CARTA ABERTA À EUROPA

Lebre, Fotografia de Jim Higham, the wildlife trusts, Reino Unido

David Harsent
Tradução de Tatiana Faia

Nasci em 1942, o pior ano da guerra. O meu local de nascimento foi uma vila no Devonshire. Contaram-me histórias do bombardeamento dos portos de Devon e de como os aviões de combate que acompanhavam os bombardeiros metralhavam alvos civis aleatoriamente. Um dos alvos foi o hospital numa casa de campo onde eu tinha nascido um dia antes. A minha mãe e as outras mulheres, cada uma com um recém-nascido, abrigaram-se debaixo das camas. 

As minhas primeiras memórias foram, em parte, da guerra, relatos de guerra e testemunho de guerra. Falaram-me do pai da minha mãe, atacado com gás na Grande Guerra; sobreviveu mas morreu jovem por causa disso. O meu pai foi gravemente ferido na Segunda Guerra Mundial e nunca recuperou totalmente das lesões. Levou-me algum tempo até eu entender que o seu trabalho do dia a dia, durante a guerra, era matar e correr o risco de ser morto; que a emoção mais prevalente nele seria o medo. Cada dia durante a guerra dele: medo. Cada dia, o girar de alguma espécie de moeda celestial. À medida que eu crescia, estava mais ou menos consciente da longa lista de guerra que mais ou menos continuamente se sucederam à Segunda Guerra. Como muitos da minha geração, saí para a rua para protestar contra a guerra no Vietname. Agora, como então, tenho em mente versos do poema de Robert Lowell “Acordar cedo a um domingo de manhã:” “... paz às nossas crianças quando caem/ na pequena guerra aos calcanhares da pequena/ guerra...”

O meu trabalho, não tendo por assunto principal a guerra, muitas vezes contém a sua sombra. Em 2005, publiquei Legião. A sequência que dá título ao livro compõe-se de vozes de várias zonas de guerra. A sequência cresceu e desenvolveu-se, creio, a partir de ritmos e imagens das versões inglesas que eu fiz dos poemas escritos por Goran Simic quando ele e a sua família estavam debaixo do cerco em Sarajevo. Depois de ler Legião Seamus Heaney perguntou-me, “Onde encontraste todas estas vozes?” Ele referia-se à variedade dos poemas: alguns tiravam as suas narrativas e imagens da Grande Guerra, alguns da Segunda Guerra Mundial, alguns, certamente, da Guerra dos Balcãs, enquanto outros eram relatos en passant da brutalidade da guerra: histórias específicas contadas por vozes específicas. Recentemente publiquei as minhas versões inglesas de poemas escritos por Yiannis Ritsos quando ele estava em campos de prisioneiros e em prisão domiciliária durante a época da junta militar na Grécia na década de 60 e no início da década de 70. Ocorre-me que, em todas as coisas, é difícil evitar a noção de conflicto; ocorre-me que sentir isso pode ser uma tendência humana inescapável.

Que guerra, e a sombra da guerra, pareça cruzar o meu trabalho não me surpreende; a poesia é o meu modo de interpretar o mundo. Contudo, os quatro longos poemas que formam, por assim dizer, a espinha da minha colecção Canções do Fogo, dão relatos diferentes mas relacionados de uma guerra mais aterrorizadora e destrutiva do que conflictos armados. A primeira Canção do Fogo refere-se a Anne Askew, uma mártir protestante que foi queimada numa fogueira por heresia. A voz de Anne, na minha versão do seu martírio, é profética. Num encontro num sonho com Anne, o narrador do poema está perto das chamas que a envolvem, e diz:

... a única coisa que me consegue dizer através da fornalha, enquanto
me inclino para ela, é
sim, será fogo, será fogo, será fogo...   

A profecia de Anne Askew fala de uma guerra em que somos todos combatentes, onde não há linha da frente, e de onde não parece haver retirada. É a guerra à natureza.

***

Essa guerra está em curso há muito tempo. A 14 de Agosto de 1912 um jornal na Nova Zelândia imprimiu um artigo em que avisava sobre o efeito de queimar carvão no clima da Terra. Isto foi ignorado. O livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa foi publicado cinquenta anos mais tarde. Referia-se ao uso irresponsável de pesticidas e ao efeito sobre a vida das aves: o título fala por si. De novo, ignorado. Vinte anos ou assim depois disso, eu assisti a uma série de conferências que se concentravam em momentos de viragem que nos trariam a uma circunstância quando o aquecimento global se tornaria crítico. Ignoradas, elas também. E agora esse momento chegou. O mundo natural, a vida no planeta terra, ainda sob ataque, está perigosamente perto de se tornar insustentável. Não poderíamos ter chegado a esta crise na natureza, e continuarmos a ignorá-la, se não tivéssemos perdido noção da natureza, com as criaturas da terra, com a própria terra.

James Lovelock propôs a hipótese de Gaia: que o planeta que habitamos, e as criaturas com que o partilhamos, formam um sistema interdependente, harmonioso e benigno. A aparente recusa da humanidade de permitir a sua harmonia, de ser parte dela, parece advir da noção de que ela deve servir as nossas necessidades, de que pode ser explorada como e quando escolhemos. Não permanecemos, como deveríamos, espantados diante dos mistérios subtis do mundo natural.

Atraem-me as imagens de pássaros em pleno voo. Atraem-me particularmente aves de rapina. Escrevi um poema – Beth de Bowland – sobre um tartaranhão-azulado (uma espécie protegida) ilegalmente abatido numa charneca de perdizes. O negócio de luxo de matar perdizes em série, forçando-as a levantar voo, não tolera predadores naturais: mais provas de dano na nossa relação com a natureza. Atrai-me a lebre, o mito e a lenda da lebre como metamorfa, familiar da bruxa, a sua história cultural, a criatura viva como encarnação desses mistérios. Escrevi uma sequência de poemas – “Lepus” – que identificava a lebre como uma figura ardilosa que, num poema intitulado “Lebre como mau presságio,” prevê um futuro sombrio se as provas da destruição do ambiente continuarem a ser ignoradas. A lebre fala:

... estas coisas que, não importam
os vossos sinos e velas, não importam as vossas meias-
medidas, os vossos passos atrás, hão-de vir, hão-de vir,
hão-de vir. 

Só agora reparo que o último verso, escrito doze anos antes, tem o mesmo padrão rítmico da profecia de Anne Askew.

A perseguição de tartaranhões-azulados colocou essa ave entre as nossas espécies mais ameaçadas. A destruição de habitats é a causa da severa diminuição da população das lebres do campo; e a caça ilegal de lebres com cães continua ainda. A ameaça a estes animais em particular é, para mim, particularmente emblemática; mas a lista de animais quase extintos é longa. O declínio dessas espécies danifica o ecossistema irrevogavelmente. Isto inclui os insectos. Se os polinizadores morrerem, morreremos nós. Estas ameaçadas são criadas pelo homem. Colocámo-nos, a nós, entre as espécies em risco. O nosso ataque à natureza parece por vezes análogo a um desejo de morrer.

Há várias décadas, as companhias de combustíveis fósseis fizeram as suas próprias avaliações do efeito ambiental do dióxido de carbono na atmosfera. Os seus cientistas concluíram que queimar combustíveis fósseis “causará efeitos ambientais dramáticos,” e acrescentaram que o problema potencial é “grande e urgente.” As suas opiniões foram suprimidas pelas companhias que eles representavam. Cientistas que estudam o planeta têm sido, desde há anos, claros acerca do que aconteceria se a guerra ao planeta continuasse. Diz-se que estamos a meio da Sexta Grande Extinção; é inegável que isto é completamente causado por actividade humana; pouco ou nada tem sido feito para abrandar ou prevenir o seu avanço. Porquê?

É aparente indiferença à extinção no Holoceno a humanidade a aceitar, de facto, que é demasiado tarde? Que o modo como o mundo funciona não pode ser modificado, embora saibamos como isso pode ser feito ou, pelo menos, começar a ser feito? Que à medida que os últimos animais, peixes, insectos, desaparecem da terra, continuaremos a assistir à televisão, torcer pelas nossas equipas de futebol, entrar em aviões, ouvir, fazer compras, celebrar o nascimento dos nossos filhos... Linhas de produção irão continuar – até à última centelha de energia – a fazer carros, frigoríficos, ares-condicionado? Madeireiros hão-de chegar ao último grupo de árvores na floresta tropical? Quintas de produção intensiva hão-de continuar a engordar o seu gado, e os matadouros a matar? 

Ao escrever uma carta à Europa – e eu considero-me europeu, apesar do desonesto interesse próprio que encontrou eco nas tendências xenófobas e racistas no meu país e causou o Brexit – penso particularmente nos sistemas de governança europeus. Pode ser, como por vezes é dito convincentemente, que o mundo seja governado por homens malevolentes; que a ganância e o poder andam de mãos dadas; que a história humana mostra indícios de ciência irresponsável rapidamente seguida de tecnologia irresponsável. Mas tal como a ciência, a tecnologia e – crucialmente- o dinheiro para abrandar e parar o que só pode ser descrito como a morte térmica do planeta, tem de haver, entre essas pessoas que têm poder e influência governativas, umas quantas que consigam ver a beira do precipício em que estamos. O meu apelo ou, melhor, o dos que estão por nascer, é para o mundo. Mas esta carta é para a Europa.

A profecia de Anne Aske era, como todas as profecias, uma visão: uma visão negra, como são as minhas quando considero os relatórios da frente ambiental. Uma visão que, a cada dia, tento deixar de ver é a de um planeta esvaziado de toda a vida, onde um ecrã alimentado a nada exceptuando um vasto resíduo de ganância continua a registar o aumento sem limites na riqueza colectiva das elites passadas de um mundo desaparecido, o nosso único legado, enquanto o dinheiro gera dinheiro gera dinheiro.

Apenas quem governa pode fazer com que estas visões se esbatam. Esta é uma carta à Europa mas, em particular, àqueles que governam a Europa. Tem de haver uma mudança significativa e muito em breve. Alguém tem de assumir a responsabilidade – alguém que tenho o como e a vontade. Não tenho conselhos, nada a acrescentar ao que aqui escrevi. Exceptuando, talvez: observem os vossos filhos a dormir, observem os vossos netos enquanto eles dormem.

Preferir o Musgo

Templo do Pavilhão Dourado (Kinkaku-ji), QUioto, Novembro 2023, João Bosco da silva


Oito anos são tudo

e nada — 

nas escadas do templo.

 

Das escadas do templo

já sem folhas

a árvore do céu.

 

O cair das oferendas

preces silenciosas

com gosto metálico.

 

Quase silenciosas

as preces —

chuva metálica.

 

Sobre o crepúsculo

outonal

pagode escarlate.

 

Silencioso o verde buda

à sombra

dos olhos.

 

Solitário o buda

acumula verdete

e eternidade.

 

Acabaram as oferendas

por fim

silêncio no templo.

 

Com o cu bem lavado

escrevo um haiku

ao lado de um buda.

 

Duas vezes olhar

à volta

e não acreditar.

 

O sake aquece

não interessa

irei bebê-lo.

 

Enquanto se espera

a enguia

sake e haikus.

 

Parecem gatos

a cair

as mãos do cozinheiro.

 

Se elas gritassem tanto

quando eu entro

como nos restaurantes aqui.

 

Trinta e oito em Tóquio

estranha-se menos

que aos dezoito no Porto.

 

Conseguir estar só

rodeado de milhões

eis a poesia.

 

Na melhor companhia

até que torne

na pior.

 

Com as pombas

do parque Yokoamicho

pequeno-almoço sob um ginkgo.

 

Tóquio

 

Que crocitam os corvos

do castelo de Nijo —

serão ecos?

 

Sobre o Kinkakuji

voa

um corvo.

 

Tão breve

como o fim daquele desejo —

Kinkakuji.

 

Belo e breve

o toque

do desejo.

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Memórias douradas

ecoarão agora

na distância semeada.

 

Que sentirá o sol

que toca

aquelas paredes douradas?

 

Um breve abraço

àquele loiro desejo —

olhar Kinkakuji.

 

Aquele monge

cujo desejo

o queimou.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

Olhar o templo

ver o desejo

em estado puro.

 

Neste verde autocarro

ecoa ainda

o reflexo dourado.

 

Quase em silêncio

o rio Kamo

minha testemunha.

 

Iluminado pelo sol

o ancião

no velho comboio.

 

Que fome espelhará

a garça

no rio Kamo?

 

Seu nome

no sorriso —

Sakura.

 

Quem prepara o chá

é o florescer

da cerejeira.

 

Futon duro

sono leve —

chove em Quioto.

 

O grou espelha-se

no rio

não deve ter fome.

 

Há na beleza

uma certa

violência.

 

No comboio

as rápidas montanhas

parecem musgo.

 

Esta chuva estrangeira

traz-me de volta

à primeira casa.

 

Por todo lado

corvos e preces —

Santuário de Inari.

 

De um santuário

a um templo

contrastes silenciosos.

 

A saturação xintoísta

lavada

pelo budismo Zen.

 

À saída do jardim Zen

apanhar do chão

uma folha púrpura.

 

Ah a frescura

do musgo

do Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

a frescura do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Na cara gelada

a frescura

do musgo de Ginkaku-ji.

 

Há gostos

que não foram feitos

à medida.

 

A mão do homem

suavemente

em harmonia.

 

À sombra dos bambus

três vezes

sacudo a gaita.

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

Duas bolas de cotão

do umbigo —

tenho vivido.

 

No ar outonal

de Arashiyama

castanhas assadas.

 

Soba e sake

o almoço

do caminhante.

 

De joelhos sobre a esteira

um gesto familiar

e longínquo.

 

Um dia de sol

tem a beleza da despedida —

cores de outono.

 

As montanhas em Arashiyama

vestem

a minha camisa de Outono.

 

Não é Carnaval

na pandemia endémica

tudo ainda mascarado.

 

Zen é aquele

jacto quente

no meu cu.

 

Deslumbrado ou perdido

o homem que come

gelado de macha.

 

A plenitude —

o estômago cheio

após longa caminhada.

 

Sol e cerveja em Novembro

num bar jamaicano

em Arashiyama.

 

Domingo ao sol de Arashiyama —

imaginar

o som da floresta de bambu.

 

Ao sol de Novembro

ler Bashô

em Arashiyama.

 

Na boca dos adolescentes

reconheço uma palavra —

Namban.

 

Pequenas folhas secas

que sem vento

se movem.

 

Apesar do sol

sobre o lago do palácio

cai granizo.

 

Esta lua de Quioto

irei levá-la

para casa.

 

Em Okochi Sanso

esqueces-te

da cidade.

 

O mais belo vermelho

sem lábios —

Outono em Okochi Sanso.

 

Em viagem

sinto-me

mais em casa.

 

À beira do rio

um grou —

chove.

 

Chamem-me viajante —

sonhar e caminhar

viver.

 

Não chores o verão

que acabou

tem mais cor o outono.

 

Tem mais cor o outono

que a primavera —

envelhecer.

 

Ao vivo

Quioto é mais belo

do que em sonhos.

 

Parece interminável

o varrer das folhas

até que o Inverno chega.

 

Parecem vassouros de giesta

com que varrem

as folhas em Quioto.

 

Chuva ao Sol

o cheiro da manhã

em Quioto.

 

Quem chegará primeiro

eu

ou o postal?

 

A caminho de bicicleta

a tenor

vai aquecendo a voz.

 

De joelhos sobre a esteira

reproduzo

três poemas de ontem.

 

Esperando o comboio

aproveito

o último sol de Quioto.

 

Uma nuvem desvia-se

para deixar o sol

iluminar o poema.

 

Só na hora de partir

a solidão

se pronuncia.

 

Duas meninas sozinhas

no comboio regional —

manhã de segunda-feira.

 

Por trás da nua arvorezinha

esconde-se

o imponente templo.

 

À distância

toda a memória

é uma só coisa.

 

Quito despede-se com Sol

contudo

parto como uma sombra.

 

Uma janela aberta

café e bolos de arroz

uma pessoa sentada.

 

Como o menino

também o velho poeta

contempla o comboio-bala.

 

Como um camelo

viajo carregado

e sedento.

 

Quioto

 

Quio

To.

 

No horizonte só Fuji

se vestiu

para o Inverno.

 

Nas montanhas

o arroz

torna-se chá.

 

Campos dourados

de arroz

em Novembro.

 

Vazia a caixa bento

agora dormita

no dedo uma promessa.

 

Quito-Tóquio

 

Regressa-se sempre

pela primeira vez —

ilusão da memória.

 

O lugar que levamos

é tão somente

nosso.

 

Depois de Quioto

Tóquio sente-se

como plástico.

 

Hoje não chove

no Santuário de Meiji —

ainda verdes as folhas.

 

Vê-se melhor

quando chove —

Santuário de Meiji.

 

Há oito anos chovia

e as folhas

já douradas caíam.

 

Mais uma vez

a memória pinta

o verde com dourado.

 

Olhando a Skytree

bebo sake

no terraço do hotel.

 

Quem diria

este silêncio

numa megacidade.

 

Acompanharam-me

seus jovens olhos

até ao último gole de vinho.

 

Lado a lado

ao sol

um pato e uma tartaruga.

 

Quase uma rocha

ao sol

tartaruga molhada.

 

Regressa a tartaruga

que ainda há pouco

mergulhou.

 

Como se Dezembro

não tardasse

chilreiam os pássaros.

 

Patos deitados

ao sol —

ninguém se senta.

 

Quando regressar

não serei mais

eu só.

 

Também uma garça

se veio juntar

à festa na ilha.

 

Tóquio

 

Novembro 2023 (Tóquio-Quioto-Tóquio)


Pavilhão Prateado (Ginkakuji), Quioto, Novembro 2023, João Bosco da Silva

Juni Ba, Monkey Meat

Uma colecção de cinco contos que têm lugar num mundo onde uma companhia de macacos (i.e., cujos administradores e trabalhadores são macacos) produz todo o tipo de derivados de carne de macaco. O género oscila de conto para conto entre a aventura, a paródia às histórias de superheróis ou à manga à la Naruto, e a narrativa sentimental.  

Crítica a um hipercapitalismo autofágico, capaz até de corromper deus? Sim, claro. Mas ativismo social e arquitectura narrativa são secundários – boas intenções são úteis, mas a obra pode bem viver sem elas. O que define esta novela gráfica é um sentido de jogo: uma energia pueril, caótica, fecunda, provocadora que diz sim a tudo, que não sabe quando parar, que se compraz em chocar, combinada com virtuosismo técnico. Está em tudo: no traço, no uso de cor, nos vastos painéis a transbordar de um pormenor desnecessário para avançar a narrativa, mas a história que realmente conta é a da alegria da criação. Está no humor infantil, grotesco, visceral, irrealisticamente violento. Como exemplo deixo algumas páginas de Monkey Meat, são mais ilucidativas e interessantes do que a minha prosa. Digo apenas que esta é uma novela gráfica que me impressionou como já não sucedia há algum tempo e que recomendo vivamente. 

Juni Ba, Monkey Meat, Image Comics, 2022

Declínio do possível, café filosófico

Gilles Deleuze, antes de 1956, por michel tournier

No dia 18 de novembro houve mais um café filosófico na livraria Snob, em Lisboa. Deixo aqui o texto de apresentação e o áudio.

«No próximo Café Filosófico, mistura sustentável de conceitos e de postulados do quotidiano, falaremos sobre o possível, ou melhor, as categorias, filosóficas e não filosóficas, do possível. Se quisermos traduzir este último sintagma numa linguagem mais militante, talvez possamos escrever a seguinte pergunta: terá o mundo, agora totalmente fabricado por nós (Antropoceno), esgotado os possíveis, como quem esgota um qualquer recurso natural?

Evocaremos, e invocaremos, Gilles Deleuze, um filósofo do possível, porque trabalhou este conceito perspetivicamente, analisando-o, e usando-o, a partir de vários ângulos, acompanhado por Kierkegaard, Bergson, Nietzsche e, entre outros, Tournier. Inscrevendo-o na arte e na filosofia, mas também, sem gritar, na política. Daremos conta do filósofo do futuro nietzschiano, cuja obrigação é construir possíveis que intensifiquem a vida, o viver; bem como da intuição do autor, originada em parte na filologia, sobre como a vingança anula os possíveis que propõem um futuro sem ressentimento. Michel Foucault, num livro editado há pouco tempo em França, Le discours philosphique, também defende, ele que se interessou mais pelos sistemas das ideias e dos pensamentos, que a filosofia serve essencialmente para inaugurar o futuro.

Discutiremos igualmente as modalidades éticas que exigem uma responsabilidade pelo futuro, e com isso uma prudência na inauguração de possibilidades que, como na hybris grega (essa embriaguez desmedida, que autoriza, ou força, as maiores transgressões, como a de Édipo), seriam desafios demasiado pesados, ou simplesmente sopros estéreis, para as futuras gerações. Tanto mais difícil quanto a inflação narcísica atual (vivemos também no egoceno) forjou o quase conceito de síndroma de hybris, uma patologia que infeta cada vez mais pessoas, com muito ou pouco poder, bastando-lhes acreditar que, num determinado momento, são todo-poderosos.

Terminaremos com o estado da arte da utopia, desses não lugares onde cabem todos os possíveis.»

Notas sobre Cult of the Lamb, Stardew Valley e algumas generalidades inócuas sobre videojogos

Cult of the Lamb, 2022

Para o João Coles,
que ando a tentar convencer a jogar
Stardew Valley

Um adorável cordeiro atravessa labirintos e combate monstros para libertar criaturas igualmente adoráveis. Trá-los para o seu acampamento, constrói tendas, cozinha para eles. E rezam juntos. E de vez em quando o cordeirinho sacrifica um dos amigos em rituais de sangue. Já tinha dito que o cordeiro é o líder de um culto satânico?

*

Os verbos ficam claramente definidos desde o início: combater para recolher recursos (as demais criaturas são também recursos), gerir esses recursos, e com eles adquirir mais e melhores ferramentas de combate, que permitem enfrentar um maior número de inimigos, e mais fortes. Quem jogou roguelikes como The Binding of Isaac reconhecerá os elementos do combate. Quem jogou jogos como Animal Crossing reconhecerá a fase de gestão. A dinâmica é construída em torno de estes dois sistemas interdependentes, criando ciclos que se alimentam e introduzem variedade. A referência arquitectural óbvia é Stardew Valley.

*

Stardew Valley, 2016-2023. Imagem da minha Vila Tatiana.

Stardew Valley é um jogo de profundidade. A simplicidade, quase rudeza, da superfície esconde uma complexidade de sistemas que nos ancoram ao espaço e à narrativa do jogo. Um mundo que se expande constantemente, desdobra, aprofunda, oferece novas formas de interagir com o espaço, ao mesmo tempo que os pixeis toscos que dão forma aos habitantes do vale adquirem identidade, investimos neles sentido e sentimentos. Criamos raízes. Stardew é um jogo a que inevitavelmente regressamos como quem regressa a um lugar onde foi feliz.

Cult of the Lamb, por outro lado, é um jogo de superfícies. Gráficos estilizados como cartoons, tem algo do humor físico, visceral e anárquico, de Ren & Stimpy. Ciclos acelerados, saltamos de um modo para o outro sem necessidade de aprofundar a nossa perícia ou estabelecermos relações significativas. Este não é um espaço que habitamos. Apenas um lugar por onde passamos, fazemos o que temos a fazer, seguimos com a nossa vida.

*

A pergunta natural é "vale a pena jogar Cult of the Lamb?" Não tenho uma resposta. Assim como não tenho uma resposta à pergunta "vale a pena jogar jogos?". Tive experiências profundas e significativas a jogar alguns jogos – Stardew Valley está nessa categoria. Mas admito que há algo derivativo e até pernicioso em muitas dos jogos que joguei. Junk food para a alma. Belo, bem executados, mas, ao fim do dia, superficiais, esquecíveis.

Mas talvez a este pensamento subjaza uma falácia, ao considerarmos criticamente jogos como objectos culturais. Por vezes esquecemo-nos que jogos são, bem, jogos. Que são objectos lúdicos, que cumprem funções extra-culturais.

*

A série de jogos Diablo é notável por ter os seus níveis de estupidez no máximo. E com isto não tenciono insultar esta vetusta e respeitada série: são jogos excepcionalmente bem executados, desenvolvidos durante anos por um dos melhores estúdios, e que consistem em alegremente aviar largas turbas de monstros, uns atrás dos outros. São repetitivos, violentos, viciantes. Contém linhas narrativas, mas são menos do que secundárias. Apenas pretextos para o combate.

A Lisa vive em Nova Iorque. Trabalhámos juntos alguns anos. As nossas reuniões de trabalho eram pontuadas por referências a jogos. Convenci-a a jogar Stardew Valley e ela concorda que é um dos melhores jogos alguma vez criados (a Lisa é uma mulher inteligente). Em Julho deste ano mudei de emprego. Tenho saudades das minhas conversas com a Lisa. Nas férias de Natal tencionamos ambos comprar Diablo IV e passar longas horas a esquartejar juntos horda atrás de horda de monstros.

Isto para dizer que jogos criam espaços de interacção humana. Que operam também como espaço mediador. Qualquer crítica tem de ter em atenção os aspectos funcionais com que potencializa as interacções humanas. Isto é, como o jogo funciona como jogo.

*

Seres humanos são viciados em esquecimento. Aquele estado em que perdemos noção de nós próprios, nos tornamos leves, e o tempo flui. Os jogos traficam em esquecimento. Quando exausto, depois de um dia de trabalho, tornam a viagem de comboio de regresso mais breve. Os jogos são uma das formas menos destrutivas que conheço de adquirir este dom. E esse é um dos maiores louvores de que sou capaz.