ao regime ditatorial)[1].

 Agostinho da Silva não foi convencional e não se exprimiu como alguém convencional. A sua escrita floreada e redundante, como as suas respostas aos entrevistadores da RTP[2], aponta para caminhos incertos, parece girar em torno de toda a história de Portugal para chegar a lado nenhum. É fácil para um jovem vindo de Inglaterra, como era Miguel Esteves Cardoso na altura em que o entrevistou, em 1990, encontrar lacunas no que lia, dizer na cara do autor que a sua obra lhe parecia superficial ou oca[3]. Para alguém que leia alemães, ingleses, que se fascine com o progresso europeu e americano, ler o filósofo português é como entrar num universo provinciano, datado. E a verdade é que a obra de Agostinho da Silva, apontando para a liberdade de todos os homens, é ao mesmo tempo profundamente patriota, enaltece o que é nacional, o que não sofreu a para si negativa influência estrangeira[4]. Por conseguinte, ao entrarmos no universo escrito de Agostinho da Silva, precisamos de ir prevenidos, em primeiro lugar, para um estilo de escrita pouco dado à objectividade, pouco seguidor de fórmulas que a Academia dos nossos dias conhece, e depois, por um tom patriótico e messiânico, de exaltação da monarquia, a que recorreu para perspectivar as potencialidades portuguesas.

O Portugal futuro desenhado por Agostinho da Silva é pouco claro, e nesse sentido contrasta com o trabalho levado a cabo, por exemplo, por Raul Proença, Jaime Cortesão ou António Sérgio, figuras ligadas à Seara Nova, revista a que também Agostinho esteve ligado. Ao contrário destes conhecidos nomes, que apresentaram propostas concretas,  ligadas ao desenvolvimento económico e material, Agostinho da Silva pautou-se por utopias. Para o grupo da Seara Nova, o signo essencial era o da acção, o da transformação prática, e era por esse motivo que Agostinho dos seus membros dizia que jamais haviam sido aquilo que poderíamos chamar “intelectuais puros”[5]. Se o filósofo se debruçava sobre a economia, se sublinhava a urgência de desenvolver a tecnologia, era para afirmar que a economia deveria desaparecer por completo, que a humanidade dever-se-ia libertar dessa escravidão chamada trabalho. A sua ideia era a de que o homem deveria ser criatura livre no tempo e no espaço, livre de categorizações auto-impostas.

Não obstante seja para o futuro que Agostinho aponta, é no passado que a sua obra se move, na glorificação dos heróis nacionais, na defesa do que é mais tradicional e puro na cultura portuguesa. Por outro lado, mais do que exaltar o espírito dos Descobrimentos, como fizeram tantos outros autores, interessa a Agostinho destacar as lutas pela independência contra Castela. Observa mesmo que o que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o Descobrimento, nem a conquista, nem a formação das nações ultramarinas, mas o ter resistido a Castela. E no seu entendimento não houve batalha mais importante na Europa do que a de Aljubarrota[6]. E era por tanto e tão bravamente ter resistido às pressões castelhanas que Portugal representava uma esperança de “futura liberdade” para as outras nações da Península: “Portugal é, de todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político, talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do povo romano"[7]. Contudo, este mundo profundamente nacionalista de Agostinho da Silva é também idealista, utópico, isto é, irreal, “não das existências mas das essências intangíveis, puramente ideais”[8], sempre do futuro, às vezes imaginário, como aquele em que se imagina D. João VI a decidir criar um universo português feito de nações independentes e livres com o seu centro de gravidade não mais em Portugal, mas no Brasil. Paradoxalmente, este alargamento de Portugal ao Brasil não era visto por Agostinho como uma forma de tornar Portugal cosmopolita, antes como um modo de livrar o país das daninhas influências europeias que não o tinham deixado ter nem regime cultural, nem acção política “verdadeiramente adequadas à sua mentalidade"[9].

A complexidade ou densidade da obra deste pensador português não se restringe a entrevistas ou a dois ou três livros que possamos citar, mas o interesse aqui não era analisar Agostinho da Silva na sua totalidade, antes contribuir para entender as suas propostas para o porvir nacional. E o que se encontrou não é simplesmente interpretável. O caminho visionado pelo filósofo é de índole imaterial. A sua leitura da história de Portugal tende a encontrar grandeza onde outros viram decadência, e encontrar decadência onde outros vislumbraram progresso – a Europa, por exemplo. Quando lemos qualquer dos seus livros, a percepção que fica é a de estarmos no reino da impossibilidade, da utopia. E assim se depreende que a filosofia de Agostinho da Silva, pelo menos no que a estes temas se refere, ultrapassa os limites da história e da filosofia, chega a ser um longo devaneio literário cujo destino final é somente pensar. E talvez não haja outro sentido para a escrita do que o pensar.   

 

 

 

 

[1] Não ter cartão de contribuinte português era outra prova deste espírito sempre inclinado para o ser livre.

[2] Intituladas “Conversas Vadias”, estas entrevistas realizadas em 1990 podem ser encontradas no arquivo da RTP: https://arquivos.rtp.pt

[3] As palavras usadas por Esteves Cardoso foram certamente outras, mas o seu sentido não diferirá assim tanto do que aqui escrevo.

[4] Um dos momentos que assinalam a decadência portuguesa é, para Agostinho, o Renascimento, que trouxe do estrangeiro as mais diversas influências (literárias, linguísticas, etc.)

[5] SILVA, Agostinho da, Só Ajustamentos, Salvador da Baía, Imprensa Oficial da Bahia, Salvador, 1962, p. 133. 

[6] Id., Ibidem, p. 31.

[7] Id., Ibidem, p. 33.

[8] Id., Ibidem, p. 81.

[9] Id., Ibidem, p. 106.

Eram 3 da madrugada

Entrou no carro, sentou-se e atirou as chaves para o assento do lado. Eram 3 da madrugada, bebera mais do que a conta, tinha os olhos esgazeados e o sono já se fazia sentir, mas nada disso o incomodava. Fixava um qualquer ponto que estivesse na sua cabeça, algures ali perdido nas ideias dele, e era assim que nenhuma das luzes da noite lhe penetravam retina adentro e o acordavam do transe. Pensava num amor, pensava na súmula de quase um ano sem trabalho à caça de biscates aqui e acolá, na maioria das vezes ilícitos, para poder sustentar a sua vida, e a enviar currículos por e-mail com cartas de motivação insossas anexadas e, com o seu envelope encarquilhado, a entregá-los de porta a porta em estabelecimentos que lhe pareciam ora decentes, ora decadentes. Por esta altura, pouco lhe importava. Estudara e trabalhara na área de estudos que agora parecia rejeitá-lo. Fora para o estrangeiro uma temporada, sacrificara a relação com a namorada, não logrando absolutamente nada. Intentara de retomar com a namorada, mas também em vão, não se sentia uma prioridade na vida dele, “nem secundária, nem terciária, nada”. Tinha a sensação de ter feito todas as escolhas erradas na vida. Estava bem quando se encontrava com os amigos, faziam-no sentir-se melhor, anestesiavam-lhe a dor entre chalreios e copos. O problema era o caminho para o carro, aquele moroso rebobinar da vida, de coração na boca e de mãos apertadas na garganta. Foi assim que chegou ao carro, alucinado, pronto para voltar para as quatro paredes de sua casa que pareciam amachucar-se e prestes a cair-lhe em cima a qualquer instante. Ultimamente pegara no volante neste estado, como se desafiasse a morte, e ciente disso. Era ele e o sono que lutavam por uma existência, efémera e prolongada ou eterna. Queria testar a sua sorte: nas estradas desertas, na ponte, nas bermas, nas localidades, tentar não esbarrar-se nos passeios, passando por cima das tampas soltas das sarjetas, ou uma poça de óleo na estrada que lhe desgovernasse o carro. Foi enquanto isto que voltou a si e reparou na aranha que pendia do retrovisor. Lembrou-se das palavras de um poeta: “tal como a aranha, sê paciente”. O caraças, é o que é, resmungou, que me sacudam com o chinelo. Ligou a ignição e seguiu caminho.