Caderno 2

Powered by Issuu
Publish for Free

Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€

Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

A Enfermaria 6 é uma plataforma editorial sem fins lucrativo. Todo o dinheiro resultante da venda dos exemplares será usado para financiar futuras publicações.

INTERMITÊNCIA, Linguagem, Perspectiva, Oxímoro e Arte

254. INTERMITÊNCIA

Todos lhe diziam que falava demais, que devia ouvir-se, mas ele não ouvia ninguém e continuava a falar, a falar, a falar. Um dia, nunca soube bem porquê, calou-se e ouviu-se finalmente a si próprio. Percebeu então que eles tinham razão, e disse-o a todos, um a um, para que soubessem que assim era, uma, outra e ainda outra vez, sem parar.


277. LINGUAGEM

Queria ser o melhor, mas cedo percebeu que não era suficientemente bom para ser o melhor entre os melhores; e o mesmo quanto a ser o pior, porque também não era suficientemente bom para ser o melhor entre os piores, que o mesmo é dizer o pior entre os piores. Decidiu então que seria o melhor dos medíocres, o que penso que conseguiu ser, senão o melhor, pelo menos um dos melhores, porque a maioria esmagadora dos medíocres não é mais do que isso, e ele poderia, sem dúvida, ter sido melhor, muito melhor, o que julgo que afinal lhe aconteceu.


301. PERSPECTIVA

Irritava-se por tudo e por nada e, por mais que tentasse, não conseguia mudar, no entanto, um dia sentiu-se sereno, extraordinariamente sereno. As pessoas começaram a fugir dele, dizendo que estava morto, mas ele sentia-se bem, extraordinariamente bem.


325. OXÍMORO

O poema é uma prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o poema é sempre um todo. 
Ele sabia que assim é. 
Ele sabia
que só o grito do poema 
permite
verdadeiramente
ouvir o silêncio
que sempre o compõe.


351. ARTE

Subiu ao palco e imobilizou-se à boca de cena, olhando o público, um sorriso tímido a aflorar-lhe o rosto pálido. Quinze minutos depois nada mudara, com excepção da agitação crescente do público que, pouco a pouco, ia abandonando a sala, soltando impropérios e risos de escárnio. Quando ficou sozinho o homem fez uma pequena vénia e saiu sem pressas pela direita.

Adaptação, Antecipação, Fé e Custo

172. ADAPTAÇÃO

Sofria, sofria sempre, sofria de uma forma contínua e invariável; sofria de tal forma e com tal intensidade que qualquer alegria, por pequena que fosse, lhe era completamente insuportável.

191. ANTECIPAÇÃO

Desiludido com o presente, sentou-se à espera do futuro. Muitos anos depois, olhava para o passado com desespero e sentia ainda mais saudades do futuro.

211. FÉ

Todos os dias pela manhã, antes de ir trabalhar, levava o cão à rua. Ao fim-de-semana fazia o mesmo, apenas um pouco mais tarde. Caminhava ao ritmo do cão, num percurso quase invariável. Acreditava que era ele que passeava o cão, quando na verdade era o cão que sempre o passeava.

P.S. Pode ser de interesse para os leitores saber que o cão era branco.

232. CUSTO

Era um escritor de renome internacional, considerado porém um rematado machista, porque todas as suas personagens femininas obedeciam exclusivamente a uma exagerada visão masculina. Um dia o escritor cansou-se e escreveu um romance visto pelos olhos de uma mulher, considerado o melhor dos seus romances. Um ano depois da sua publicação o escritor ainda se vestia de mulher e estava a considerar colocar implantes mamários.

Cegueira, razão e persistência

121. CEGUEIRA

Um homem avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.

137. PERSISTÊNCIA

Entrou na rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída.

154. RAZÃO

Admirava todos os e poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele não tinha essa capacidade, era completamente louco.

Chão, interrogação, planeamento, fama

67. CHÃO

Os seus poemas eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer, outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e afinal morresse. 
Era por isso que escrevia, foi tudo o que declarou.

79. INTERROGAÇÃO

O homem perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido embora os prédios.

92. PLANEAMENTO

Um homem amputou o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo.

106. FAMA

Declarava sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre, com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.