Desatenção

Não sei se me lembro bem, foi inesquecível. Tínhamos finalmente alcançado o lugar monumental e famoso, e tudo aconteceu deste modo, sensivelmente deste modo. O autocarro da excursão escolar percorrera em esforço as estradas sinuosas e fomos reparando que o guião da viagem, tão minucioso, incluindo mapas e umas quantas citações poéticas, servia de leque, óculo improvisado ou avião de brincadeira que aterrava no sítio subitamente tão concreto. Sintra, atravessada de luz entre arvoredos, abraçava viajantes afinal desprevenidos. Olhávamos com surpresa e o grupo desorganizava-se. Onde fixar a atenção?

Os responsáveis pela visita de estudo inquietam-se com o incumprimento do roteiro. Impunha-se seguir de imediato o percurso do capítulo VIII de Os Maias, expoente, sublinha o guião, da arte realista; subtítulo, como é sabido, “Episódios da vida romântica”. Mas alguns alunos lambiam enormes gelados, outros ficavam a ouvir música no passeio oposto, voltados para uma parede vazia. Os olhos piscavam, encandeados, porque a praça onde estacionáramos entontecia de demasiada luz. O centro do lugar, onde quer que isso fosse, irradiava em labirintos ofuscados. Estavam desatentos! Sintra refulgia de espaço, como assinalava de novo o guião, mas as sombras eram também fortes e criavam áreas onde a humidade se tornava espessa e os vultos quase invisíveis. Estaríamos todos? Sorviam enormes gelados, mostravam-se imensamente desatentos e olhavam para tudo.

 

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“Pride” de Matthew Warchus (Reino Unido, 2014)

http://www.hollywood.com 'Pride' Trailer Director: Matthew Warchus Starring: Bill Nighy, Andrew Scott, Dominic West UK gay and lesbian activists work to help miners during their lengthy strike of the National Union of Mineworkers in the summer of 1984. For more movie trailers, celebrity interviews and box office news visit Hollywood.com!

“This is where we would kiss if we were normal”

A citação é uma frase dita às tantas por uma das personagens de Pride, e permanece no meio do filme como o epítome de um dos seus temas mais importantes: a busca pela mediação entre um sentido de diferença e identidade que só pode ser alcançada se o ponto de partida for a solidariedade. Neste sentido, Pride, baseado em factos verídicos, é um filme cheio de humanidade. O filme narra a improvável história de como uma associação de activistas gay veio a tornar-se uma das principais apoiantes de uma pequena comunidade de mineiros no sul de Gales durante a greve de 1984-1985, durante o governo de Thatcher.

Pride não é um grande filme no sentido em que, por exemplo, Twelve Years a Slave é um grande filme. Ambos partilham o facto de serem baseados em histórias verídicas, mas enquanto Twelve Years a Slave se torna uma obra de arte, com a qual temos uma relação ética complicada justamente porque ela atinge este estatuto (sobre isto já aqui se escreveu), Pride não é esse tipo de filme, mas tendo dito isto, é um filme cheio de pulso, baseado numa história cheia de alma.

Eleito, na estreia, filme da semana pela crítica da BBC (a fantástica dupla Mark Kermode e Simon Mayo), Pride é uma pequena história sobre como a solidariedade pode vencer a diferença e o preconceito e desse ponto de vista é uma versão trazida à escala de duas comunidades de um microcosmo de tenções que são em termos abstractos parte de todas as relações humanas. O peso da resposta que o filme nos quer dar acaba por pender completamente para o lado mais positivo dos actos e resoluções que essa escala emocional supõe. O lado mais comovente do filme (Mark Kermode diz que começou a chorar aos quinze minutos e não parou mais) depende em grande parte disso.

Pride é um filme que nos enche de esperança na humanidade, cuja imagem acabada é essa fábula sobre o poder de pequenas comunidades que se juntam contra os grandes poderes opressivos, dos quais fazem parte uma polícia sem grandes problemas em levar a cabo detenções ilegais no meio de uma população desinformada ou as primeiras páginas homofóbicas e pró-Thatcher do The Sun de Rupert Murdoch, elementos que configuram talvez uma das linhas mais interessantes do filme em relação ao contexto da sua estreia – esse comentário contra o poder da desinformação.

Poder-se-ia aqui parafrasear Lampedusa para arrumar este filme entre o número desses objectos contemporâneos que, completamente desprovidos de alma, nos dão a ilusão de que tudo está a mudar para que tudo possa, afinal, ficar na mesma. Nem sempre se pode ser tão cínico e é preciso admitir que, não estando do lado do Leopardo, proferir esta frase não nos dá muitas vezes mais vantagem do que tornarmos óbvio que estamos a ver o que está a acontecer, sem mais vontade de reagir do que um aceno enjoado de grumpy cat.

Uma última nota sobre interpretações. Bill Nighy alcança o prodígio de manter a mesma expressão durante todo o filme (com uma pequena, mas crucial, variação), o que paradoxalmente resulta numa interpretação excelente. Outra alegria que este filme nos traz é poder rever Dominic West, o McNulty de The Wire, e Andrew Scott, o actor  que interpreta Moriarty na mais recente versão de Sherlock da BBC (esta protagonizada por Benedict Cumberbatch e Martin Freeman), o que na ressaca pós-Sherlock, é sempre bem vindo (as séries são emitidas por vezes com dois anos de intervalo). Pride estreia em Portugal em finais de Outubro. 

 

Um poema do novo livro de Ricardo Marques, «Didascálias»

REGRAS PARA EVITAR QUALQUER CRISE DE NERVOS

É preciso lutar contra a folha de cálculo que elimina, que despede
é preciso trabalhar contra aquilo que nos põe sem trabalho
é preciso saudar a poesia, tirá-la da torre e cantá-la
é preciso abandonar o que nos aprisiona futilmente
é preciso montar a tenda sobre as possibilidades
é preciso libertar a liberdade com que se nasceu
é preciso lutar contra o medo, com ou sem ele
é preciso vigiar de perto o que se conquista
é preciso conquistar o lugar que nos cabe
é preciso rejeitar frases postas na boca
é preciso deixar de ser um número
é preciso fugir de rajada à rajada
é preciso mentir só à mentira

é preciso questionar
é preciso dizer não
é preciso duvidar

e amar - verdadeiramente.


Didascálias, o mais recente livro de Ricardo Marques, também o mais recente da do lado esquerdo é apresentado hoje às 18h00 na Livraria Alfarrabista Miguel Carvalho (Adro de Baixo 6, Coimbra). A apresentação fica a cargo de Isabel Delgado.

Com touca na cabeça atravessando a tempestade

Conjuntivite, decretara o médico de família sem levantar os olhos do papel no qual gatafunhava a palavra colírio. Uma conjuntivite apanhada no metro. Uma cegueira no olho esquerdo acompanhada de vermelhidão e coceira. Por causa de uma velha perua que tropeçara e se atirara de boca contra a fuça do transeunte. Eis um malefício de perfumes caros e intensos cuja fragrância faça lembrar urina de gato: perturbações na visão. Chanel nº5, veneno. Para a próxima, mal sinta as narinas a tremer, fuja, recomendara o médico, corra para longe, Chanel nº5 em pescoço de velha é funesto. Médico conselheiro, excelso conselheiro. Lamentáveis as acusações de pedofilia que o afastariam do convívio com os pacientes. Jim Morrisson do Calvário lamentava a perda do doutor e esmurrava o saco de boxe plantado no meio da sala de jantar, ignorando a berraria da mamã, que o chamava para jantar, que previa que, com tanto estoiro, qualquer dia o tecto ruiria. Jim ou Jime ou Jimi, dependendo do papel social que encarnasse, perdia-se em delírios vários, tais como apaixonar-se por Márcia Felácio, roqueira/personagem de romance B da autoria do falecido Caio Fernando Abreu. Que cara teria Márcia Felácio, vocalista das Vaginas Dentadas? A mãe, mamã, que mãe nunca deixa de ser mamã para rapaz sempre imberbe em termos sentimentais, irrompia de colher de pau na sala, ameaçando parti-la no rabiosque do rapaz se este não se sentasse na cozinha a limpar a dose de bacalhau com batatas tão esmeradamente preparada. Racho-te este pau como quando tinhas meio metro de altura, menino Jime Manuel Santos Costa & Silva, que nesta casa ainda manda a idade e a sabedoria, e quando o teu pai chegar à noite já sabes que apanhas, quer te portes bem, quer te portes mal, portanto, juízo, ganha tino, que de duas lambadas não te livras. Trovejava, adivinhava-se um dilúvio, Jim Morrison do Calvário ainda tinha duas entregas a fazer. Quem manda não teres estudado. Sabedoria de mãe. Duas entregas, maldita cocaína. Parcialmente cego devido ao Chanel nº5.  A mota não pegava e o céu negro prometia o inferno. Um trovão numa árvore e aquele tique nervoso sempre a vir à superfície. Esmurrar o ar. Jim esmurrava o ar quando confrontado com situações de perigo. Não podias ser normal. A primeira entrega correu bem. O Faísca Caparrão vivia mesmo ao virar da esquina. Faltava a outra. Uma entrega na outra ponta da cidade. Um drogadito de sapatinho de vela e camisa encarniçada e cabelo risco ao lado, muito lacoste, residente na parte rica da cidade, ai a Lapa, que linda era a Lapa com aquela limpeza e arrumação de rico. Que linda e vazia e deprimente como o resto da cidade, malfadada capital do antigo império dos descobrimentos, desditosa cidade que obrigava um moço honesto a sair de casa com o Niagara a cair das nuvens. Jim acelerava, a mota não era uma mota, nem um cavalo, nem um avião era tão veloz quanto aquela mota que levou com um trovão e ardeu e com ela o dono, esturricado, tostado, sem tempo para esmurrar o vazio.