Pier Paolo Pasolini, "Sem ti regressava, qual bêbedo"

Fotos por Richard Avedon, 1966

Fotos por Richard Avedon, 1966

Tradução: João Coles

Sem ti regressava, qual bêbedo,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
Estive milhares de vezes só
desde que estou vivo, e em milhares de noites iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os montes ,
os campos, as nuvens.
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbedo,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)


Senza di te tornavo, come ebbro,
non più capace d’esser solo, a sera
quando le stanche nuvole dileguano
nel buio incerto.
Mille volte son stato così solo
dacché son vivo, e mille uguali sere
m’hanno oscurato agli occhi l’erba, i monti
le campagne, le nuvole.
Solo nel giorno, e poi dentro il silenzio
della fatale sera. Ed ora, ebbro,
torno senza di te, e al mio fianco
c’è solo l’ombra.
E mi sarai lontano mille volte,
e poi, per sempre. Io non so frenare
quest’angoscia che monta dentro al seno;
essere solo.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)

[em cada novo esboço]

em cada novo esboço

um promontório.

saltamos lado a lado

o mesmo estirador comprido

os mesmos postais do Pompidou

gastos os vazios de Chillida

lápis e catálogos e revistas

que ignoram os nossos olhos baços

em cada novo desenho

um matrimónio.

a minha vida nua

os beijos da tua

como crepitar de fogueiras

raros poemas ameríndios e promessas

o verbo já encarnado

chegaste.

contigo trouxeste a simetria

de dois pelicanos sobre o peito

a alegria de duas ou três

camisas de seda floridas

raras golas amarelas

que ano após ano

me deixam sempre a dúvida:

- o verão não morre em setembro?

Eduardo Chilida - Homenagem a Braque, 1990..jpg

Eduardo Chillida - “Homenagem a Braque”, 1990.

Património

Migalhas muitas e folhas e restos
e periscas que inundam passeios
e caminhos. Palavras assim,
ao abandono, perdidas.
Que não inquietam ninguém,
excepto os doentes
que tudo sentem de modo mais vívido.
Tudo tão volátil
como os textos e imagens
que ficam pelos arquivos
digitais ou físicos, ensimesmados
nas metáforas da selva e do circo.
Isso que, para os mais velhos,
é ainda pura monocromia.
De facto, que seria dos museus
sem estes desperdícios?

Obelisco do Alto da Memória, Angra do Heroísmo. (Pormenor).


"Fraternidade" de Ingeborg Bachmann

Kushner-Ingeborg-Bachmann.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Fraternidade

Tudo abre a ferida -
nenhum de nós perdoou o outro.
Ferido como tu e ferindo,
guiei-me em direção a ti.

O mais puro, o espírito do toque,
a cada toque aumenta;
provámo-lo ao envelhecer:
invertidos no mais frio silêncio.

in Gedichte 1957-1961


Bruderschaft

Alles ist Wundenschlagen,
und keiner hat keinem verziehn.
Verletzt wie du und verletzend,
lebte ich auf dich hin.

Die reine, die Geistberührung,
um jede Berührung vermehrt,
wir erfahren sie alternd,
ins kälteste Schweigen gekehrt

in Gedichte 1957-1961

TOLDO

Vítor Teves - “Toldo” - I - XII, 2018.

Nota: Sempre odiei (e odeio) a palavra “Ilustração”; não procuro, nem quero, ilustrar coisa nenhuma. É possível pintar poesia sem ilustrá-la. A ilustração de poesia é reducionista e desinteressante (na sua maioria). 10 anos depois de “Um toldo vermelho”, esta é uma pequena série à volta do livro, uma leitura “emocional” do livro, apenas isso, uma versão entre outras que fiz. Esta é uma versão de 2018, existem muitas mais. A dimensão do papel é fundamental, são trabalhos intimistas e constituem apenas um “quadrado” no seu todo: 4 + 4 + 4 =12. Alguns zonas estão esborratadas (pelo fixador) porque assim o quis. Foi feito a pastel seco e esferográfica. Dedico esta série a todos aqueles que pensam que: a) o desenho só pode ser feito com grafite; b) os que acham que a pintura tem de ter entre 3 a 5 metros; c) os que acham que a pintura só pode ser feita a óleo. Isto é Pintura: a) colorida; b) de pequenas dimensões; c) e sobre papel (sim, papel, nada que não tivessem já feito).

ps- Quando for grande vou pintar hortênsias.

Vítor Teves, 01.2020