Páris

ao António Alves Vieira


Quando se sentou no sofá
à luz hemisférica da mesinha
consegui perceber-lhe
a fenda helénica do queixo
os lábios sempre húmidos
e os caracóis dele
da mesma aveia dos olhos
que cumpriam uma constante algébrica qualquer

“- Então fazes mais televisão ou teatro?”

tiniu o balanço do candeeiro
e o olhar dele
que mesmo destriunfado
com toda a força das pálpebras
me despia

misterios_dionisiacos.jpg

Rafael Mantovani, você esqueceu uma coisa aqui

voce esqueceu uma coisa aqui.jpg

Rafael Mantovani

você esqueceu uma coisa aqui

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2020, 72 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

10€


 

(o que eu estaria disposto a prometer pra vida
pra você não ir embora
mas provavelmente não teria cumprido)

(será que é andando em círculos que vamos achar a cidade
que às vezes acreditamos que existe?
mas não sabemos nenhum outro jeito). 


Rafael Mantovani

Rafael Mantovani nasceu em 1980 em São Paulo. Formou-se em Linguística pela USP e sempre trabalhou como tradutor. Publicou poemas em diversas revistas e sites do Brasil, Portugal e Alemanha, além participar de leituras, performances e festivais, principalmente em Berlim. É autor dos livros cão (Hedra, 2011) e você esqueceu uma coisa aqui (Macondo, 2019 e Enfermaria 6, 2020). Hoje vive entre Berlim e o Porto. 

© Adelaide Ivánova

© Adelaide Ivánova

Oxford em quarentena: algumas imagens

Quarta-feira passada foi um dia de chuva miudinha em Oxford. Uma amiga ficou retida na cidade porque se tornou muito complicado regressar ao seu país de origem, a Lituânia. Antes das medidas mais severas de lockdown, que entraram em vigor ontem, encontrámo-nos para caminhar um pouco. Algumas das fotografias abaixo foram tiradas na hora de ponta, em algumas das ruas mais movimentadas da cidade e em algumas das que atraem mais turistas. As duas últimas foram tiradas no dia seguinte, são pessoais e preferidas, uma é o gato de um dos meus vizinhos, que muito frequentemente está em cima do muro do prédio onde vivemos ou no jardim comum. Há vários dias que não o via e fiquei contente de reparar que a sua rotina prossegue, mais ou menos normalmente. A outra, é de uma oliveira que pertence uma das casas em St John’s Street, uma rua onde em dias normais passo muito, porque é onde está a biblioteca de clássicas, a Sackler Library. Penso que não terei quaisquer saudades destes passeios fantasmagóricos.

High Street

High Street

University Church of St Mary the Virgin

University Church of St Mary the Virgin

Magpie Lane

Magpie Lane

Oriel Square

Oriel Square

St Aldate’s

St Aldate’s

Christ Church Meadow

Christ Church Meadow

Christ Church College

Christ Church College

St John’s Street

St John’s Street

IMG_3364.jpeg



TELEJORNAL e outros poemas

TELEJORNAL

Bem-vindos a mais um Telejornal.

O Coronavírus, finalmente, chegou a Portugal! iupi!

Agora vai ser só aumentar as audiências e eu

já sonho com uma piscina nova lá para o ano!

Como andam os meus queridos? Os meus

amados espetadores que me seguem

no Instagram? Os meus fãs, tão fofos!

Olha, aqui, eu a bater com a caneta na mesa

para a tia Zeca; e eu a piscar o olho

para a Rosalina lá da Farmácia, hem!

Eu queria aproveitar, antes de vos

dar as notícias, notícias de alta qualidade,

de vos convidar, a todos, a irem lá

para casa. Bom, não é bem lá para

casa, não é nada disso! Vou instalar

uma câmara em cada divisão para vos

dar, em primeira mão, as notícias:

uma sobre a cama, uma sobre a mesa,

uma sobre a sala e outra sobre a sanita.

Agora é tempo de encher o peito,

assim, estão a ver? Assim, grande

como se fosse um Pavão da Pierre

Cardin, estão a ver? Agora, sim,

vou abrir a boca e dizer “O DRAMA!”.

(Viram que arregalei os olhos

quando disse “DRAMA”?).

É preciso para aumentar o pânico!

Não se esqueçam de lavar as

mãozinhas. Cuidado a atravessar a

passadeira, comam de garfo e faca.

Rezam ao Senhor – Eu- e não saem

de casa. Isto não está para brincadeiras,

meus meninos. Portem-se bem! Assim diz

o vosso e único padre destes tempos difíceis!

Comam bem, durmam aquele sono reconfortante,

sabem, aquele que nos deixa mesmo relaxados?

Sim, esse! Mas não saiam de casa. Dez horas

em casa. Lavem as mãozinhas!

Agora, para vos acalmar, vou ler

um poema do touro Alegre:

“Lisboa vazia, Lisboa sem gaivotas, Lisboa!”

Magnífico! Por hoje é tudo!

Fiquem bem e não

se esqueçam de lavar as

mãozinhas, meus meninos!

Portem-se bem, cutchi,

chutchi!

 

IMPUDICO ARDOR

 

“O Tareco doutor, que à

pura força/ quer atochar

de termos bordalengos”

          - Filinto Elísio  

 

A poesia segundo alguns

é a arte do bordado e

o sonoro encantamento.

Só se for de belas sereias!

Um monstro esperando a

vítima é o que é!

 

Juntava palavras ao acaso

vindas de antigos dicionários

e vendo o sucesso do Senhor

Coiso ele tem razão e eu

cá me engano caindo neste

poço escuro de ignorância.

 

Mas algum de nós tem

de ter a razão plena?

Creio que não. Digo isso

todos os dias! Noto apenas

a incapacidade do Tareco

ir aquém do Bordado.

 

A incapacidade de levantar o

velho bordado e ver apenas o pó

- o seu importante ego

dissolvido no tampo do amanhã.

JOHNSON’S BABY

 

Os meninos da poesia usam

todos pó de talco no rabinho.

 

Cheirosinhos e sem pelinhos (muito

Peço). E escorrego até à base.

 

À catequese vão todos ao domingo

e missa sim missa não dão o dito

 

(deitados sim) pelo dado “não”!

É tudo só bonitinha ternura!

 

Amanhã vamos todos ler poesia

lá prás terras de Santa Salomé

eles S. João da Cruz eu S. João Picolé!

DP-15291-003-JPG-Original-300dpi_EDIT.jpeg

Huma Bhabha, Nova Iorque, pormenor.

Haikus Tropicais 

IMG_20200306_150849.jpg

Na fertilidade tropical 

crescem 

os muros. 

Sobre o asfalto 

dançam 

duas borboletas amarelas. 

Canta a arara 

o gato esconde-se 

irá chover. 

Que comem as pombas 

no meio 

da estrada? 

Como o cigarro 

não fumado 

aquela mulher. 

Limpo o cu 

e o mundo 

lá continua. 

Desconheço o nome 

das flores 

sei que são belas. 

Enquanto os grilos 

cantarem 

haverá Sol. 

Frio e quente 

mais real 

que bem e mal. 

Longe de casa 

sufoca no verde 

a figueira. 

Insecto cromado 

que perigos 

encerras? 

Onde os grilos cantam 

o verão 

na terra natal. 

Ninguém morreu 

se os trazemos 

nos dias felizes. 

É imortal 

que nos habita 

a saudade. 

À uma da tarde 

os grilos 

a eternidade possível. 

Do cemitério abandonado 

chega o livro 

de Bashô. 

Sabes que não é Agosto 

quando não conheces 

a fruta. 

Com tempo e distância 

tudo 

é nada. 

Nada se teme 

tanto como 

a certeza. 

Passa o carro da fruta 

que sonhos 

na noite passada? 

Que fome te leva 

a pedir 

ò sujo desconhecido. 

Cão de praia 

que iluminado foste 

noutra vida? 

Água de coco 

o teu sorriso 

a distância. 

O inferno no paraíso 

como luz e escuridão 

no universo. 

Tentar imortalizar 

uma vida desperdiçada -  

escrever. 

São Paulo, Março 2020