Demasiado Hollywood

Deixei o copo de gin junto à piscina
não fosses ter sede.
Ainda que repitas: a vida não é hollywood
continuas a exigir festas e demasiado alcool.
Bateste a porta com demasiada força
e acordaste-me novamente demasiado cedo.
Para onde foste?
Faltava-te gelo para o whisky?
Ou o limão para o vodka?
Que calor é este que estás permanentemente a tentar
apagar?
Aqui é outra vida.
Ninguém se suicida com overdoses
nem com acidentes de automóvel.
Aqui as mortes não são espectaculares.
Ainda que tentes
não terás essa sorte.
Cansas-me por pensares
que somos todos cabrões
sedentos de gin à beira da piscina.
 

[Ver perfil de Filipe Teles]

PODEM SER PEDRAS

Podem ser pedras
mas não é o que importa
para explicar porque me dói a pele.
Pode ser o sal do mar que seca
ao sol de fim de tarde
ou os últimos instantes de um puzzle
a que falta uma peça.
Pode ser um olhar venenoso
ou o rasgar de um avental velho
que deito fora de tão imundo.
Pode ser o cheiro acre
e o queimar dos olhos
depois da experiência com maus resultados.
Ou mesmo o silêncio
do homem calado
a quem perguntei onde ficava o destino.
E do velho banco de jardim
que nunca precisou de responder
a pergunta alguma.
Pode ser da falta de atenção
ou da ignorância preguiçosa
que não me oferece nada 
para além de ruído.
Até da boca longa do tubarão
e dos dentes afiados da inveja.
Pode ser da entrevista 
que queria fazer ao arquiduque antes de morrer.
Mas já foi em 1914.
Ou da conversa que ficou por terminar
com a Marie Curie.
E que ficou também
por começar.
Pode ser das plantas
que precisam morrer para germinar.
Ou do pó que fica depois de tudo
e da caminhada longa
para lá chegar.
Pode ser de Vinicius, Cortázar 
ou mesmo de Pound.
Pode ser de todos os que estão
aqui dentro
sem que bilhete lhes tenha sido pedido.
Poeta precisa também de comer
e de estar na avenida
a sentir os carros poluir por dentro.
Precisa do escuro
e da mais iluminada surpresa.
Precisa da dor
e das mais férteis vitórias.
Pode ser disso.
De toda a vontade de viver.
Pode ser da vontade de dançar
ou de ficar sentado sem mais.
A redenção não é metafísica
e as respostas não brotam de folhas em branco.
Pode ser até de mim,
Mas há tantas perguntas que ficam por fazer.

Podridão Poética

Há livros com corpos vertidos dentro,
que só a morfina do olhar
impede de sentir.
Lá dentro
a imundície e a podridão.
As respirações mortas
e os restos de carne ainda pulsante.
Os gritos ainda perfuram.
As lâminas continuam a cortar.
Os corpos vertem-se lentamente 
escorrendo dos dedos do autor.
Sangram gota a gota para as páginas
que, fétidas, me vêm depois visitar.
Mas nenhum livro sem este cheiro
merece ter a oportunidade de existir.

Dois tipos de poetas

Na gare de Lyon ouço música pop 
Não sei o que faço aqui com os 
guichets preenchidos de perguntas 
                                  Em que lugar? 
              Qual o cais para Grenoble? 
E espero, como tantas vezes. 
Jornais, revistas, sanduíches 
Humildes balcões húmidos repletos de publicidade desinteressante 
Viagens circulares sem destino, de quem espera 
sem correr, sem vontade. 
A mulher de verde com óculos escuros 
O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho 
O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas 
O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher de verde 
Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais interessado na miúda loura 
Coca-cola que aqui se diz côcá 
Batatas fritas, frites, frites, 
E o cheiro imundo a óleo 
E espero com os 
miúdos que correm para lá do alcance dos olhos. 
Os papéis voam-me 
São os aviões na gare de Lyon 

À minha frente, enquanto aguardo o autocarro, 
lê triste um livro 
- verso foleiro, mas o rosto era esse. 
Não percebo o que lê. 
Triste porque parece 
não que tenha a certeza. 
Está na idade de ler livros tristes. 
Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas 
As palavras sussurrando-lhe ao ouvido 
Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio texto
Mais húmidas do que a chuva 
Ou o balcão imundo 
Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo. 

Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros 
Respirar o ar puro, ou o fumo do escape, 
Ver luz 
Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida. 
Apetece mergulhar numa queda de água 
Bater a espuma nos ombros 
E sorrir um verde imaturo. 
Mas sou puxado de novo para a gare. 
Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas a fugirem-me, 
sem lugar onde sentar, 
apenas aquele com ela de frente 
segurando o livro como cálice sagrado 
sem fingimento 
só lágrimas e vibração religiosa. 

Se falasse talvez eu desistisse de a admirar 
talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como tudo o resto. 
Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens 
e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro 
e nós morremos pelos olhos. 
A única forma de estar verdadeiramente a salvo 
é ser cego 
Uma cegueira que corre em sentido anti-horário 
anti-vida que nos entra pelos olhos. 
Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam. 
Quando a imagem fere 
e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável. 
Se um dia penso numa cor, verde ou laranja, 
não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema. 
Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,
então posso cegar-me de dor. 

São quase três horas. 
Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar 
embutida nos olhos 
por dentro 
- pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.
Não a deixo falar, não a quero ouvir, 
nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor. 
A vida é água fria 
com menos sabor do que a imaginação 
- pelo menos a minha
de onde consigo domar o destino 
e despentear a realidade 
até ela gritar de prazer. 
Deixo-a girar ritmadamente as páginas 
sonhando-a como quero 
- sem que fale, nem me olhe.
Melhor assim, 
sublimada, despenteada, irreal, 
quente. 

Na gare de Lyon não há aviões. 
Há livros e lágrimas escondidas.