Notas sobre Cult of the Lamb, Stardew Valley e algumas generalidades inócuas sobre videojogos

Cult of the Lamb, 2022

Para o João Coles,
que ando a tentar convencer a jogar
Stardew Valley

Um adorável cordeiro atravessa labirintos e combate monstros para libertar criaturas igualmente adoráveis. Trá-los para o seu acampamento, constrói tendas, cozinha para eles. E rezam juntos. E de vez em quando o cordeirinho sacrifica um dos amigos em rituais de sangue. Já tinha dito que o cordeiro é o líder de um culto satânico?

*

Os verbos ficam claramente definidos desde o início: combater para recolher recursos (as demais criaturas são também recursos), gerir esses recursos, e com eles adquirir mais e melhores ferramentas de combate, que permitem enfrentar um maior número de inimigos, e mais fortes. Quem jogou roguelikes como The Binding of Isaac reconhecerá os elementos do combate. Quem jogou jogos como Animal Crossing reconhecerá a fase de gestão. A dinâmica é construída em torno de estes dois sistemas interdependentes, criando ciclos que se alimentam e introduzem variedade. A referência arquitectural óbvia é Stardew Valley.

*

Stardew Valley, 2016-2023. Imagem da minha Vila Tatiana.

Stardew Valley é um jogo de profundidade. A simplicidade, quase rudeza, da superfície esconde uma complexidade de sistemas que nos ancoram ao espaço e à narrativa do jogo. Um mundo que se expande constantemente, desdobra, aprofunda, oferece novas formas de interagir com o espaço, ao mesmo tempo que os pixeis toscos que dão forma aos habitantes do vale adquirem identidade, investimos neles sentido e sentimentos. Criamos raízes. Stardew é um jogo a que inevitavelmente regressamos como quem regressa a um lugar onde foi feliz.

Cult of the Lamb, por outro lado, é um jogo de superfícies. Gráficos estilizados como cartoons, tem algo do humor físico, visceral e anárquico, de Ren & Stimpy. Ciclos acelerados, saltamos de um modo para o outro sem necessidade de aprofundar a nossa perícia ou estabelecermos relações significativas. Este não é um espaço que habitamos. Apenas um lugar por onde passamos, fazemos o que temos a fazer, seguimos com a nossa vida.

*

A pergunta natural é "vale a pena jogar Cult of the Lamb?" Não tenho uma resposta. Assim como não tenho uma resposta à pergunta "vale a pena jogar jogos?". Tive experiências profundas e significativas a jogar alguns jogos – Stardew Valley está nessa categoria. Mas admito que há algo derivativo e até pernicioso em muitas dos jogos que joguei. Junk food para a alma. Belo, bem executados, mas, ao fim do dia, superficiais, esquecíveis.

Mas talvez a este pensamento subjaza uma falácia, ao considerarmos criticamente jogos como objectos culturais. Por vezes esquecemo-nos que jogos são, bem, jogos. Que são objectos lúdicos, que cumprem funções extra-culturais.

*

A série de jogos Diablo é notável por ter os seus níveis de estupidez no máximo. E com isto não tenciono insultar esta vetusta e respeitada série: são jogos excepcionalmente bem executados, desenvolvidos durante anos por um dos melhores estúdios, e que consistem em alegremente aviar largas turbas de monstros, uns atrás dos outros. São repetitivos, violentos, viciantes. Contém linhas narrativas, mas são menos do que secundárias. Apenas pretextos para o combate.

A Lisa vive em Nova Iorque. Trabalhámos juntos alguns anos. As nossas reuniões de trabalho eram pontuadas por referências a jogos. Convenci-a a jogar Stardew Valley e ela concorda que é um dos melhores jogos alguma vez criados (a Lisa é uma mulher inteligente). Em Julho deste ano mudei de emprego. Tenho saudades das minhas conversas com a Lisa. Nas férias de Natal tencionamos ambos comprar Diablo IV e passar longas horas a esquartejar juntos horda atrás de horda de monstros.

Isto para dizer que jogos criam espaços de interacção humana. Que operam também como espaço mediador. Qualquer crítica tem de ter em atenção os aspectos funcionais com que potencializa as interacções humanas. Isto é, como o jogo funciona como jogo.

*

Seres humanos são viciados em esquecimento. Aquele estado em que perdemos noção de nós próprios, nos tornamos leves, e o tempo flui. Os jogos traficam em esquecimento. Quando exausto, depois de um dia de trabalho, tornam a viagem de comboio de regresso mais breve. Os jogos são uma das formas menos destrutivas que conheço de adquirir este dom. E esse é um dos maiores louvores de que sou capaz.

Porque não há nota de segunda-feira esta semana

Os dez leitores que seguem este blog terão reparado que mantemos uma rubrica chamada “Notas de segunda-feira”. O que essa rubrica é suposto ser ao certo ainda estamos a tentar descobrir, mas a ideia geral é que todas as semanas um dos editores escreve uma nota mais ou menos leviana sobre o seu fim-de-semana, ou sobre algo que o captivou recentemente. Esta semana calhava-me a mim escrever a nota semanal. Este texto serve para justificar porque não o fiz.

Eu até que estava bem lançado. Tinha duas ideias para o texto, planeava escrevê-lo no sábado, deixá-lo repousar, lê-lo no domingo, descobrir que aquilo era uma parvoíce pegada e escrever outro em nada melhor, e corrigir os muitos erros e gralhas na terça, depois de os demais editores da Enfermaria me darem na cabeça. Este é o método de escrita que apurei nos últimos tempos, e acho-o extremamente eficiente. Mas algo inesperado e totalmente fora do meu controlo tomou conta do meu fim-de-semana e arrumou o meu cuidado plano na gaveta do esquecimento. Mas já lá chegamos.

 

Tópico 1 para a nota de segunda-feira que não chegou a ser escrita: Succession (2018)

A minha primeira ideia era escrever sobre a série Succession, https://www.imdb.com/title/tt7660850/?ref_=nv_sr_1). Acabei de ver a primeira temporada esta semana, e é soberba. Criada por Jesse Armstrong, um dos argumentistas de Thick of it, uma das minhas séries preferidas dos últimos anos, tem em comum com esta o humor negro e a arte de bem praguejar. É uma espécie de King Lear moderno: o patriarca da família Roy, o poderoso CEO de uma das maiores empresas de media do mundo, um misto de Trump e Murdock e excelentemente representado por Brian Cox, celebra o seu octagésimo aniversário, e os filhos posicionam-se para o suceder. O problema é que o pai não tem a mínima vontade de se reformar. Sim, claro que é um comentário à actual situação política (i.e, Trump e acesso ao poder que dinheiro e influência compram; nas minhas notas para o texto comentei “faças o que fizeres, não uses esta expressão”), mas é também um drama profundo, extremamente bem escrito, e com actores que certamente vão ganhar prémios a torto e a direito. Fui lá ter através deste texto na The New Yorker, que é muito melhor do que o meu texto seria: https://www.newyorker.com/culture/on-television/succession-reviewed-an-irresistible-family-power-struggle-told-through-soap-and-satire

 

Tópico 2: Sweet Tooth (2009-2012), de Jeff Lemire

Sweet tooth.jpg

Jeff Lemire (n. 1976) é um escritor e desenhador de banda-desenhada canadiano e, desde que li a graphic novel[1]Essex County, no princípio deste ano, que estou apaixonado pelo seu trabalho. Essex County é uma colecção de contos em torno de uma comunidade rural no Canadá. As histórias são minimalistas e contidas, bem como o registo gráfico, interligadas de formas nem sempre óbvias. É talvez o livro mais comovente que li no último ano. Mas não era sobre esse livro que queria escrever, mas sobre a colecção Sweet Tooth, que Lemire escreveu e desenhou, e que foi publicada entre 2009 e 2012. Descrita pelo autor como “Mad Max meets Bambi” (com claras influências de The Road, de Cormack McCarthy), conta a história de um rapaz “híbrido” (a imagem da capa é elucidativa), que tenta sobreviver num mundo em que uma peste incurável e inexplicável dizimou a maior parte da humanidade, e os sobreviventes vivem atormentados pela certeza de que é apenas uma questão de tempo até que também eles contraiam a doença. Uma leitura ligeira, portanto.

 

Os meus amigos sabem do meu “interesse excessivo” por um género de videojogo genericamente denominado RPG (não me vou alargar aqui sobre a definição do género, algo fluída; direi apenas que estes jogos costumam conter uma série de elementos em comum: o jogador controla uma personagem ou um grupo de personagens, através de uma narrativa complexa, as personagens evolvem ao longo do jogo, adquirem novas capacidades e características, que alteram a forma como podem interagir com o mundo). Depois de me ouvirem discorrer durante cinco minutos sobre os méritos artísticos de jogos como The Witcher 3 ou Persona 4, eles tendem a dizer, com visível curiosidade: Não te vais pôr a falar sobre jogos de computador outra vez, pois não? O que eu tomo por sinal de interesse, e prossigo, expondo as razões porque prefiro The Witcher 3 a Fallout 4 (pace João Bosco da Silva), ou o que torna Persona 4 tão especial – o Persona 5 é excelente, e muito melhor tecnicamente, mas falha em fazer-nos sentir em casa e ligar-nos ao mundo da narrativa, como o Persona 4 faz tão bem…

Chegamos então ao ponto em que os meus planos de fim-de-semana foram deitados borda fora, como um pirata insubordinado lançado para um mar infestado de tubarões. Aconteceu-me isto:

divinity_original_sin_2_definitive_edition_pc.jpg

Não vou abusar da paciência dos leitores da Enfermaria. Direi apenas que Divinity: Original Sin 2 é um RPG excelente. Tem uma qualidade de escrita, tanto nas missões principais como nas missões secundárias, como não via desde The Witcher 3. O combate por turnos, de alta complexidade táctica à la X-Com, é fantástico, e encoraja a criatividade: por exemplo, hoje descobri que, se congelasse o solo sob o qual está um inimigo a sangrar, é possível que ele escorregue no seu próprio sangue congelado e perca a vez. É um jogo de uma audácia rara em termos do nível de agência que confia ao jogador: o jogador não gosta de uma personagem central e decide matá-la por capricho? Muito bem, o jogo permite fazê-lo, e foi concebido de maneira a que fosse possível a narrativa continuar, apesar de uma peça essencial estar em falta. Poderia continuar a discorrer sobre os méritos do jogo, mas não o vou fazer – quero antes ir limpar o sebo ao Bispo Alexandar.

 

Isto vem totalmente a despropósito, mas reli o Four Quartets este fim-de-semana. É ainda mais belo do que me lembrava.

 

Para acabar o post com uma mensagem positiva: aos dois leitores com menos de quarenta anos que lêem o blog eu digo: jovens, digam não às drogas e vão jogar Divinity: Original Sin 2. Ou ver Succession. Ou ler os livros acima mencionados. Ou simplesmente ler bons livros. Sim, isso é capaz de ser o melhor.


[1] Qual a tradução correcta de graphic novel? Romance gráfico?

Sensible Soccer

em memória de Armando Moreira

1

o jogo não corria de feição ao Milan
que tinha
até aqui
limpado todas as equipas da competição
Papin
a debater-se com um surto de infecção existencial
teve de ser substituído a meio
da segunda parte
foi este o jogo
em que Van Basten bateu
o recorde mundial
de bolas ao poste
quarenta e duas
e no final levou para casa
um dos postes como prémio
e Grobbelaar
Bruce Grobbelaar
louvado seja o seu nome
fez milagres que chegassem
para duas santificações
uma apoteose
e um Ballon d’Or

mas as coisas iam piorar

já perto do final
Whelan
até então condenado a tarefas defensivas
rouba a bola no lado esquerdo do meio campo
indromina Donadoni com uma finta de corpo
sprinta pela ala acima como um homem
perseguido por uma tribo de canibais
e tenta um cruzamento desesperado
perante a aproximação de Tassotti

a bola desenha no ar uma banana tão perfeita
que deixou a defesa a salivar
e encontra a cabeça de Ian Rush
que não quis que Whelan fosse o único
a desafiar as leis da física
lançou-se do limiar da área
sobrevoou Baresi
e só parou no fundo da baliza de Rossi
juntamente com a bola

Milan 0     –     Liverpool 1
                        I. Rush 83’

 

2

temos o mesmo nome
não era porreiro se eu fizesse a música
do vosso próximo jogo?
terá dito Captain Sensible
vocês sabem
dos The Damned
a Jon Hare da Sensible Software
então não era?
e em quanto é que isso nos ficaria?

uma pint e não se fala mais nisso

bebeu-se a pint
apertos de mão
votos de solidariedade artística
e na mesma tarde apareceu a música
que acompanhava o ecrã de abertura
da primeira versão de Sensible Soccer
1992
uma obra prima
maculada apenas
pela inutilidade dos guarda-redes

como bom punk
Captain Sensible
vocês sabem
dos Punk Floyd
não acreditava em assinar contratos
por isso
nenhum contrato foi assinado

passados meses
toca o telefone
vocês estão a usar uma música
do Captain Sensible

vocês sabem
dos Dead Men Walking
no vosso jogo?
nós temos os direitos
para toda a música que ele fez
fará
ou pensar em fazer
e agradecíamos que nos pagassem
uma pipa de massa


a brincadeira custou £10 000

uma dura lição
comentou Hare mais tarde
recordando o episódio
depois disso tivemos de remover a música
deixou de ter significado para nós

 

3

ele guardava caixas de disquetes
cheias de repetições
passava horas
a analisar lances
frame por frame
nessa tarde mostrou-nos como era possível
marcar golos
do pontapé de saída[i]
as formas mais eficientes
de marcar de canto
e como as defender
o que vocês querem
é encher o meio campo
[ii]
não deixar espaço para construir
e usar os jogadores mais rápidos nas alas

mandamentos
que ainda hoje
faço por seguir

 

4

ao anoitecer
chegou uma mulher
jovem loira
inadequadamente elegante
no seu vestido azul
Armando
não íamos sair?


a família vivia longe
raramente estava reunida
e ele era encantador

foi assim que aquela mulher tão bela
acabou com um avental
sobre o vestido azul
e nós
jogámos
Sensible Soccer
até ao ano seguinte

 

5

os guarda-redes da versão original
eram os mais incompetentes
da história do futebol digital
um jogo que acaba 8-5
não é verdadeiramente um jogo de futebol

mas quão fiel precisa de ser uma caricatura?

tudo começou como uma piada

a ideia era transpor a leveza
da alegre carnificina de Cannon Fodder
para o belo jogo

os bonecos corriam a 50Km/h
saltavam 20m para cabecear a bola
e dando uma guinada depois do remate
era possível alterar consideravelmente
a trajectória da bola
perdemos a conta
aos joysticks
que isto nos custou

mas o número de equipas era soberbo
os planteis exactos
o detalhe táctico
nunca visto num jogo
e a imaginação da infância
complementava
a indeterminação dos pixels

comecei a ver futebol
à procura de vestígios
que legitimassem a caricatura
o amor pela imitação
antecedendo
o amor
pela coisa real
ainda hoje não estou certo
de que seja possível
amar
coisas reais
mas o meu amor por futebol
permanece inabalável

mais tarde em 92 saiu uma versão
com uma série de melhoramentos
passou a haver cartões
o árbitro aparecia no campo
mas de longe o mais importante
era os guarda-redes agora
conseguirem fazer uma defesa

foi esta a versão que jogámos naquela noite

 

6

a equipa italiana fez de tudo
para conseguir pelo menos o empate
nos minutos finais
bolas longas para um ataque reforçado
o coração como um comboio
quando o boneco
que acreditávamos possuir
o talento e força de Ruud Gullit
remata à entrada da área
mas Grobbelaar
          louvado seja
          ele e os programadores
          que consertaram os guarda-redes
garantiu a vitória
para a equipa de Liverpool

todos os presentes me aplaudiam
e era bem para lá
da minha hora de deitar

não sabia então
que tinha acabado de alcançar
demasiado cedo
o apogeu da minha carreira desportiva

nem que essa noite
em que lhe ganhei um jogo
de Sensible Soccer
seria a última vez
que o víamos


[i] o truque era mandar um balão
de um sítio exacto do meio campo
usando o círculo central como referência
só com um pouco de efeito
de maneira a que a bola
acertasse no poste da baliza
e ficasse no interior da área
se o timing fosse o correcto
o avançado que deu o pontapé de partida
chegava a tempo de ganhar o ressalto
e marcar

[ii] a superioridade do 3-5-2
é ainda hoje consensual
entre os estudiosos