La Mer

Do outro lado da rua a vizinha dá de comer ao gato, aos dois gatos, aos três gatos,

Assim se alimenta a solidão logo de manhã, no corredor do hotel os confetes

Da noite anterior silenciosos à porta do quarto, muitos futuros foram poupados

Contra a moral de latex, outros enfrentados de cara e peito contra a bala,

Quem esteve só esteve apenas só, os restantes somente quando abriram as cortinas

Ao mundo se deram conta da verdade universal, estamos todos juntos na solidão,

Naquela noite, enquanto muitas vidas se apagavam pela mão da loucura,

O mar continuou o seu trabalho de eternidade, nem uma onda ficou por se desfazer

E de manhã, contra toda a dor e medo, amanheceu não vermelho, mas azul-turquesa.

15.02.2017

Nice

Dois poemas de Fernando Colitta: “Auto-retrato. Noite adentro” e “Pergunta para Esenin”

Tradução: João Coles

AUTO-RETRATO. NOITE ADENTRO

Escuta o baque surdo e curto do cotovelo,
que pousa na mesa indiferente e muda.
Somente ao outro se segue a mão maleável,
este sustém à cabeça o novo tronco e o novo pescoço.

Repara na minha elegância de homem de pé a degradar-se,
a degradar-se intacta sobre a mesa.
Entre as folhas umas mais outras menos brancas
escondem-se ao desleixo moedas para as compras.

Os vermes entre as jóias
facilmente vivem.
Se olhar para a cómoda
facilmente desaparecem.

Repara no fundo do mundo a perfilar-se
numa rua do mundo que sossega para lá do vidro,
repara no insinuar deste rosto criado ao acaso
que a sós se olha sem espaço para Narciso.

Enquanto isso entre as jóias
passeiam longos vermes.
Não olhes para a cómoda,
que eles de imediato se solapam.

Mas será que sempre foi ou é agora que é assim?
Na janela o vago busto preferiria a segunda.
Nos olhos descobre imovelmente uma coisa,
um baú, um olhar, uma faca perdida.

De relance repara na estrutura evaporando-se,
agora a cabeça acompanha os olhos no afã.
Bastou a dúvida para virar o retrato,
as costas para a janela, o cu para a mesa.

No enredo dos móveis e bibelôs se perde,
por todo o lado procura e tudo desarruma.
Numa gaveta encontra por fim poucos indícios de provas.
Há vida, mas não dá resposta alguma.

Sobre a cómoda
facilmente vivem.
Se ouvirem um passo
facilmente desaparecem.

Repara entre as jóias
onde habitam os vermes.
Esquece a cómoda,
não os perturbes.

PERGUNTA PARA ESENIN

Ainda aqui,
mesmo que qualquer fumo ou qualquer odor
de quando em quando se lembre.
Ouvir.
O que se perdeu
em troca deste tempo todo?
Tão frio que é
este ar apesar de nos acolher,
tão materno que é
e tão alheio.
Tu, pelo contrário, acabaste
o que talvez julgo não ter
sequer começado.
Diz-me se ainda tenho tempo,
tu que cedo deixaste de ter tempo.
Quão absurdo parece ser
resistir aos dias
se por instantes se
iluminam de alguém como tu,
que num momento tantos dias fizeste brilhar.
Aprendeste, ensinando,
que quem queima queima consigo o seu fim?
E se sim
com que proveito o aprendo?
Eu que queimo bem mais lentamente
e mesmo assim previno qualquer cansaço.
Talvez tenhas sido a imagem arrancada da língua
no mar de grão onde nasceste.
Sem o querer.
Em que te sinto próximo de mim
se a angústia não me mata
apesar de presente?
Não me conheces
e esta minha vida obstinante
não promete um encontro.
Há momentos em que a sinto
perto o suficiente para a chamar,
e sinto o cheiro da cinza,
e tudo tem a luz confusa
das coisas que se amam.
Caro amigo a quem nada posso dar,
amigo imolado e fresco porém como uma flor,
com o meu pensamento, que pouco estimo,
atravesso o século que passa
pelo teu campo gélido
e pelo meu seco e espinhoso,
e consigo ouvir entre as plantas sem nome
que talvez
não seja garantido viver,
como tão-pouco
é garantido morrer.


AUTORITRATTO. TARDA SERA

Senti il tonfo sordo e piccolo del gomito,
si pianta nel noncurante muto tavolo
.Solo l'altro è seguito dalla mano malleabile,
questo regge alla testa il nuovo tronco e il nuovo collo.

Guarda la mia eleganza di uomo in piedi degradarsi,
degradarsi intatta sopra il tavolo.
Tra i fogli lasciati chi più chi meno bianco
trascurate si nascondono monete per la spesa.

Vermi tra i gioielli
facilmente abitano.
Se guardo il comodino
veloci scompaiono.

Guarda sullo sfondo del mondo stagliarsi,
su una strada del mondo che oltre il vetro riposa,
guarda infiltrarsi questo volto creato a caso
che da solo si guarda senza spazio per Narciso.

Mentre tra i gioielli
lunghi vermi scorrono.
Non guardare il comodino,
rapidi rintanano.

Ma sempre sarà stato o è da poco come ora?
Nella finestra il vagobusto preferirebbe la seconda.
Negli occhi scopre immobilmente qualcosa,
un baule, uno sguardo, un coltello, perduto.

Guarda d'improvviso la struttura evaporare,
ora la testa segue gli occhi nell'affanno.
Il dubbio è bastato a voltare il ritratto,
le spalle alla finestra, il culo al tavolo.

Nell'intrico di mobili e soprammobili si aggira,
dappertutto cerca e tutto disordina.
In un cassetto trova infine pochi indizi per prova.
La vita c'è, ma non dà risposta alcuna.

Sopra il comodino
facilmente abitano.
Se sentono un passo
veloci scompaiono.

Guarda tra i gioielli
vermi albergare.
Salta il comodino,
non li disturbare.

DOMANDA PER ESENIN

Ancora qui,
anche se qualche fumo e qualche odore
di tanto in tanto ricorda.
Sentire.
Cosa si è perso in cambio di tutto questo tempo?
Quant’è fredda
quest’ aria anche se accoglie,
quanto è materna
e quanto estranea.
Tu, invece, finisti,
tu che a trent’ anni finisti
quello che io credo di non avere
ancora forse cominciato.
Dimmi se ho ancora un po’ di tempo,
tu che presto smettesti di avere tempo.
Quanto assurdo appare
il resistere nei giorni
se per un attimo questi
sono illuminati da uno come te,
che in un attimo tanti giorni facesti brillare.
Imparasti, insegnando,
che chi brucia brucia con sé la sua fine?
E se sì
a quale pro io lo imparo?
Io che brucio assai più lentamente
eppure avverto tutta la stanchezza.
Forse fosti l’immagine strappata dalla lingua
nel mare di grano in cui eri nato.
Senza volerlo. In cosa ti sento vicino
se l’angoscia non mi uccide
anche se è presente?
Non mi conosci
e questa mia vita che si ostina
un incontro non promette.
Ci sono momenti in cui la sento
vicina abbastanza da chiamarla,
e sento l’odore della cenere,
e tutto ha la luce confusa
delle cose che si amano.
Amico caro a cui non posso dare niente,
amico arso eppure fresco come un fiore,
col mio pensiero, che poco stimo,
attraverso il secolo che passa
tra la tua campagna gelida
e la mia secca e spinosa,
e posso udire tra piante senza nome
che forse non è così scontato il vivere,
così come
non è scontato il morire

Adiantamento - Suceder


1

Agora trancado em casa 

De mãos 

Bem lavadas Você

Poderá tocar os contornos 

Da apatia no teu rosto



2

Para vestir corretamente a 

Máscara Você

Deverá permanecer em estado

De pluma

Lembra-te urgente 

De teu estado

De pluma atrás Você

Das outras máscaras Você

Um espelho salpicado



3

Pensas 

Quem? 

Pensa quem ninguém irá estercar a larga

Jardineira das prerrogativas Você

Isso Você aquilo

Diriam

Isso é

Tudo pensa

Diriam?

Quem? Uma

Maldade de pássaros desinfetados? 

Vo Cê



4

Talvez a febre talvez o

Silêncio seja a granja suscetível talvez

O latido na rua seja 

Um grito de prazer talvez 

Você

A honestidade de um raio de

Sol acelerando a poeira

Na

Folha do

Antúrio talvez a

Véspera seja a pena a

Poeira a

Debilidade é ganhar

Votos 

A véspera é

A pena 



5

Agora Você trancado em 

Casa 

De mãos bem lavadas

Você 

Tu 

Umas plumas 

De ti

Tocando convívio 

Com outras de

Ti

 

6

A sombra da mobília entrega

Maquetes  

Das garantias da cidade 

Você

Esteja você à cintilação das tuas

Fianças



7

A sorte assim

Passada feito

Filme que passa à tela

Da morte

Você

Uma ereção à sorte alguma

Suave neurose nenhuma

Febre à sorte 

40 graus medidos 

Mesma 

Sorte



8

Apaziguamento então passa

A ser

Nuvem drástica nuvem

Presencial extremada apaixonada

Distante carecida de

Reformas carecida

De 

Higiene Você se

Entrega 



9

Pensa

Ainda pensas

Sobre as

Prerrogativas nas jardineiras pensa

Quem um sorriso de

Vergonha um gesto anônimo

Uma semente ocasional as tintas do 

Que pensas

Você



10

Suceder então

De mãos bem lavadas como 

Um 

Paciente trancado da cura dos outros sucede aos 

Pulmões rebuscados 

Sucede 

Que 

Ainda a jardineira esteja talvez

Você a

Ereção talvez a véspera 

Seja talvez 

Suceder 

Luís Amorim de Sousa, O Cabo dos Trabalhos

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Luís Amorim de Sousa

O Cabo dos Trabalhos

memórias, autobiografia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2020, 148 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

12€


 

Estava eu a concluir o meu sétimo ano dos liceus quando uma crise familiar me levou a decidir ir à procura de emprego. 

– Vou trabalhar! – anunciei à família, no tom de quem declara: “vou para a guerra!” 

– Trabalhar? E os exames? – perguntaram os meus pais. 

– Faço-os por mim. – respondi. 

– Mas podes? 

– Posso. 

– Podes mesmo? De certeza? 

– Absoluta! 

– Então, sendo assim, está bem. 

Como isto se passava na Lourenço Marques dos anos cinquenta, procurar emprego resumiu-se a um telefonema. Um primo da minha mãe, Carlos Morais de Azevedo, parente próximo e razoavelmente lá de casa, detinha um cargo importante na Fazenda e prontificou-se logo a dar um jeito. De uma semana para a outra estava o assunto tratado: aspirante a oficial no quadro interino do Almoxarifado de Fazenda, com o ordenado mensal de três mil escudos. Era pegar ou largar. Peguei com gula. Três contos era dinheiro. E poucos dias depois, com as papeladas em ordem, lá fui eu de risca ao lado, apresentar-me ao serviço. 

 

Luís Amorim de Sousa

Luís Amorim de Sousa nasceu em Angola em 1937. Passou a infância em Lisboa e adolescência na capital colonial de Moçambique, que trocou pela vida em liberdade e as ofertas culturais de Londres no despertar da década de 60. Ingressou na BBC e desde então, e até atingir a idade da reforma viveu sempre no estrangeiro com uma longa permanência em Washington DC, onde exerceu o cargo de Conselheiro de Imprensa junto da Embaixada de Portugal. No mesmo cargo, foi colocado em Brasília e, a seu pedido, transferido para Londres onde atingiu a reforma. Regressou a Portugal e vive actualmente em Oxford. O Cabo dos Trabalhos é um aceno a Moçambique e assinala o começo de uma vida marcada por presenças e distância.

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