'Hoje não' de Ana Margarida Matos

Ana Margarida Matos, Hoje não, Chili com Carne, 2021 (banda desenhada). O livro foi vencedor da oitava edição do concurso “Toma Lá 500 Paus e Faz uma BD!” organizado pela editora Chili com Carne

Um diário da pandemia? Não propriamente. Uma encenação de um diário. Cada dia capturado no confinamento de uma página por meio de uma imagem (ou conjugação de imagens) e um verbete diarístico. Os mecanismos narrativos são a conjugação destes elementos – imagens, marcadores textuais, uma data – e as dinâmicas da sequencialidade – como os dias se relacionam entre si.

A pandemia, o sentimento de estar preso num mesmo lugar, num mesmo dia, imposto pela perda de elementos referenciais distintivos, ansiedade em relação ao futuro académico e profissional (a voz que nos fala é a de uma estudante a terminar a licenciatura em Belas Artes), indagações/apontamentos sobre a natureza da arte, a procura e formação de uma entidade artística, o registo de uma dieta que a minha sensibilidade vegetariana não pode deixar de reprovar,  estes são os temas encenados para nós no espaço confinado de cada página.

“Ingenuidade” é uma palavra traiçoeira. Sim, algumas observações são óbvias, “ingénuas”. Mas a maioria das nossas palavras são óbvias ou ingénuas. A nossa reacção à notícia do aumento do número de mortes diárias é óbvia, o sentimento de apreensão de um estudante de licenciatura prestes a entrar no mercado de trabalho é óbvio. A nossa previsibilidade é um bilhete de entrada num espaço partilhado. Mas se por um lado os marcadores textuais nos guiam para lugares públicos, as representações visuais encenam experiências mais específicas: a íntima curiosidade do artista que explora o espaço quotidiano e procura maneiras de o representar. O livro vive sobretudo desta tensão entre uma realidade partilhada, previsível (“mais uma bifana ao almoço”, “o Chega saiu-se bem nas eleições”, etc.), e a intimidade do olhar artístico (continuamente à procura de reinventar/re-representar o espaço). E não há nada de “ingénuo” na encenação desta tensão: é um esforço deliberado, complexo e inventivo, e o resultado é uma obra ao mesmo tempo pessoal e partilhada, empática e íntima.

A Cadeira (do) Fantasma, pelo autor (Fernando Guerreiro)

                                                                   MARNIE

     1.

     Comecemos pela capa.

     A imagem corresponde a um fotograma em que Marnie (Tippi Hedren), depois de roubar o cofre da empresa em que trabalha, e ao ouvir os sons da mulher da limpeza ali mesmo ao seu lado, se descalça e pára num seuil  (fronteira) que ela não sabe ainda muito bem como atravessar (toda a sequência é filmada num plano único, em silêncio e em continuidade, com o ecrã dividido ao meio por essas duas acções).

     Daí a incerteza e descompostura do corpo com um pé ainda calçado e o outro já sem sapato: atravessará ela, ou não, esse limiar? (Em boa verdade ela já o ultrapassou – este não é o seu primeiro roubo – pelo que o problema é o da compulsão à repetição do acto).

     O plano é semelhante ao de Vertigo em que vemos Judy (Kim Novak) a sair de outra “caverna” (cripta): a casa de banho do quarto que ocupa e em que se compõe (metamorfoseia) como Madeleine, o “fantasma” de Eurídice por que anseia e clama durante todo o filme Scottie (James Stewart). (Em Marnie, aliás,  há várias situações em que o personagem, e a actriz, se metamorfoseia(m) noutra “pessoa”: é o que sucede logo no início quando ela passa de “morena” [brunnette] a “loura” – uma cena  que é introduzida pelo próprio Hitchcock que, numa das suas habituais aparições, a vê passar no corredor do hotel em que procederá à sua transformação de Marion (Holland) – sim, o nome de outra “ladra” (e loura) famosa (Janet Leigh), a de  Psico – em Marnie (Edgar).

     O aparecimento de Madeleine, claro, é o do próprio cinema enquanto dispositivo que nos dá a ver mutações (transformações) de corpos (e formas) em acto (E de facto, se Judy e Madeleine, enquanto personagens de ficção,  morrem, ficará para sempre na nossa memória o acto da sua tão precária aparição/ reanimação, contra todas as expectativas, perante os nossos olhos).

     No entanto, Marnie (Tippi Hedren, ela própria um “avatar” de Kim Novak [no filme , Marnie tem vários traços da persona de Madeleine: o formalismo convencional das roupas, o mesmo arranjo de cabelo, com o caracol em espiral, quando vista de costas]), ao contrário de Judy (Kim Novak) sobrevive e nessa medida, tendo de passar por outro pórtico apertado – o do pesadelo vivo do trauma que a marcou na infância (veja-se o flashback final em que revive o “crime original” de que é o produto e criação) –,  configura-se aqui como uma Eurídice que pela segunda vez regressa para salvar o real (para que ele não se afunde) e, com ele, o cinema (admirável, deste ponto de vista, é a cena em que, no barco de cruzeiro, Mark [Sean Connery] a descobre a boiar de costas na água da piscina e a consegue reanimar, trazendo-a de novo da baía de São Francisco onde se afogara anos antes em Vertigo).

     Como em certa medida sucede com Psico – aqui não só Marnie retoma o personagem de Marion como uma mãe castradora é um personagem relevante dos dois filmes –, Marnie continua e refaz Vertigo mas agora do ponto de vista de Judy (dos seus “fantasmas” e “imaginário”), um mobile de ficção e hipótese de ser a que aqui se dá um novo corpo, aura e presença, entreabrindo-se-lhe  a possibilidade de um outro futuro.

     2.

     Poder-se-á ainda dizer que o livro é também ele uma espécie de piscina ou aquário em que corpos, situações e figuras mergulham para dele (re)emergir mudados, com novas formas, propriedades e modos de ser em que, se o quisermos e nos esforçarmos, temos a oportunidade de nos projectar e (re)fundir para desse modo reformular e reatar com a nossa existência?

     Jean Louis Schefer, num livro de 1995 justamente intitulado Question de style (L’Harmattan), observa que se escreve (pensa) para “gerar formas”=”objectos”, ou seja, “hipóteses”=”teorias” (olhares sobre e para dentro) que podem servir para construir (obstruir e ao mesmo tempo des-lindar) ficções em que o segredo do real e o do sujeito se encontram entrelaçados e mutuamente incluídos: “o que legitima a interpretação”, escreve,  é a sua “parte de ficção”.

     O livro, sempre uma “formação”, entidade viva mental-sensacionalista, vê-se aqui entendido como um “retardador” ou “acelerador” de partículas que, nos interstícios da sua substância (ao mesmo tempo concreta e imaginária), é capaz de abrir frechas, áleas, ou mesmo saídas na engrenagem (monótona e repetitiva) em que regrediu e parece ter emperrado a fábrica poiética do mundo.

     Como com o cinema ou os filmes, afinal.


Fernando Guerreiro
(Livraria Linha de Sombra
[Cinemateca], 5 de Novembro 2021)                                                                                          

Um poema de Ottiero Ottieri sobre a morte de Pasolini

 
 
 



Tradução: João Coles


Pasolini morreu,
mas apesar da sua morte
nunca me resignarei.
A sua morte
é mais absurda do que a minha.
Como é possível ser mortal
o autor de obras imortais?
Onde está ele, entretanto?
Pode relê-las?
Saber que as escreveu?
Tem olhos?
Ou desapareceu totalmente
no nada? Também o nada
é alguma coisa.
Onde é? Sabem onde é?
Quero muito saber.



In Il poema osceno, Longanesi, Milão.


Pasolini è morto,
anche se della sua morte
non mi rassegnerò mai.
La sua morte
è più assurda della mia.
Come è possibile che sia mortale
l’autore d’opere immortali?
Dov’è, intanto, lui?
Può rileggerle?
Sapere che le ha scritte?
Ha occhi?
O è totalmente scomparso
nel nulla? Anche il nulla
è qualcosa.
Dov’è? Sapete dov’è?
Voglio assolutamente saperlo.


In Il poema osceno, Longanesi, Milano

Fernando Guerreiro, A cadeira (do) Fantasma

 

Fernando Guerreiro

A cadeira (do) Fantasma

Cinema excêntrico

ensaio/ cinema

Enfermaria 6, Lisboa
Outubro de 2021, 304 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

16€

 
 

Cada um, com efeito, vem ao cinema com o(s) seus ”fantasma(s)” e introduz-se (fraudulentamente) nas ficções (hipóteses) dos filmes (ficções) em curso, alterando-as no seu sentido, procurando sempre dar corpo e fazer crescer os seus cenários, de modo a, como o personagem de Sonny em Texasville (1990) de Peter Bogdanovich, se tornar parte pregante da super-produção (elementar e pobre) .