Escuridão

Thomas phillips, Byron em Traje Albanês, 1835 (retrato Original de 1813)

Byron escreveu “Escuridão” em Julho de 1816 nas margens do Lago Geneva, ao mesmo tempo que, no mesmo lugar, Mary Shelley escrevia a outra obra-prima da época, Frankenstein. Quando Byron escreveu este poema há um ano que não havia verão e a temperatura do planeta tinha descido 1 grau centígrado porque na primavera de 1815 o Monte Tambora, um vulcão na Indonésia, tinha tido uma violenta erupção, o que desencadeou fenómenos climáticos extremos por todo o planeta. O ano que a cinza levou a dissipar-se ficou conhecido como o ano sem verão. Mais de dez mil pessoas morreram na explosão, tão violenta que pulverizou de imediato cerca de um terço do monte, e cerca de trinta mil pessoas pereceram pelo mundo fora devido à fome que resultou da instabilidade climática. “Escuridão” é um poema assertivo e distópico sobre uma necessidade absoluta de solidariedade. Sobre a solidariedade enquanto civilização. É um poema que vai rejeitando e destruindo todos os símbolos a que as figuras que aparecem se tentam agarrar até chegar a essa revelação.


George Gordon, Lord Byron
Julho de 1816
Tradução de Tatiana Faia

Tive um sonho, que não era inteiramente um sonho.
Extinguiu-se o sol brilhante, e as estrelas
Vaguearam apagadas no espaço eterno,
Sem raios, sem caminho, e a terra gelada
Balouçou-se cega e enegreceu no ar sem lua;
A manhã veio e foi-se – e veio e não trouxe o dia,
E os homens esqueceram-se das paixões no horror
De tudo isto a sua desolação, e todos os corações
Gelaram numa egoísta prece por luz:
E viviam colados aos fogos da vigília – e os tronos,
Os palácios dos reis coroados – as cabanas
As possessões de todas as coisas de casa,
Foram queimadas para feixes de luz; cidades inteiras foram consumidas
E os homens reuniram-se em redor das suas casas em chamas
Para mais uma vez olharem os rostos uns dos outros;
Felizes aqueles que moravam perto do olho
Dos vulcões e na tocha das suas montanhas:
Uma esperança amedrontada era tudo o que o mundo continha;
Queimaram-se florestas – mas hora a hora
Caíam e extinguiam-se – e os troncos que estalavam
apagavam-se com estrondo – e tudo ficou negro.
As sobrancelhas dos homens à luz desesperada
Exibiam um aspecto sobrenatural como se em síncopes
Os clarões intermitentes se abatessem sobre eles; alguns deitaram-se
E taparam os olhos e choraram; e alguns repousaram
O queixo nas mãos cerradas, e sorriram;
E outros apressaram-se de cá para lá e alimentaram
As próprias pilhas funerárias com combustível e levantaram o olhar
Para o céu baço com um desassossego tresloucado,
Mortalha de um mundo passado, e de novo
Com maldições lançavam-se ao pó,
E rangiam os dentes e uivavam; os pássaros selvagens guinchavam
E, aterrorizados, palpitavam no chão
E batiam as asas inúteis, os brutos mais selvagens
Chegavam amansados e trémulos; e as víboras rastejaram
E entrelaçaram-se entre a multidão,
Sibilando mas sem ferrar – foram chacinadas para alimento,
E a guerra, que por um momento não houve,
Comeu à farta de novo: uma refeição comprava-se
Com sangue e cada um saciava-se taciturno e à distância
Empanturrando-se de tristeza: nenhum amor restava;
Toda a terra era um pensamento só – morte
Já e sem glória, e a dor
Da fome alimentou-se de todas as entranhas – os homens
Morriam e os seus ossos como a sua carne não tinham sepultura;
Os magros pelos magros eram devorados,
Até os cães atacavam os donos, menos um deles,
Que era fiel a um cadáver e mantinha
Pássaros e bestas e homens famintos à distância,
Até que se apoderava deles a fome ou os mortos caídos
Atraíam as suas parcas mandíbulas, ele não procurava comida,
Mas com um piedoso e perpétuo gemido,
E um rápido ganido desolado, lambendo a mão
Que com uma carícia já não respondia – morreu.
A multidão esfaimava-se aos poucos; mas dois
De uma cidade enorme sobreviveram
E eram inimigos: encontraram-se ao lado
Das brasas que se extinguiam a um altar
Onde estava amontoada uma pilha de coisas sagradas
Para uso profano; esquadrinharam
E a tremer amealharam com frias mãos esqueléticas
As débeis cinzas e a sua débil respiração
Fez-se sopro por um pouco de vida e gerou uma chama
Que era zombaria, ergueram
Os olhos enquanto se fez escassa e contemplaram
O aspecto um do outro – olharam, guincharam e morreram –
Até da mútua sordidez morreram,
Sem reconhecer quem era aquele sobre cuja sobrancelha
A Fome escrevera Pobre Diabo. O mundo ficou vazio,
O populoso e o poderoso fizeram-se pedaço,
Sem estação, sem erva, sem árvore, sem homem, sem vida –
Um pedaço de morte – um caos de duro barro.
Os rios, lagos e oceano todos ficaram imóveis,
E nada se agitava nas suas profundezas silenciosas;
Navios sem marinheiros apodreciam no mar
E os seus mastros caíam aos pedaços; enquanto caíam
Eles dormiam num abismo sem uma única vaga –
Tinham morrido as ondas; as correntes estavam no túmulo,
A lua, sua amante, expirara antes;
Os ventos mirraram no ar estagnado
E pereceram as nuvens; A Escuridão não tinha necessidade
De ajuda – Ela era o Universo.

A partida das formigas-de-asa — Haikus Bálticos

Kristinestad, Julho 2024

Zumbe uma mosca

o meu sangue em ti

a serenidade da água.

 

Algo mergulha

não tem medo

das cianobactérias.

 

Nas pedras rojas

a água desaparece —

a bétula crepita.

 

No cais de madeira

formigas-de-asa —

emigrantes no fim de Agosto.

 

Sobre o verde ondulante

dorme a bebé —

leve brisa de Julho.

 

À beira Báltico

o silêncio de antigos aromas

— velho fumeiro de peixe.

 

No sono da bebé

tento encontrar

o meu silêncio.

 

Mais uma fotografia

um registo

para o esquecimento.

 

Enganar o tempo

com palavras —

nem as pedras conseguem.

 

O Sol o mar

um pedaço de papel

um momento todo meu.

 

À beira do mar

respira-se mais fundo

com uma caneta na mão.

 

Sobre a pedra

no meio da relva

caganita de coelho.

 

Chuva no telhado

a luta

das formigas-de-asa.

 

Nas folhas da bétula

seus olhos encontram

uma canção de embalar.

 

Inúmeras formigas-aladas

frenesim no telhado —

agora silêncio e vazio.

 

Flutuando na água da chuva

só o vento move agora

as formigas-de-asa.

 

No bruxuleante lusco-fusco

da sauna de madeira

lavo-me com água da chuva.

 

Escovando o cabelo

deixando de ser

a cada passagem.

 

Ouvindo shakuhachi

na sauna lavo-me

com a pressa de um negrilho.

 

Como uma bandeira

das minhas derrotas

cabelo ao vento.

 

Com esta lenha e esta água

absolvo também

os meus pecados.

 

Sobre esta rocha

repetindo-me

célula a célula.

 

Porque ver só formigas

quando por todo lado

flores.

 

A quem minto

quando me deixo abocanhar

por tanta vontade.

 

Sobre uma fraga longínqua

passa por mim

o mesmo vento.

 

Na sombra

não forces

o poema.

 

Último dia na cabana

rego os trevos

com a glória-da-manhã.

 

Eskilsö-Kaskinen, Julho 2024

Céleste Albaret faz a lida do palácio

Na ombreira do verso
há uma voz que ainda
consente em ser útil

e permite que eu a veja
e repita, sílaba por sílaba.
A mesa de mogno da sala

está pronta para receber
o papel branco-amanhecido:
Celeste está cansada,

de cotovelos obstinados,
cheia de conversas de salão.
Contrafeita, prefere o tom centrípeto

da mulher a dias que ocupa
o tampo e o tempo da mesa
com lágrimas de cansaço
entre cálices de vinho.

E ela então agiganta-se
e escreve
os recados a Deus,
o quotidiano macabro

do mezanino que a envolve.
Vigio-a nessa atmosfera insidiosa,
vejo-a lenta como algodão
de dia, sei que ela canta
crepitante nas piores horas

do pensamento.
Esta figura não tem
a brancura de Euricleia.
As suas pobres moedas

rodeiam
a lista negra dos dias,
os recados queimados, todos
com a minha mortal assinatura
– Erich Auerbach –

Ela tem o sonho cravado
nuns olhos roxos, distantes.
Os dedos desta mulher
parecem ter
vida própria,

assalariada, difusa.
(Onde andaste
para trazeres os dedos
assim?)
Mas a mulher
a dias apenas espreita

da janela oval
o Mar de Mármara,
trabalha em meu lugar
à mesa de mogno,
escrevendo recados a um
adeus adiado.

Ela espreita sempre
à janela do palácio,
completa a ruína
do que nos rodeia,

eu abro o vinho
às escuras
numa sala pétrea
do pensamento
e saio de rompante

quando sei que é
tempo de partir –
seguro no meu passo,
ouço-a ainda tossir.

O seu manto de presságios
é uma coisa prática.

De coração perdido, apostados os dois
Em esconjurar mapas e bibliotecas,
todo um cristalino colar de mitos.

Limpos e obscenos em claro convívio:
este é só mais um fim
De um inumerável princípio.

Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

O outro que era eu

Fechado no bafiento gabinete londrino
à procura de Ruben A., por equívoco
falando com uma tal Laura enquanto lia
no gesso dos seus ombros uma Beatrice
de Dante tornada doutora em filosofia,
vi em mim um sentimento de pertença
posto do avesso. Receoso de rasgar
o vulcão de porcelana à minha volta,
do óbito do serviço de chá e sortido
de livros à brutalidade sedosa da saia
travada, ocorreu-me uma portuguesa
história de desenganos que célebre
atravessou os séculos e foi despejar
as culpas da minha inépcia na vala
da deserção intelectual, cavada
após um salto mortal do cinismo.

Foi um dia em que acordara aquém
do dinamitado espírito britânico,
embora além do seu vorticismo,
não me interessando já a vigilância
dos ataques aéreos no topo da Faber
& Faber
, cansado dos poetas titãs
combatendo na torre do capitão:
pus em marcha na imaginação
a figura de um oleiro de Alcobaça
e um bom açoriano chamado Mateus
Álvares, a par de um doce pasteleiro
do Madrigal, sem esquecer Marco Túlio,
o aventureiro italiano: todos condenados
à forca por se fazerem passar pelo outro,
todos querendo apenas ser Outro,

não o salvador ou messias judaico,
apenas alguém que não fosse oleiro
em Alcobaça, açoriano nos Açores,
aventureiro e logo italiano, só pessoa
que a outra fama colasse o nome inteiro.
Sonhando em prol do ocioso campesinato,
em defesa do alegre Chesterton, armado
em anarca detectivesco, abandonei
o gélido gabinete de Laura, notando
nos seus ombros o gesso da Beatrice
de Dante, na filosofia da sua mente
como na minha, uma alcova dissonante. 

(inédito)