Terceira Margem

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Poesia de Portugal e do Brasil

Editado por
Francisca Camelo
Bruno M. Silva
J. Carlos Teixeira
Vítor Teves

Prefácio de Pedro Eiras

 Enfermaria 6, Lisboa, novembro de 2019, 174 pp.

Capa de Gustavo Domingues

14€

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Para revelar o sabor das coisas, para saber o que já se sabia, não há regras, há apenas escritas, procuras, experiências e encontros, a muitas vozes e a muitas mãos – por exemplo, vinte e duas mãos de poetas e poetisas, entre Portugal e o Brasil, vozes que descrevem, revelam, diagnosticam as avarias na máquina do mundo, vozes que se enervam, ironizam, por vezes escondem a dor numa fuga em frente, vozes ríspidas, oníricas, ternas e lentas e velozes ao mesmo tempo, vozes imprevisíveis, que coincidem num mesmo presente e o multiplicam por outros tantos tempos, vozes, idiomas.

Pedro Eiras, “Como se revela o sabor das coisas”

 

Quatro cidadãos conspiram lendo versos: leitura de poesia (4 de Outubro, Porto)

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Francisca Camelo, José Pedro Moreira, Mafalda Sofia Gomes e Vítor Teves têm livros novos acabados de sair (ou prestes a sair, no caso da Mafalda).
Assumindo o já sobejamente conhecido carácter dispensável da poesia, estes quatro poetas decidiram juntar-se para lerem alguns poemas. Num tempo de capitalização individual de todos os pequenos gestos quotidianos, haverá algo mais revolucionário do que a inutilidade de uma leitura coletiva de poesia?
Aparece e traz um inútil também!

No dia 4 de Outubro, na livraria Flâneur (Porto), às 17.30.

"O quarto rosa" de Francisca Camelo: apresentação hoje!

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marilyn

gostava de ter sonhado
mas foi real
desta vez foi um veado
cabeça lustrosa
pêlo brilhante
olhos aguçados
focinho pequeno e delicado:
uma marilyn monroe
dos animais da floresta.
o veado parava
encrustrado à parede
numa loja kitsch.
segunda mão,
a etiqueta dizia,
se/gun/da/mão
digerir o significado dessas palavras
e o preço possível a pagar por isso:
olhava-me quieto
vítreo mas tão vivo
o almoço a subir-me
acidez acima
olha só que atroz
assombração
todos nós podemos
ser embalsamados um dia:
imaginei os meus olhos vítreos ali
alguém a tocar-me na íris
com a unha do indicador direito
vê se faz barulho
vê se são de vidro
tocarem-me no cabelo
pode ser falso
apesar de todo o brilho
as pestanas longas de marilyn diziam-me
tu também podes
estar um dia aqui
embalsamada a um preço caro
numa loja kitsch em segunda mão 

(talvez seja isso a
reencarnação).

sehr glück

ontem fui à barraca
da vidente
handlesen
o cartaz rodeado por aquelas
luzes baratas com que as pessoas
rodeiam o quarto, tu sabes,
before sunrise, we’re all
stardust
, capital europeia,
tudo isso a enquadrar o cenário:
agarrou-me as mãos
e desdentada, sorriu: vais ser
uma kaiser três filhos vida longa
(casar nem por isso)
sehr glück, ela disse,
mas a tua sorte é estranha

referia-se provavelmente
àquelas últimas manhãs
um quarto sem persianas
quando volto da casa de banho
e encontro um homem já vestido que me esclarece
só há um kaiser e é um jogador de futebol alemão

sentado no sofá,
(pernas abertas
mão sobre a virilha
ainda quente)
notifica-me prontamente:
precisa de alguém
para os domingos da minha
ausência. acrescenta, quando vê a fruta
no centro de mesa, i love strawberries,
e semeia sem saber
calos na minha garganta
por favor, alguém que compre
morangos a este homem
quando não estou
 

as marcas da almofada ainda na cara
(desejar esse desleixo, o hálito pesado,)
aprender novas formas de
condicionar a incerteza
sentar-me no sofá
para abandonar de seguida:

  1. o lugar fresco do fantasma

  2. a madrugada para sempre poluída

  3. o conceito de sorte

mas os morangos:
intactos.

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