Frank 2

para Penny Smith

não percebo nada
destes policiais de que gostas
afinal
porque é que ela o matou?

porque o amava mãe
porque o amava
mas não era recíproco

que ideia tão parva
porque raio
haveria uma mulher
de fazer isso?

já te disse
que ele
teve quatro filhos?

quem mãe
quem é que teve quatro filhos?

casou-se e teve quatro filhos
há quem lhe dê para isso
se queres saber o que acho
quatro é um exagero
mas pronto
agora nada a fazer
ele já morreu

de quem é que estás a falar mãe?

do Frank
ele casou-se
e morreu
mas antes disso
decidiu ter quatro filhos

mas eu achava
que não sabias
quem o Frank era

e não sei

e ambas se riram
e ficaram um pouco mais
a ver televisão

Nota: O poema “Frank” pode ser encontrado aqui e foi incluído no livro Por favor não dê de comer aos unicórnios

José Pedro Moreira, Leituras de 2021

Esta é a lista dos dez livros que mais prazer me deu ler este ano. Não é a lista dos dez livros culturalmente mais significantes ou dos melhores que eu li este ano (o leitor poderá encontrar essas listas noutro lado) – hedonismo é uma boa maneira de uma pessoa se meter em problemas na maioria das situações, leitura é uma das raras actividades em que julgo que esta prática deve ser pelo menos tolerada.

É saudável reconhecer que é praticamente impossível fazer uma lista destas sem cair no ridículo. Tentem escrever um parágrafo a recomendar a leitura do Ana Karenina sem cair em lugares comuns. Eu certamente não consigo e resolverei o problema evitando-o. Estes livros são muito mais inteligentes do que o que quer que tenha a dizer sobre eles, por isso o melhor é não dizer muito. O senhor leitor imagine antes uma vénia silenciosa e veneranda.

 Fiz primeiro uma lista dos vinte livros de que mais gostei de ler este ano. Não foi fácil. Foi mais difícil ainda reduzir a lista a um total de dez. Incluo em baixo os outros dez livros que constavam na lista inicial.

 Incluo também uma lista de alguns livros que saíram em 2021 e que estão no topo da minha pilha de leituras.

 

Os meus dez livros de 2021

 77 Oníricas, John Berryman (trad. de Daniel Jonas)

Concisa, irónica, inventiva, auto-paródica – a poesia de John Berryman é uma das minhas descobertas do ano. E a tradução de Daniel Jonas é soberba: informada, culta, inventiva, uma tradução de poesia por um bom poeta. Cá fica um poema:

 

75

 

Turning it over, considering, like a madman
Henry put forth a book.
No harm resulted from this.
Neither the menstruating        stars (nor man) was moved
at once.
Bare dogs drew closer for a second look

and performed their friendly operations there.
Refreshed, the bark rejoiced.
Seasons went and came.
Leaves fell, but only a few.
Something remarkable about this
unshedding bulky bole-proud blue-green moist

thing made by savage & thoughtful
surviving Henry
began to strike the passers from despair
so that sore on their shoulders old men hoisted
six-foot sons and polished women called
small girls to dream awhile toward the flashing & bursting tree!

 

75

Examinando-o, considerando-o, como um louco
o Henry publicou um livro.
Nenhum mal adveio disso.
Nem as menstruadas   estrelas (nem o homem) se comoveram de súbito.
Cães em pêlo aproximaram-se para ver melhor

e praticarem as suas amigas manobras ali mesmo.
Refrescada, a casca rejubilou.
As estações chegaram e partiram.
As folhas caíram, umas poucas.
Um quê de extraordinário neste
entroncado unido volumoso verdazulado húmido

coiso obra do selvagem & prudente
sobrevivente Henry
começou a espantar os passantes do desespero
tanto que das suas espáduas purulentas os velhos desfraldaram
filhos de metro e oitenta e mulheres polidas chamaram
meninas a um pouco de sonho ante o cintilante & viçoso lenho!

 

 

Anna Karénina, Tolstói

E cá estamos, Anna Karénina. Serei breve. Uma das releituras deste ano. Li-o pela primeira vez quando saiu a tradução de António Pescada (Relógio d’Água), que recomendo. Um dos melhores livros que alguma vez li. E achei-o melhor ainda desta vez. “Li”-o desta vez numa versão audiobook, interpretado por Maggie Gyllenhaal. Ela é excelente. E há uns dias atrás vi o The Lost Daughter (Netflix, 2021), realizado por ela, uma adaptação de um romance de Elena Ferrante. Também muito bom. Mas não tanto quanto o Anna Karénina. E pronto, cá temos o Anna Karénina despachado num parágrafo.

 

A swim in the pond in the rain, George Saunders

Um livro recomendado por um amigo que é professor de Literatura Russa e que sabe o quanto gosto de Dostoiévski, Tólstoi e Tchékhov (Turguéniev não tanto). Este é talvez um dos livros mais difíceis de descrever na lista. O livro inclui um conto de cada um dos mestres russos (Dostoiévski, Tólstoi, Tchékhov e, bem, Turguéniev), cada conto é seguido de um texto ensaístico interpretativo. Aqui é que os problemas começam.

George Saunders é um leitor inteligente e perspicaz que ama estes textos e que os relê há anos, que os conhece de cor, que é capaz de ver coisas que não vemos.

George Saunders é um professor de escrita criativa, que ensina estes textos há anos, que há anos que dialoga com alunos sobre estes textos.

George Saunders é um autor, que há anos que procura soluções práticas para as questões narrativas que enfrenta.

Os ensaios são escritos de todos estes pontos de vista. Mas o leitor atento toma a primazia.

Muitas vezes lemos de maneira apressada. Somos sobranceiros a responder às questões que o texto invoca, por vezes negando a existência da pergunta. George Saunders é o leitor que nos faz voltar atrás e olhar com mais atenção. Que nos interpela com questões como “Que história está a ser contada aqui? Se é esta história que está a ser contada porque é que o escritor fez isto e não aquilo? Não seria muito mais fácil contar esta história de outra maneira? Ou talvez não seja essa a história que esteja a ser contada?”

É sobretudo um exercício de amor partilhado. Do prazer da descoberta de grandes textos e da exegese literária enquanto actividade social. Perdão se isto faz com que o livro pareça um bocado para o académico. É-o apenas no melhor dos sentidos: recordou-me de um seminário de Teoria de Literatura que assisti há mais de uma década atrás. Não interessa o tema, era no fundo um pretexto para um pequeno grupo de estudantes (não éramos mais de meia-dúzia) e a professora lerem grandes textos (Kafka, Goethe, Sófocles, etc.) e depois passar as quatro horas semanais do seminário a falar sobre eles. Esta foi uma das melhores experiências do meu tempo enquanto estudante universitário. Uma aprendizagem alegre, que prosseguia em debates entre cigarros na pausa para café, que fazia a imaginação pulsar rápido, que nos faz pensar em coisas que sempre estiveram presentes mas que não estávamos equipados para ver, ou, se víamos, que não éramos capazes de articular. Senti o mesmo ao ler este livro.

Criminal (série de banda desenhada), Ed Brubaker (argumento), Sean Phillips (ilustração)

O Criminal original (2006-2010) é uma das minhas séries de banda desenhada preferida. Como a descrever? Uma colecção de histórias de submundo do crime que recicla uma série de tropos do género heist. Há o assalto a um banco que corre mal, o carteirista toxicodependente, o rapaz que cresce neste ambiente e que tenta fazer nome, o patriarca violento, etc. Mas a consciência dos códigos do género nunca cai na caricatura, e as histórias que emergem são credíveis e excepcionalmente bem escritas. É consensual que Ed Brubaker se tornou o grande mestre da banda desenhada de crime. A meio do ano consegui comprar todos os números disponíveis da série mais recente (2019-...) com desconto. Aproveitei para reler os volumes originais e outras coisas de Brubaker: Gotham DC (um policial no mundo de Batman), The Fade Out e Fatale. Gotham DC é excelente, os outros dois são bons, mas estão um pouco mais abaixo em termos de qualidade. Criminal é um clássico.

Sabrina (graphic novel), Nick Drnaso

Comprei o Sabrina há um par de anos atrás. Na altura tinha sido o primeiro graphic novel a ser nomeada para o Booker Prize, e foi recebido por um entusiasmo crítico invulgar para um livro de banda desenhada e o autor foi exaltado como um prodígio (tinha 29 anos quando o livro saiu). Li finalmente o livro no início de 2021. Nick Drnaso é um prodígio. Se tivesse de reduzir esta lista a três livros este seria um deles.

Uma jovem está em casa dos pais, a tomar conta do gato. A irmã, Sandra, vem a casa, as duas irmãs conversam, partilham histórias de adolescência, falam sobre passarem férias juntas. Sandra deixa a casa. É a última vez que vê a irmã. Na cena seguinte Calvin, um soldado da Força Aérea, vai esperar o seu amigo Tommy, um jovem introvertido, ao aeroporto. A namorada de Tommy desapareceu há um mês, e Calvin, recentemente divorciado, convida-o para vir para a sua casa. A namorada de Tommy é Sabrina, a irmã de Sandra. Pouco depois descobrimos que Sabrina foi raptada e sofreu um fim violento. E, no entanto, esta não é uma história sobre um crime, mas um estudo sobre como um crime afecta os que são próximos da vítima, como lidam com a culpa de sobreviver à morte de alguém próximo. Torna-se igualmente uma história sobre a experiência de perda no mundo hiper-mediatizado de hoje, quando a notícia da morte se torna viral, e tema de uma série de teorias da conspiração.

Slaughter House-Five (graphic novel), Ryan North e Albert Monteys (a partir do romance de Kurt Vonnegut)

Mais do que “adaptação”, uma reescrita de Slaughter House-Five. Imensamente divertido e trágico. So it goes. Conhecia o trabalho de Ryan North da série da Marvel The Unbeatable Squirrel Girl, que ganhou uma série de prémios há uns anos atrás. Na altura li o primeiro volume e não me disse grande coisa. Mas Slaughter House-Five é tão bom que tenciono dar outra oportunidade a The Unbeatable Squirrel Girl em 2022. 

String Theory , David Foster Wallace

Os ensaios de Foster Wallace sobre ténis. Voltar a jogar ténis foi das melhores coisas que me aconteceu em 2021. Voltei a apaixonar-me pelo jogo, tornei-me membro de um clube local, comecei a jogar pela equipa do clube, e dei por mim a ler bastante sobre ténis. O livro de David Foster Wallace é o melhor livro sobre ténis que já li. É um dos raros casos de um livro sobre ténis que ama o jogo tanto quanto a linguagem, que invoca erudição filosófica e cultura pop para devidamente louvar a minúcia da excelência atlética. O ensaio sobre Federer é lendário (pode ser lido aqui). O meu preferido é o ensaio sobre Michael Joyce, um jogador que nunca entrou no top 50 do circuito ATP, mas que Foster Wallace admira e que acompanhou durante algumas semanas.

O primeiro ensaio do livro é sobre a experiência formativa de Foster Wallace enquanto jogador de ténis. Nas suas palavras, Foster Wallace foi “a near great junior tennis player”. Quando faleceu, os ex-colegas da equipa de liceu juntaram-se e dedicaram os courts onde costumavam treinar em sua memória. Isto nunca falha em me comover.

The Dream of Enlightment: The Rise of Modern Philosophy, Anthony Gottlieb

O segundo volume de uma empresa começada com The Dream of Reason, a criação de uma história da Filosofia Ocidental acessível a um público não especializado. O The Dream of Reason, que cobria o pensamento filosófico desde a Grécia Antiga até ao Renascimento, estava na minha lista dos livros do ano em 2017; The Dream of Enlightment, que começa em Descartes e vai até à Revoliução Francesa, não decepcionou. Resumir as ideias de Descartes, Hobbes, Rousseau, Locke, Espinoza e Hume em narrativas coerentes, elegantes e acessíveis é um feito acessível apenas a uma inteligência excepcionalmente organizada, fazê-lo com sentido de humor é quase um milagre. Aguardo impacientemente a publicação do terceiro volume.

 Tutti Frutti, Marco Mendes

O livro reúne as bandas desenhadas de Marques Mendes publicadas diariamente no Jornal de Notícias, entre os dias 3 de junho e 23 de dezembro de 2018, e ainda as bandas desenhadas rejeitadas. Peças humorísticas, autobiográficas, políticas, de uma enorme beleza.

Wolf Hall, Hillary Mantel

Este livro é fácil de enquadrar: o primeiro livro da trilogia sobre Thomas Cromwell, Wolf Hall segue a carreira de Cromwell durante a queda do seu patrono, o Cardeal Wolsey, e a sua ascensão a figura central na corte de Henrique VIII durante o processo que culminaria com o coroamento de Ana Bolena. Romances históricos que se comprazem com intriga palaciana e detalhe salaz abundam, mas a excelência da prosa de Mantel transcende o que é circunstancial. A maior surpresa do ano. O livro ganhou uma série de prémios e há anos que amigos me andam a recomendá-lo, ainda assim não esperava que fosse tão bom. Nem tão engraçado. Contém alguns dos melhores diálogos que li nos últimos anos. E comecei 2022 a ler o segundo volume da trilogia, Bring up the Bodies.

Os meus outros dez livros de 2021

Livros de 2021 no topo da minha lista de leituras para 2022

'Hoje não' de Ana Margarida Matos

Ana Margarida Matos, Hoje não, Chili com Carne, 2021 (banda desenhada). O livro foi vencedor da oitava edição do concurso “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD!” organizado pela editora Chili com Carne

Um diário da pandemia? Não propriamente. Uma encenação de um diário. Cada dia capturado no confinamento de uma página por meio de uma imagem (ou conjugação de imagens) e um verbete diarístico. Os mecanismos narrativos são a conjugação destes elementos – imagens, marcadores textuais, uma data – e as dinâmicas da sequencialidade – como os dias se relacionam entre si.

A pandemia, o sentimento de estar preso num mesmo lugar, num mesmo dia, imposto pela perda de elementos referenciais distintivos, ansiedade em relação ao futuro académico e profissional (a voz que nos fala é a de uma estudante a terminar a licenciatura em Belas Artes), indagações/apontamentos sobre a natureza da arte, a procura e formação de uma entidade artística, o registo de uma dieta que a minha sensibilidade vegetariana não pode deixar de reprovar,  estes são os temas encenados para nós no espaço confinado de cada página.

“Ingenuidade” é uma palavra traiçoeira. Sim, algumas observações são óbvias, “ingénuas”. Mas a maioria das nossas palavras são óbvias ou ingénuas. A nossa reacção à notícia do aumento do número de mortes diárias é óbvia, o sentimento de apreensão de um estudante de licenciatura prestes a entrar no mercado de trabalho é óbvio. A nossa previsibilidade é um bilhete de entrada num espaço partilhado. Mas se por um lado os marcadores textuais nos guiam para lugares públicos, as representações visuais encenam experiências mais específicas: a íntima curiosidade do artista que explora o espaço quotidiano e procura maneiras de o representar. O livro vive sobretudo desta tensão entre uma realidade partilhada, previsível (“mais uma bifana ao almoço”, “o Chega saiu-se bem nas eleições”, etc.), e a intimidade do olhar artístico (continuamente à procura de reinventar/re-representar o espaço). E não há nada de “ingénuo” na encenação desta tensão: é um esforço deliberado, complexo e inventivo, e o resultado é uma obra ao mesmo tempo pessoal e partilhada, empática e íntima.

Por favor não dê de comer aos unicórnios - Recensão

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Longe vão os tempos em que se escrevia ou para «tornar visível o mistério das coisas» (Vergílio Ferreira) ou para, num ato voluntário de militância, mudar o rumo do mundo (Sartre e marxistas, por exemplo). Hoje temos a escrita ortopédica (os celebrados livros de autoajuda), a escrita best-seller (nascida para vencer) ou a escrita curricular (caça às bolsas académicas ou prémios reservados a génios da terrinha). José Pedro Moreira, indiferente ao incandescente, quis, neste livro, ainda mais do que nos anteriores, conversar com os leitores; sem dar lições, fazer revelações esmagadoras ou renovar a língua portuguesa, injetando-lhe metáforas-dinamite. O Zé quis falar connosco, contar-nos uma história engraçada ou perder-se um pouco, de forma reservada, em digressões de autodescoberta (neste livro parece preferir estimular a vida fora de si). Mas com isso marca uma posição no mundo da poesia: a de que devemos pontuar a aparente banalidade da vida com um sentido que a eleve à altura da sagração (cuidado, o sagrado nem sempre é grandioso). E é por esta razão que, embora paradoxalmente, «um unicórnio significa unicórnio». Ou seja, as coisas, todas elas, até a marquise de Cristiano Ronaldo ou O Beijo de Klimt, são o que são, fenómenos puros antes de nos lançarmos sobre eles a golpes de apreciação. É verdade que, por feitio académico, José Pedro Moreira recupera amiúde parcelas da Grécia antiga (às vezes misturando-as com a carne viva da atualidade), mas também aí quer apenas mostrar que as coisas aconteceram de determinada maneira. Tudo isto negociando mais «as pequenas derrotas» do que as jogadas épicas. Ou, regressando à sua condição de e(i)migrante, um estrangeiro que gostaria, como quase todos, de sentir-se um pouco menos estrangeiro, levando o processo de aculturação a sério.

Assim, este livro revela um Zé de braços abertos (embora não escancarados), desviando-se da tendência de se colocarem os braços à frente do peito, formando cancelas, para escrever poesia para dentro (permanece a ideia, nascida num qualquer decreto real, de que o interior é mais nobre do que o exterior). Mais heterográfico do que autográfico, equilibrando-se entre o onírico e o ensaio fenomenológico, o unicórnio e a égua do tio Manel. Sem nunca arriscar um poema onde umas palavras a mais deitassem tudo por água abaixo. É a partir disto, parece-me, que se justifica o discurso direto do título, um pedido singular, feito a cada leitor, para que não alimente unicórnios. Isto porque mesmo se a codificação poética é bastante livre (mas só aparentemente vive no esplendor do arbitrário), as árvores não podem crescer todas tortas.

José Pedro Moreira convoca Bertrand Russell para uma epígrafe, esse progressista conservador que crê que a boa vida só pode ser vivida numa boa sociedade. Uma sociedade com ou sem unicórnios? Os que não conseguem aguentar-se na caixa podem contribuir para uma boa sociedade? Não serão os destravados, os unicórnios desta vida, um empecilho social? Devemos, então, matar os unicórnios à fome? Talvez. Em «Esclarecimentos sobre a natureza dos cavalos» escreve «esperar / que a folia dos unicórnios passe / que o mundo regresse / a um ritmo / mais natural».

É para contribuir para a ordem que o Zé pega no passado trágico, e cruel, com pinças morais, mantendo uma certa distância e escolhendo facto a facto, como quando usamos uma pinça de cozinha para tirar croquetes de um tabuleiro que acabou de sair do forno com metade da fornada queimada.

Em «O belo jogo», o de uma bola chutada pelos pés e pela cabeça (a interdição de a maioria dos jogadores usarem as mãos, membros precisos, foi uma invenção perversa), é um poema que liga bola e guerra, um tratado sobre beligerância e camaradagem. A coragem e a honra matam os melhores nos piores cenários, mas as rivalidades são o cimento clubístico.  No «Esclarecimento sobre a natureza dos unicórnios», trata-se mais de heurística do que de hermenêutica, de nos levar a pensar sobre o ser de um não-ser (o unicórnio é aquilo que não é) do que descrever esse fantasma que agora designa, na boca dos políticos pós-modernos, empresas com um índice muito elevado de fracasso. Contudo, José Pedro Moreira arrisca dizer que foi avistado um na «fronteira irlandesa», esse limiar chuvoso entre amigos/inimigos.

Quando se atreve a um pouco de crítica social, escolhe os «idiotas» para justificar a imperfeição do mundo. Aos idiotas falta autoconceito e sentido da mudança, é assim que se perpetuam. Não são especialmente repulsivos, mas fazem com que haja «dias / em que até / as coisas mais simples /são impossíveis». E há também, prolongando poemas de livros anteriores, o mundo da poesia que se crê para além bem e mal, não por grandeza, mas por bazófia, como quando a Sr.ª Bouvard «decidiu organizar / um festival de poesia / e pediu-nos / um saco de livros». A Sr.ª esteve acima da devolução e do agradecimento, porque o seu tomo poético causou, como era previsível, uma «enorme comoção / entre os guardiães / da Palavra Poética» («Ascensão»). Quem causa comoção a tão altas figuras deve receber, sem gratidão, todos os sacos de livros do mundo. Talvez por isso volte a aparecer no final do livro em «Apocolocintose», ganhando, como era de esperar, um prémio atribuído por um júri loucamente sobrecriterioso. O sistema policial da poesia regressa um pouco depois em «Subsídios para a criação de uma polícia poética», há apelos pungidos a «uma entidade isenta / que certifique / a verdadeira poesia […] aplique coimas / aos que escrevem poemas / sobre escrever poemas».

Irónico, auto-irónico, o Zé faz eco de algumas críticas, reais ou imaginárias, ao seu livro anterior de poesia: Porque canta um pequeno coração (não (edições), 2019). A determinada altura diz: «este poetastro português estrangeiro / ferreiro de versos / sem música nem verdade / gente como ele / não faz cá falta» («carta de um leitor»). Esta espécie de metapoesia tem continuidade numa didascália de «Esclarecimento sobre a natureza dos cavalos»: «o poema / não é / uma esfinge / à espera / de ser interrogada / é um campo de batalha / que deve ser conquistado / e todos os métodos / são legítimos». Há também, num relâmpago autobiográfico que ajuda (será?) a perceber o ofício de poeta, uma genealogia da sua vida acompanhado por Dostoievski.

Por favor não dê de comer aos unicórnios, parcialmente resumido no que acabei de escrever, parece abrir para uma nova ecologia a partir de «Graceful errors». Li a partir daí uma poesia amiga do evanescente (exceto «Apocolocintose» e «Casa»). Mesmo se há «a certeza irracional / de que o mundo / obedece a leis fixas / que avança / do caos para a ordem» («O prémio lá no fim»). Pergunta-se pelas coisas, com nostalgia, e resta cansaço. Os mortos, em «Raquel», são guardados em caixas e «uma vez por ano /abrimo-las / para deixar / entrar o ar».

Por último, num desfecho que parece dizer «não levem isto do cansaço, do irrelevante e da morte muito a sério», José Pedro Moreira compõe um quadro sobre a alegria de viver, esses momentos mágicos, e até um certo ponto negacionistas (como se poderia viver sem alguns filtros hedonistas?), que pegam nas coisas banais do dia a dia e lhe dão um movimento epicurista. Em «Casa», começamos com a nostalgia das origens, cores, cheiros, palavras, família. Mas depois um riso semelhante ao da criança de Zaratustra enche os pequenos corações exilados «e a Tatiana / verte nos copos / o que resta / da garrafa de Papa Figos». 

Make Holywell great again [um poema do novo livro de José Pedro Moreira]

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para Shirley e Gordon Clark

 

1

quando terminou
a peça de Clara Schumann
e depois dos aplausos
o pianista se levantou
para apresentar a obra
de uma jovem compositora
Natalie Klouda
(n. 1984)
Mrs. Regan
agora convertida
em futura viúva
de um matemático britânico
não conteve
a sua indignação
e abandonou a sala em protesto
contra o progressivo aviltamento
dos padrões artísticos
da Holywell Music Room
a mais antiga
sala de concertos
da Europa
espalhando
à sua passagem
a redolência violenta que leva
alguns de nós
a evitar
o lado este da sala

 

2

o que me trouxe à memória
o dia
em que pela primeira vez ouvi
os Carducci Quartet
tocarem
o Oitavo Quarteto de Cordas
de Shostakovitch

Mrs. Reagan
alardeava triunfante
um cachecol vermelho
ainda mais nauseabundo

insuportável
aquele Shostakovitch
porque é que ele não se matou logo
e nos poupou o sofrimento?
mas o Beethoven que tocaram a seguir
era muito agradável

 

3

debatendo-se com os sintomas iniciais
de esclerose lateral amiotrófica
forçado a tornar-se membro
do Partido Comunista
Shostakovitch
fechou-se num apartamento em Dresden
e no espaço de três dias
12 a 14 de Julho de 1960
compôs
o que ele julgara ser
uma nota de despedida
um epitáfio que fala
da alegria de noivos
suados e exaustos
mas por fim reunidos
na conclusão
da mitzvah tantz
de aventureiros de mascarilha
em arriscadas cavalgadas nocturnas
por entre bosques românticos
da mão do assassino
seca e tremente
cada vez mais incapaz
de tocar o piano

no centro está
um homem sozinho
fechado numa casa
a chorar
a sua miséria

lá fora
chovem bombas

quando as iluminações cessarem
da cidade
restará apenas
a linha do violoncelo

 

 4

a saída é sempre penosa
anciãos venerandos
recusam deixar o assento
arrastam os pés em protesto
adiando o mais possível
pagar o preço
que a cidade impõe
aos que se refugiam
na terra da música

se um dia houver um fogo
morremos aqui todos
diz-me o Professor Clark
e sorri
um homem sábio
sabe
como negociar
as pequenas derrotas
como quando
teve de correr pelas ruas de Tóquio
em fuga
de um grupo de bacantes
em frenesim
por o terem confundido
com Harrison Ford

chegados por fim à rua
a Shirley abraça-nos
até para a semana meus queridos

e de cada vez
nos sentimos
um pouco menos estrangeiros

José Pedro Moreira, Por favor não dê de comer aos unicórnios, não edições, Junho de 2021

Sobre o autor

Nasceu em Lisboa, em 1983.

Vive em Oxford.

Publicou traduções do 'Agamémnon' de Ésquilo (Artefacto Edições, 2012) e de Catulo (juntamente com André Simões, Livros Cotovia, 2012). Em 2020 foi publicada a sua tradução dos 'Hinos Homéricos' (juntamente com Tatiana Faia e Miguel Monteiro).

É um dos fundadores e editores da Enfermaria 6 (www.enfermaria6.com).

Em 2018 publicou o seu primeiro livro de poesia, 'Gatos no Quintal'. O seu segundo livro, 'Porque canta um pequeno coração', seria publicado na Colecção Mutatis-mutandis da não (edições) em 2019.