Dois poemas de Goliarda Sapienza


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Tradução: João Coles



Chuva de ódio do céu

Chuva de ódio cai
do céu sobre os prados e seca
a relva as mãos queima o cabelo e cega
o homem que com atenção contemplava ao alto este
bater de asas.

Graniza ódio sobre os telhados
derruba paredes
ceifa os tendões do cavalo em fuga
que se estatela fumegante na calçada.



Está previsto

Está previsto.
A tua vida
à beira-mar
a minha morte
no fundo do poço.
Está previsto,
a mesa posta
com copos e com facas.
Está previsto
há muito tempo
o teu regresso ao meu
poço de águas pluviais.

in Ancestrale


Pioggia d’odio dal cielo

Pioggia d’odio dal cielo
cade sui prati e secca
l’erba le mani arde i capelli acceca
l’uomo che attento alto fissava quel
volo d’ali.

Grandina odio sui tetti
scardina i muri
sega i tendini in corsa del cavallo
che stramazza fumante sul selciato.


È predisposto.

È predisposto.
La tua vita
in riva al mare
la mia morte
in fondo al pozzo.
È predisposto,
la tavola apparecchiata
con vetri e con coltelli.
È predisposto
da tempo
il tuo tornare al mio
pozzo d’acqua piovana.

in Ancestrale

Cai com estrondo a noite

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Cai com estrondo a noite na lezíria, os joelhos em sangue, as mãos lanhadas, a hemorragia no seu corpo insepulto. Há urgência e sobressalto nos bichos, correndo espavoridos, enfiando-se nos antros, nas luras, nas covas, nos covis, escondendo-se debaixo das pedras, dos ramos caídos, do lodo que a enchente arrastou e o sol apodreceu. Uma última ave, perseguida pelo ocaso, desce sobre o rio levemente chamuscada. Uma toupeira fareja o ar irrespirável e recolhe à sua toca. Um gafanhoto salta para um talo derradeiro, que oscila contrariado. Furtivo, um furão atravessa a estrada e insinua-se na erva rasteira. Voltejam os morcegos em seus madrigais satânicos. A aragem detém-se um momento e prossegue, meio tom abaixo, num bemol lúbrico. Insones, as cigarras marcam o compasso numa estridência dissonante. Ao agudizar-se, cessa o desespero. Cessa a esperança na noite exânime.

Improbabilidade de Celia Cruz 

 

Em África decidi que não te podia amar mais, enquanto emborcava Tuskers 
E lia sobre uma guerra colonial tão estrangeira para mim, como o amor, 
Seguindo por cima do livro os passos lentos da turista alemã, 
Em direção ao chuveiro, atravessando um ar espesso como o cantar 
Quente dos grilos, enquanto escrevinhava dentro daquele Toyota Hiace, 
A contagem decrescente dos dólares e dos xelins, aquela pulseira 
Acabou por se partir noutras violências consentidas, permanece espalhada 
Numa gaveta do meu quarto de adolescente, à espera de um elástico, 
Na companhia das cartas de amor que me escrevias, mi riño, la vida es un carnaval, 
Aqueles montes, dizia-te, parecem uns para os lados de Fornos de Ledra, 
Encontro sempre algo de familiar nos montes, mesmo que estejam pintados 
Com outros verdes, o Sol é o mesmo e o amor esgota-se sempre, 
E tinhas razão logo desde o início, no hay que llorar, que la vida es un carnaval
Y las penas se van cantando, mas eu sempre fui fiel ao silêncio das palavras.  

06.11.2020 

 

Turku 

O Século Pessoa

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«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno

É desta forma que se inicia o editorial (Prometeu e Fausto) do n.º 10 da revista Electra, texto inspirador e esclarecedor de José Manuel dos Santos e António Soares. O “assunto” (tema central) é o “Trabalho e pós-trabalho”, e confirma mais uma vez que se trata da melhor revista de ideias (como chamar-lhe?) editada em Portugal.

Evocar, por vezes invocar, Fernando Pessoa para escolhermos a lente que nos ajude a compreender a fragmentação dos fenómenos maiores (Deus, Verdade, Sentido...) em epifenómenos capazes tanto de fanatizar (trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...) como de alienar (no pólo da aversão: trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...). É porque Pessoa, como referem José Manuel dos Santos e António Soares, punha na “exclamação metálica” do excerto que citámos da Ode Triunfal uma “voz paroxística, paradoxal e imparável”, como era muitas vezes a do heterónimo Álvaro de Campos.

A tecnologia, que não é apenas uma forma de designar instrumentos mais ou menos complexos que complementam o nosso agir, mas um ecossistema de racionalidade (“logia”) que destaca a importância das coisas fabricadas para a emancipação da espécie humana (visão prometeica, porventura a predominante em Álvaro de Campos). A esta utopia, que continua a carburar a pleno vapor (veja-se como se abafa a responsabilidade humana pela degradação, sem remissão, ambiental martelando numa tecnofilia salvífica), junta-se, como força inversa, uma distopia de cariz faustiana (energia nuclear, engenharia genética, sobre-comunicação telemática, adições digitais...).

Neste caso, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, celebra a autossuperação da modernidade (económica e filosófica) em direção à pós-modernidade, a passagem da racionalidade auto-domesticada às racionalidades intensificadas por eficiências de contexto, libertas da totalidade, divina (Descartes) ou laica (Hegel).

II

Mas há outro (outros) Fernando Pessoa. Claro, o que se prolonga em Alberto Caeiro, naturalista solar, simplificador, mestre de Mindfulness numa época em que quem não pensava até ao esgotamento ou se dispersava em prolífica confusão era com certeza pobre, pobre de mundo e de bens, cordeiro de Deus. Caeiro, com Walt Whitman a seu lado, traçou uma alternativa antes do tempo, que agora parece ganhar os discursos dos que se enlearam em frenéticos círculos de ganhar/pagar (círculo existencial). Mas não vai muito além de um queixume adornado, os poucos neonaturalistas que vivem em Portugal vêm de outras geografias, com mapas mentais que por cá raramente se reconhecem como válidos.

Mas temos sobretudo Vicente Guedes e Bernardo Soares, narradores dessa obra infinita (porque pode ser composta pelos editores – uso a de Teresa Sobral Cunha para a Relógio D’Água – e porque aponta sempre para lado nenhum, mesmo quando verticaliza a hermenêutica e perscruta as entranhas do organismo humano) que é o Livro do Desassossego. Com ele entra-se e sai-se da pós-modernidade. A entrada dá-se pelo perspectivismo (“eu não creio, é claro, que haja factos”, “há metáforas que são mais reais do que as pessoas que andam na rua.”), a saída pelo cansaço, exílio e absurdo (“Absurdemos a Vida, de leste a oeste”, “Não desembarcar não ter cais onde se desembarque.”, “Nós nunca nos realizamos”, “Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos.”). Recorde-se que a pós-modernidade era utópica, quis trocar a firmeza cinzenta de Platão da Verdade que oprime pela dança hedonista epicurista, a verdade pela felicidade, laica e singularizada; uma economia da euforia à la carte.

No Livro do Desassossego, traduzido em cerca de 30 línguas, património francês mais do que português, fecha-se, antes da abertura, a pós-modernidade. Teologia negativa, leva a sério um perspectivismo que desemboca numa nova totalidade: a do Nada. É, aliás, contra isto que, sem o saberem, os pós-modernos franceses se rebelarão apontando o dedo ao niilismo de L’être et le néant (O Ser e o Nada). Mas em Sartre ainda havia luz, a da liberdade, mesmo que fosse uma condenação. Bernardo Soares e Vicente Guedes dizem que são mais velhos do que o tempo e o espaço porque são conscientes, ou seja, vivem nos primórdios do tem-de-ser, da ausência de alternativas, no preâmbulo do preâmbulo, na consciência pura que só pensa o que tem-de-ser pensado.

III

Por tudo isto, este século será o de Fernando Pessoa (é uma aposta quase a la Pascal). A liberdade está subjugada pela consciência do tem-de-ser (que na sua dimensão mais reduzida, mas sobre-mediatizada, se traduz pelo “politicamente correcto”). Não nos atrevemos a imaginar novos sentidos, estamos presos aos cuidados intensivos, os que fazem falta à vitalidade orgânica dos doentes, mas também aos que cuidam intensivamente de nos dar a pensar novas rotinas mínimas (o métro, boulot, dodo – metro, trabalho, cama – do Maio 68). E quando queremos extravasar (exílio de sobre-abundância), o dever cívico (só agora importamos isso) põe-nos uma máscara que permite somente a reverberação estéril, o demiúrgico que possa sair da nossa boca ricocheta nos panos sanitários e regressa exausto ao ponto de partida.

Estivemos dois séculos a seguir, consciente ou inconscientemente, a máxima de Friedrich Hölderlin: “Onde está o perigo, está também aquilo que salva”. Este século, pessoano, cabe agora nisto que ele escreve: “Habito a sombra e o sol morreu comigo.”

"Uma estrutura sólida", Maggie Smith

Tradução: Francisca Camelo

A vida é curta, ainda que esconda isso dos meus filhos.
A vida é curta, e eu encurtei a minha
de mil maneiras deliciosamente desaconselháveis,
mil maneiras deliciosamente desaconselháveis
que esconderei aos meus filhos. O mundo é pelo menos
cinquenta por cento terrível e esta é uma estimativa
conservadora, ainda que esconda isto dos meus filhos.
Por cada ave há uma pedra arremessada a uma ave.
Por cada criança amada, uma criança desfeita, dentro de um saco,
imersa num lago. A vida é curta e pelo menos 
uma metade do mundo é terrível e por cada estranho 
gentil há um que te vai desfazer,
embora eu guarde isto dos meus filhos. Estou a tentar
vender-lhes o mundo. Qualquer agente imobiliário,
enquanto te mostra uma verdadeira espelunca, tagarela 
sobre a sua estrutura sólida: este sítio podia ser lindo, 
certo? Podias fazer disto um sítio lindo.


(in Waxwing, Issue 10, Junho 2016)

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“Good Bones”, Maggie Smith

Life is short, though I keep this from my children.
Life is short, and I’ve shortened mine
in a thousand delicious, ill-advised ways,
a thousand deliciously ill-advised ways
I’ll keep from my children. The world is at least
fifty percent terrible, and that’s a conservative
estimate, though I keep this from my children.
For every bird there is a stone thrown at a bird.
For every loved child, a child broken, bagged,
sunk in a lake. Life is short and the world
is at least half terrible, and for every kind
stranger, there is one who would break you,
though I keep this from my children. I am trying
to sell them the world. Any decent realtor,
walking you through a real shithole, chirps on
about good bones: This place could be beautiful,
right? You could make this place beautiful.

(in Waxwing, Issue 10, in June 2016)