Nota de leitura (1) 

Catorze

A alma dum rapaz é naturalmente
fascista. Não se deixa levar
pelo brado da justiça. Conhece bem
as pedras e a força que as anima. 
Sabe a que distância um insulto fere bem. 
Não precisa de estudar o ADN, a lei
do mais feroz. Esmurra quem lhe foge, 
conjuga sempre os verbos no presente, 
acende numa sarça o cigarro inicial. 

José Miguel Silva
Vista para um Pátio seguido de Desordem
Relógio D’Água, 2003, p. 26. 

 

A minha relação com a poesia de José Miguel Silva não é d'agora. Alguns amigos sabem que Vista para um pátio seguido de Desordem foi para mim um livro decisivo na mudança da minha própria poética. Os mais próximos sabem que o considero o melhor poeta da sua geração (apesar de "geração" ser um termo perigoso). Não é segredo nenhum que admiro este género de manifestação poética, em detrimento de outra demasiado umbiguista mas com pretensão de universal, e que vai sobrevivendo à custa de melícias organizadas que atacam tudo o que lhes cheira a heterodoxia, ou "regresso ao real", como se a Poesia alguma vez tivesse sido ortodoxa, ou expulsa do "real", para assim ter de existir um regresso. Penso que este poema é universal. Todos nós tivemos catorze anos. Mas também é certo: há quem já nasce muito velho.

Quatro poemas das horas vagas

1.

Agora
a esta hora
sinto

a orfandade
duma guerra
perdida

Nada resta do dia
que resgate
desta anacrónica

melancolia —
tal a canga
sentida

E nem
o ronronar
do gato salva

esta "porra triste":
em tudo
ver absurdos

sem nunca
ter dado
para existencialista

 

2.

Durante
algum tempo

procuraste
uma espécie

de sossego
que trouxesse

paz
Procuraste

e desististe
Concluíste

que a paz
é um fim

e não um
caminho

E tu preferes
caminhar

 

3.

O sino da igreja
lembra que o tempo
não espera por
ninguém

O gato
à janela sabe
as vidas
que na verdade
tem

E este poema
acaba aqui
e não acaba
bem 

 

4.

Foi est
país que nos
calhou

à beira
mal plantado:
terra de uvas

onde
só sobra

bagaço

Depois de Bashô

1.

Cobras esventradas
na estrada ― chegou
o Verão

 

2.

A voz de Kerouac
o gato e uma bola de papel:
a casa menos vazia

 

3.

Trinta alunos a olhar
pela janela
o Outono lá fora

 

4.

O gato
tapa o focinho —
Inverno

 

5.

O prédio
em silêncio: hora de ponta
nos subúrbios

 

6.

No chão da cozinha:
a Lua — prato
donde come o gato

 

7.

Relógio:
água a pingar da
torneira

 

8.

Roupa no estendal
da cozinha —
chuva lá fora

 

9.

Na cadeira
o gato observa
cavalos a relinchar

 

10.

Cabeça entre
as mãos — teste
de Matemática

 

11.

Análise sintáctica:
sujeito nulo —
poeta

 

12.

O meu
Monte Fuji: Fraga
da Cruz

 

13.

Durante as aulas
alunos pelos corredores —
Psiiiiiiiiiiiiu!

 

14.

Da sala sete
o pinheiro do pátio
parece um bonsai

Crítica Literária: o vazio

Nota prévia

Este texto parte dos seguintes pressupostos: é função do crítico literário regular o mercado literário; o crítico literário falha nessa sua função e é uma espécie de Banco de Portugal.

 

1.

Em Portugal poucos são os verdadeiros críticos literários. A maior parte das vezes ou são poetas ou romancistas a “exercer”. O crítico literário, em Portugal, é um conceito híbrido. Claro que pedir que um crítico literário seja apenas crítico literário, é pedir muito num país tão pequeno (em todos os sentidos) como o nosso.

Não podemos esquecer, ainda, a vertente mercantil e economicista da questão, que muito poderá condicionar a imparcialidade de quem escreve. Assim, seria interessante um estudo que procurasse encontrar uma possível relação entre as críticas literárias feitas e os respectivos críticos literários que as escreveram, pois muitas vezes estes últimos estão associados a revistas e jornais que pertencem a grandes sociedades, que, por sua vez, são detentoras de parte das editoras que publicam os livros que os críticos literários “criticam”.

No entanto, também não podemos esquecer que a crítica – e nela incluída a literária – nunca foi muito bem vista no nosso país. A crítica literária – quando é a sério – nunca é vista como crítica: ou é ataque pessoal ou bajulação.

 

2.

Mas, qual o real impacto da crítica literária?

Penso que a crítica literária tem muito pouco impacto, pois poucos são aqueles que, realmente, lêem crítica literária. Ela poderá, uma ou outra vez, suscitar uma ou outra polémica, pois o visado pelo texto do crítico pode não apreciar muito aquilo que leu. É claro que isso acontece muito poucas vezes (pelo menos com o conhecimento geral do público).

Na realidade, o crítico literário tem algo que me atrevo a designar de poder-nulo, isto é, o crítico literário não tem qualquer poder sobre as reais decisões do leitor. O seu “poder” está limitado a um grupo restrito (muitas vezes composto por amigos ou conhecidos com quem se partilham afinidades), o que torna esse “poder” vazio de qualquer conteúdo. Se o “poder” do crítico literário fosse real, se tal acontecesse, os “tops” de vendas seriam compostos por livros completamente diferentes daqueles que encontramos numa qualquer livraria generalista.

Os livros mais vendidos não são aqueles que foram objecto de uma crítica literária positiva ou negativa (não podemos esquecer que uma crítica literária negativa pode gerar um aumento nas vendas de um livro), mas sim de uma campanha de marketing agressiva, com ofertas absurdas ao leitor. A crítica literária foi substituída por capas de livros vistosas, sinopses apelativas.

Actualmente, a “crítica literária” não tem qualquer valor intrínseco: antes extrínseco. Ela serve apenas para encher colunas de jornais e páginas de revistas com o pedantismo – e em certos casos com a ignorância – de alguns críticos ditos literários.

 

3.

Há, ainda, o relativo consenso em torno dos livros que são alvo de crítica literária. Parece que nenhum crítico literário quer ferir susceptibilidades. A título de exemplo – e falando do caso português –, os livros de António Lobo Antunes. Poucos são os críticos literários que “arriscam” uma crítica negativa a um livro de António Lobo Antunes. Recentemente, penso que só Pedro Mexia o fez. Alguém curioso pode verificar o que digo: basta numa livraria folhear, com alguma atenção, o livro António Lobo Antunes: A Crítica da Imprensa.

Outro caso paradigmático é o de Pedro Chagas Freitas. No caso deste autor a questão é ainda mais complexa: nenhum dos seus livros reúne o consenso da dita intelligentsia literária, no entanto, todos os seus livros têm reedições sucessivas, encontram-se em todo o lado, e é raro (ou até impossível) encontrar uma crítica na chamada imprensa generalizada (não deixa de ser curioso que o próprio autor já disso se queixou).

Atrevo-me a dizer que falta alguma “honestidade intelectual” (expressão que abomino, mas que, neste caso, tenho de utilizar) à crítica literária portuguesa. Novamente, e a título de exemplo, o livro 2666 de Roberto Bolaño. O consenso generalizado em torno desta obra de Bolaño roçou o ridículo. Num texto publicado a 31 de Outubro de 2009 (no blogue Antologia do Esquecimento), Henrique Manuel Bento Fialho dá conta da lamentável revisão a que o livro de Bolaño foi sujeito. Não me lembro de ler a nenhum crítico literário “encartado” uma referência em relação a isso. Muito pelo contrário. E, daí, talvez se entenda o silêncio.

 

4.

A bem da verdade, actualmente, a crítica literária em Portugal não existe, porque não é praticada. Falta-lhe algo fundamental: o contraditório.

 

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